quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A lógica da Terra

Então, a Terra, a velha Mãe Terra tem uma lógica?

Sim, meu filho, a Terra tem lógica. Ela trata com canhestra igualdade todos os seus filhos.

Como assim?

É simples. Nas fábulas modernas, certas coletividades que se constituíram como nações e projetaram seus valores num dado espaço geográfico, tornando-o soberano, e com a invenção de uma estrutura chamada “tecnologia”, conseguiram entender e dominar as riquezas do planeta de modo mais “eficiente” do que outras. Impressionados com o avanço material, consideramos essas nações mais “adiantadas”, “educadas”, “sensíveis” e “ricas”. E, no entanto, são elas as que mais destruíram florestas, rios, montanhas e sociedades tribais que faziam parte do seu “Estado-Nacional” mas que se recusam a fazer parte do seu sistema de valores.


Aqueles grupos que os velhos romanos chamavam de “bárbaros”. Eis uma antiquíssima palavra que, curiosa mas significativamente, tem a ver com um modo claudicante de falar, como o dos tartamudos. Quem não dizia como nós, “civilizados”, era bárbaro. Quem não tem banheiro, carro, televisão colorida, computador e celular faz parte latente ou real deste segmento de “atrasados”. Não falam a nossa língua.

O problema, como já afirmou o velho Freud, que disse quase tudo, não é a tecnologia; é a ingenuidade de pensar que a prótese resolve problemas éticos quando, na realidade, ela engendra outras questões, pois não há como escapar do real.

E haja planeta para fornecer tanto ferro, madeira, carvão, gasolina, algodão, fumo, álcool, açúcar, água e oxigênio para fabricar e sustentar tal modo de viver. Um estilo no qual cada povo se vê como exclusivo e escolhido. A diferença para mais sendo prova de preferência. Um certificado de sucesso cósmico.

A diferença entre “adiantados” e “atrasados” foi originalmente dada numa escolha divina; mas, em seguida, substituída por estilos de vida individualizados e competitivos: progressistas. As próteses substituíram os deuses e os feiticeiros. O revólver no lugar do arco e flecha; o canhão em vez da catapulta, o banco como igreja, o livro do “como fazer” em vez de mitos. Convenhamos que uma bomba de hidrogênio é bem melhor do que a bomba atômica. Aliás, é tão boa que não pode ser usada sob pena de destruir tudo.

Eis a prótese de todas as próteses!

Mas, professor, como é que a igualdade do planeta se manifesta?

Ela se exprime impedindo os adiantados de respirar, como é o caso da China. Na velha Pequim, as pessoas não podem mais fazer exercícios ao ar livre porque o ar empesteado do progresso chinês, engajado em construir suas próteses, não deixa. O progresso vai inibir o próprio progresso.

A Mãe-Terra não é comunista nem capitalista, nem fascista nem anarquista, islamita ou cristã. Ela apenas reage a seu modo e como um gigantesco organismo vivo aos micróbios que a atingem. Um terremoto é um comichão, uma tsunami, uma golfada, um tufão, um espirro, uma nevasca um resfriado, um calor infernal, uma febrezinha...

Eis que tais fenômenos antigamente chamados de meteorológicos e “naturais” são hoje cosmopolíticos. Os polos degelam em virtude do aquecimento oceânico, o qual está ligado ao volume atmosférico. Ou seja, como rezavam os mitos, há mesmo um elo profundo entre céu e terra; terra e mar, animalidade e humanidade. Nada é isolado ou pode ser apenas reduzido como gosta de ensinar o nosso método de ler a vida.

A Mãe Terra não tem alvo, como as vossas ideologias, religiões e sistemas. Ela revela, em vez de mistificar, como costumam fazer as crenças. Com isso, as catástrofes agora anunciadas passam a ser gêmeas do “progresso”. E a questão é enxergar que o progresso não é mais o pai domesticador de uma natureza bruta e selvagem, mas o seu algoz. Existe algo mais perverso que essa construção de um futuro que destrói, como o caso das Ilhas Marshall (que afundam), do desmatamento da Amazônia e do lamaçal que virou a mineração nas antigas Minas Gerais?

Como não confundir expansão técnica com avanço moral? Como reconhecer que alta tecnologia não é sabedoria? E, neste contexto, deter a doença do planeta?

Existem imensas dúvidas e um poder muito pequeno para implantar decisões efetivas. Se não conseguimos liquidar as guerras, os genocídios e as pestes, como redirecionar um estilo de vida — vale dizer, um conjunto habitual de práticas e valores sociais, a maioria concebidos como “naturais”, “normais” e|“sagrados”?

No Brasil, atingimos o limite. E o limite é a lei, que seria o guia numa sociedade de iguais, mas que atua como uma clara aristocracia. Neste momento, a nossa questão não é somente a dos humanos destruindo a natureza, mas é saber se temos mesmo uma natureza humana; ou seja, um mínimo de bom senso para sobrevivermos a essa avalanche de contrassenso produzido pelo nosso modo de manipular o poder.

Roberto DaMatta 

E vamos lá de novo

Reinaldo Azevedo fez um balanço bastante ponderado da “guerra midiática” a que estamos sendo submetidos. As redações país afora não se acanham em comemorar o que seria “uma vitória do governo”, o aparente fracasso das manifestações de ontem. Fracasso por quê, cara pálida? Quer dizer que a participação popular e não a gravidade das acusações é que pauta as atitudes dos políticos? É a popularidade da causa, e não sua decência, o real motor que move nossa representatividade? Tenha paciência.

O que está acontecendo é evidente: estão banalizando o sentido das manifestações, na intenção de nivelá-las por baixo e, assim, descaracterizá-las como movimentos populares legítimos. Quanto custa ir até os locais das manifestações, para depois ser tratado como coxinha? Quanto custa dar sua contribuição cívica para uma causa que depois é distorcida em todos os jornais no dia seguinte? Acredito que o povo está cansando mesmo é disso que aí está. Já entendeu qual é o próximo nível da disputa, que é o embate corpo-a-corpo.

Não há mais diálogo possível com quem insiste em ver as coisas sempre pelo mesmo lado, meus caros. Sinto dizer, mas fazer o povo de massa de manobra tem seu preço. Acho que as “oposições” usam esses movimentos legítimos como arietes de seus interesses. A oposição que aí está não quer se mexer. Quantas vezes teremos de repetir essa verdade na cara deles até que nos representem? O povo já entendeu o custo-benefício dessas manifestações. Elas não se traduzem em correia de transmissão na representatividade política que elegemos ultimamente. Pelo contrário.

Elegemos atores cujo compromisso era fazer oposição ao governo. O que fizeram estes senhores? Roubaram nossos votos e se bandearam para o lado esquerdo da força, meus caros. São eles os guardiões de Dilma e do Chefe, e não a quadrilha em si. São eles que posam de bonzinhos na rua para nada fazerem em seus gabinetes depois do ato. Acordem, brasileiros!!! Eu me recuso a ser manipulado de novo, me recuso a acreditar nestes cretinos. A ordem já está dada: prendam essa quadrilha e depois conversamos. Quebrem a espinha dorsal dessa seita pilantra colocando os criminosos na cadeia, meus caros. Simples assim. Lutaremos com quem sobrar. Essa é a verdadeira causa a ser defendida.

Também acho, como bem registrou Reinaldo Azevedo, que quero eleger Fernando Holiday como candidato a qualquer coisa. Vou mais longe: podemos usar nossa força digital para alavancar essa e outras candidaturas. Mais longe ainda: elas deverão ser um contraponto inequívoco a tudo isso que aí está. Diferente do que pregam os irmãozinhos do outro lado, eu não quero a aniquilação das esquerdas, como estes querem a da “direita”.

Eu quero é a convivência forçada. Quero o embate. Quero o argumento, a tensão e a vigilância que fazem da coisa pública essa eterna vigiada pela sociedade que lhes paga os proventos. Eu quero é a diversidade, mas não essa edulcorada pelos carcamanos da mortadela. Quero é um diversidade legítima. E vou defendê-la no braço, se for o caso. Não tem volta, cretinos.

O porco e o cordeiro

Estava o Cordeiro a tocar o Ministério da Fazenda quando apareceu o Porco, de horrendo aspecto, e perguntou: "Que desaforo é esse de reduzir meu PIB?".

Ao que o Cordeiro respondeu: "Mas, seu Porco, como é que eu poderia ter reduzido o seu PIB se só cheguei aqui no começo do ano e a economia vem em recessão desde o meio do ano passado?".

"Ah", disse o Porco, "mas você cortou o gasto público, o que fez o PIB cair ainda mais."

"Olha", retrucou o Cordeiro, "desde que estou aqui o consumo do governo aumentou. Só um pouquinho, sabe, mas foi o único componente da demanda doméstica que subiu em 2015."

"Esse negócio de argumentar com números não me convence", voltou o Porco, "porque, em primeiro lugar, só interessa aos esbirros do conservadorismo, na cúspide de uma sociedade submissa ao rentismo, prisioneira da defesa da riqueza estéril, e, em segundo lugar, porque eu não conheço as quatro operações e não entendo o que você está falando. Fora isso, o investimento também está desabando, e o multiplicador keynesiano diz que isso vai fazer a renda cair ainda mais."

"É verdade", confirmou o Cordeiro, "mas o investimento despenca desde o segundo trimestre de 2013, ao menos, quando ainda o que valia era a tal Nova Matriz Macroeconômica, que, segundo eu soube, veio da cabeça de Porcos que nem o senhor."

"Aliás", continuou, "pelo que me disseram, os Porcos sumiram quando ficou claro que o investimento seguia em queda e que a recessão viria para valer. Só ficou por aqui um jumentinho italiano, otimista 'pra' burro (sem trocadilho, sabe?), que me passou as chaves da casa."

"Não quero saber!", vociferou o Porco. "Quando o jumentinho te deu as chaves, a inflação era menor que 6,5%, mas agora já varou os 10%."

"Também verdade", admitiu o Cordeiro. "Acontece que, ao chegar aqui, encontrei uma porcaria (sem querer ofender, sabe?): tinha um monte de preço congelado, saindo caro para o Tesouro, mais caro ainda para a Petrobras. Só me restou ajustar tudo de uma tacada."

"Aliás, foi difícil achar um Porco que assumisse a responsabilidade pelo congelamento dos preços. Até o final do ano passado vários deles estavam ainda comemorando que a inflação não tinha estourado o teto da meta, e havia até uma Leitoa afirmando que era tudo 'terrorismo econômico'."

"Mas vocês clamam pelo aumento do desemprego!", grunhiu o Porco, "a Pnad diz que já alcançou 9%. Sua culpa, Cordeiro!"

"Aí, seu Porco", respondeu o Cordeiro, "é que lhe faz falta saber ler os números. A Pnad diz que o desemprego também vem crescendo desde o meio do ano passado, e o Caged revela que a perda de empregos formais também ocorre desde aquela época."

"Você, Cordeiro, quer pôr a culpa num governo popular, cujo único erro foi ter adotado o programa adversário, que jogou o país na depressão", guinchou o Porco, já fora de si com a atitude do Cordeiro.

"Olha, seu Porco, seus colegas de vara deixaram as coisas aqui em pandarecos. Dívida crescendo, inflação em alta (mesmo com preços congelados), desemprego idem, economia em recessão, um buraco sem precedentes nas nossas contas externas. Tanto estrago que nem Dona Anta aguentou vocês e teve de chamar um Cordeiro para arrumar a bagunça."

E, já que Porco não come Cordeiro, deu-lhe as costas e o deixou chafurdando na lama.

Lula culpa colonizadores por 'atrasos na educação do Brasil'

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva provocou polêmica em Portugal ao responsabilizar o período da colonização portuguesa, até 1822, pelos problemas do sistema educacional do Brasil.

“Eu sei que isto não agrada aos portugueses, mas Cristóvão Colombo chegou a Santo Domingo (atual República Dominicana) em 1492, e em 1507 já tinha sido criada uma universidade lá. No Peru em 1550, na Bolívia em 1624. No Brasil, a primeira universidade surgiu apenas em 1922”, afirmou o ex-presidente, para quem essa demora “justifica os atrasos na educação” brasileira.

A declaração de Lula, durante uma conferência em Madri, na noite da última sexta-feira, gerou uma forte reação da imprensa portuguesa quando atravessou a fronteira entre os dois países ibéricos.

O portal Observador, um dos principais de Portugal, ironizou o assunto: “Brasileiro burro? A culpa é do (Pedro) Álvares Cabral, diz Lula”.

“De quem é a culpa pelos atrasos na educação? É dos portugueses, diz Lula”, publicou, por sua vez, o Diário de Notícias, o mais antigo jornal português.


Entre os assuntos mais comentados pelos portugueses nas redes sociais nos últimos dias, a declaração de Lula continua rendendo opiniões fortes no país europeu.

Num texto publicado no fim da tarde de segunda-feira no site do semanário econômico Oje, o colunista Diogo de Sousa-Martins diz que “não fica bem” a tentativa de atribuir “o ônus do atraso do sistema de educação brasileiro para uma colonização que abandonou o país há quase 200 anos e que nele inaugurou o ensino superior”.

Apesar de as primeiras universidades brasileiras só terem sido fundadas no começo do século 20, como a Universidade do Paraná, em 1912, e a Universidade do Rio de Janeiro, em 1920, no período colonial existiam instituições de ensino superior no país, como a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, de 1792, e a Faculdade de Medicina da Bahia, criada em 1808.

Vidas paralelas

A escolha do nome "Catilinárias" para designar o cumprimento de mandados de busca e apreensão nas casas de Eduardo Cunha e de outros figurões do PMDB é um daqueles achados felizes.

Como a cultura clássica andou perdendo prestígio nos últimos séculos, convém colocar o contexto. "Catilinárias" são os quatro discursos que o filósofo, orador e político romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) proferiu contra o senador Lúcio Sérgio Catilina (108-62 a.C.), denunciando-o por conspirar contra a República –o que era verdade.


Especialmente a primeira catilinária é uma obra-prima da retórica. Todos aqueles que tiveram o prazer de estudar um pouco de latim hão de se recordar de passagens como "Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?" (até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência) ou o ainda mais célebre "O tempora, o mores!" (ó tempos, ó costumes).

O que torna a escolha do nome particularmente feliz é o fato de páginas e páginas das acusações lançadas por Cícero contra Catilina se ajustarem como uma luva a Cunha. Em comum, ambos têm o populismo, a ganância e, principalmente, a cara de pau. Até as pedras sabiam o que eles tramavam, mas isso não os perturbava.

Cunha se mantinha no comando da Câmara e Catilina, mesmo tendo ordenado uma frustrada tentativa de assassinar Cícero na véspera, foi pessoalmente ouvir o libelo do orador, ao qual respondeu. Daí que várias frases do discurso conservam um delicioso duplo sentido histórico, como "Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem?".

Espero, porém, que o paralelismo acabe por aqui. Como Cícero não dispunha de provas irrefutáveis contra Catilina e os conspiradores, tratou de forjar um flagrante e condenou cinco carbonários à morte sem julgamento. Não foi uma atitude muito republicana deste campeão da República
.
Hélio Schwartsman

A que horas vem o povo?

Quem foi para a rua em 2013 e viu a polícia do governador Geraldo Alckmin ligar o motor das manifestações que passaram a influenciar a política nacional estarreceu-se com o resultado da pesquisa do Datafolha feita na Avenida Paulista na tarde de domingo. Há dois anos a rua foi ocupada por muita gente que ia ao Centrão de São Paulo, andava de ônibus e pedia o cancelamento de um aumento de tarifas nos transportes públicos. Domingo, pediam o impedimento da presidente da República.


A manifestação de 2013 não tinha articulações políticas, mas a de domingo era depositária das esperanças de Eduardo Cunha, que luta pela sobrevivência política e até mesmo pela liberdade pessoal. Além dele, o impedimento da doutora Dilma interessa à banda de deputados que controla, ao PSDB, a boa parte do PMDB e ao vice-presidente Michel Temer. Todos ajudaram a colocar Cunha na presidência da Câmara. Um verdadeiro saco de gatos onde entraram bichos de outras espécies

Todos sabem que o impedimento da doutora depende da rua. O Datafolha mostrou a rua que estava na Avenida Paulista.

Foram ouvidas 1.351 pessoas. Numa época em que é enorme a desilusão com o governo de Dilma, só 3% dos manifestantes haviam votado nela. Perto da metade das pessoas entrevistadas (44%) tinha renda familiar superior a R$ 7.880 mensais. Para 4%, ela era superior a R$ 39.400. (A renda média das famílias de São Paulo é de R$ 4.151.)

Havia 40 mil pessoas na rua, mas a rua não foi para a avenida. Elas não eram sequer um bloco representativo do eleitorado de Aécio Neves, apenas uma amostra do seu estrato superior. Mesmo assim, 40 mil manifestantes são gente para ninguém botar defeito. Em 1983, quando o PT quis mostrar sua força arrancando sozinho numa campanha pelas eleições diretas, levou 15 mil pessoas para a frente do estádio do Pacaembu.

Se o Brasil é uma Belíndia, uma parte da Bélgica saiu de casa, mas a Índia, que estava desacompanhada em 2013, faltou ao encontro.

Seria exagero espichar os números do Datafolha para concluir que a rua ficará fora de uma crise que vai se agravar, mas na Paulista viam-se alguns dos ingredientes que afastaram a Índia e uma parte da Bélgica desse domingo na avenida. Fazia um calor de rachar, e a tripulação de um dos carros de som abandonou a área ensolarada que lhe servia de palanque. Ligaram uma gravação aos alto-falantes e foram para a sombra.

Se 98% dos entrevistados pelo Datalha queriam que Dilma fosse embora (o óbvio), só 19% faziam fé num governo de Temer (ótimo ou bom) e 28% anteviam-lhe um desempenho ruim ou péssimo. Para 72%, Temer fará melhor que Dilma, mas 21% acham que se vai trocar seis por meia dúzia. (Numa próxima manifestação, seria bom procurar a percentagem das pessoas interessadas em mandar a Constituição de 1988 para o espaço.)

O pedaço da Bélgica que foi para a avenida é capaz de perder uma tarde de domingo para pedir a saída de Dilma, mas expõe sua incerteza em relação ao próximo passo. A confusão aumenta quando se vê que 91% dos manifestantes querem a cassação do mandato de Eduardo Cunha.

Em Brasília os sábios do tucanato articulam um provável ministério de Temer, que se mantém a prudente distância de Cunha. Todos acreditam que essa armação será consagrada pelo ronco da rua
.
Elio Gaspari 

A lama, a zika, o manicômio: retratos de um Brasil submerso


Digam o que quiserem: não há nada mais simbólico da nossa letargia política do que o rompimento da barragem em Mariana (MG). Resultado de um processo ainda mal contado de contenção e acúmulo de resíduos em local, ao que tudo indica, de espaço e estrutura inadequados, o estrago percorreu centenas de quilômetros debaixo de nosso nariz, arrastando o que havia de vida humana, animal e vegetal pelo caminho.

Parecia uma metáfora, mas era o desfile em homenagem à nossa incapacidade de prever, agir e formular respostas diante de colapsos em iminência. Levou ao oceano mais do que o cinismo de um processo histórico viciado em jogar para debaixo do tapete nossos esqueletos não enterrados. Levou para o mar a prova confessa da nossa incompetência.

A grandiosidade da tragédia é proporcional à sua transversalidade. A Samarco, empresa responsável pela barragem mal construída, é o resultado da aliança entre o capital nacional/estatal (a Vale) com o capital estrangeiro (BHP Billiton), uma herança do tempo em que desbravadores, daqui e de fora, esfolavam o que havia no entorno da riqueza e corriam para outras bandas quando o bem primário se esgotava, deixando no caminho um rastro de deserto e destruição.

Foi assim na corrida do ouro, no ciclo da borracha, na cultura do café, da cana, Da exploração do pau-brasil. Ao poder público caberia monitorar e/ou regular a exploração predatória, não fosse também parte dele, numa simbiose iniciada nas formas de financiamento de campanha que não identificam cor nem projeto, apenas prospecção e negócios.

Em 2015, a multidão viu em pânico, a multidão viu atônita, como na Rosa dos Ventos de Chico Buarque, o seu falso despertar. Porque tudo aqui opera aos solavancos, entre prisões e desbaratamento de gangues e carteis, mas recua até quando avança: nossa maior aposta para o futuro, a exploração do petróleo na camada do pré-sal, acaba de ser condenada, na Conferência do Clima em Paris, a se tornar uma riqueza do passado em desuso.

O Planeta caminha para a substituição paulatina dos gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono que se acumulam na atmosfera e causa o aquecimento global, por fontes alternativas de energia.

Estamos prontos para o debate?

Ou falar em aquecimento global será, por aqui, conversa também de petralha ou tucanalha, impossível de ser colocado à mesa como uma questão de TODOS – como é também a violência contra negros, pobres, mulheres e população LGBT?

“Foi você”. “Não, foi você”. “A culpa é sua”. “É sua”. “Canalha”. “Corrupto”. Os sopapos são proferidos em margens opostas; no meio passam toneladas de lama tóxica que fingimos não ser nossa.

Os momentos mais agudos de polarização são também os momentos mais escassos de inteligência. É nesse miolo que passam desapercebidos os falsos profetas, os falsos conciliadores, as falsas pontes para o futuro.

É o que se pode concluir quando, por exemplo, a presidenta que mentiu para se eleger passa a ser alvo do adversário derrotado nas urnas (que provavelmente não mentiu tão menos assim) e para sobreviver no cargo abre as comportas de postos-chave para aliados de ocasião.

Um deles, representante da ala rebelde da Câmara que mal assumiu o Ministério da Saúde, acaba de instalar na coordenação geral de Saúde Mental um conhecido militante da contra reforma psiquiátrica.

Anos de debates, estudos e encaminhamentos em direção à humanização do tratamento substituíram, na última década, o doente pelo usuário, o preso pela pessoa, e possibilitaram a criação, ainda insuficiente, dos chamados centros especializados de atenção psicossocial. Tudo porque, em algum momento, fomos capazes de ver a lama – e as condições desumanas, características de um holocausto, de uma fábrica de internações que encheu as burras de seus gestores e destroçou vidas lançadas às jaulas quando mais precisavam de atenção.

Fomos deixando de escutar

Me entristece o quanto fomos deixando de escutar. Deixamos de escutar as vozes que são diferentes, os silêncios que são diversos. E deixamos de escutar não porque nos rodeasse o silêncio. Ficamos surdos pelo excesso de palavras, ficamos autistas pelo excesso de informação. A natureza converteu-se em retórica, num emblema, num anúncio de televisão. Falamos dela, não a vivemos. A natureza, ela própria, tem que voltar a nascer. E quando voltar a nascer teremos que aceitar que a nossa natureza humana é não ter natureza nenhuma. Ou que, se calhar, fomos feitos para ter todas as naturezas. 


Falei dos pecados da Biologia. Mas eu não trocaria esta janela por nenhuma outra. A Biologia ensinou-me coisas fundamentais. Uma delas foi a humildade. Esta nossa ciência me ajudou a entender outras linguagens, a fala das árvores, a fala dos que não falam. A Biologia me serviu de ponte para outros saberes. Com ela entendi a Vida como uma história, uma narrativa perpétua que se escreve não em letras mas em vidas.

A Biologia me alimentou a escrita literária como se fosse um desses velhos contadores não de histórias mas de sabedorias. E reconheci lições que já nos tinham sido passadas quando ainda não tínhamos sido dados à luz. No redondo do ventre materno, já ali aprendíamos o ritmo e os ciclos do tempo. Essa foi a nossa primeira lição de música. O coração esse que a literatura elegeu como sede das paixões , o coração é o primeiro órgão a formar-se na morfogénese. Ao vigésimo segundo dia da nossa existência esse músculo começa a bater. É o primeiro som, não que escutamos — nós já escutávamos um outro coração, esse coração maior cuja presença reinventaremos durante toda a nossa existência —, mas é o primeiro som que produzimos. Antes da noção da Luz, o nosso corpo aprende a ideia do Tempo. Com vinte e dois dias, aprendemos que essa dança a que chamamos Vida se fará ao compasso de um tambor feito da nossa própria carne.

Mia Couto

Subversiva

A poesia
Quando chega
Não respeita nada.

Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos

Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha

Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.

E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo

Os que têm sede de felicidade
E de justiça.

E promete incendiar o país.

Ferreira Gullar

O Supremo e os holofotes


Se você perguntar a um inglês, alemão ou americano o nome dos juízes da Corte mais alta do seu país, a maioria não saberá. Se buscar na internet entrevistas dos ministros da Suprema Corte americana, vai encontrar alguma coisa de quatro ou cinco anos atrás, na qual falam para publicações especializadas sobre as funções da Corte. Nenhuma entrevista sobre questões políticas ou assuntos presentes nas manchetes. Muito menos, sobre processos em curso.

Nas democracias dos países desenvolvidos, existe a preocupação em manter a confidencialidade dos trabalhos das altas Cortes. Já no Brasil, os ministros do Supremo são presença constante nos meios de comunicação. Alguns — nem todos, é preciso frisar — concedem entrevistas frequentes sobre os mais diferentes aspectos da vida nacional. Discutem o noticiário, comentam as implicações de divergências políticas e opinam sobre questões que serão julgadas pela Corte.

Em contraste com a aversão aos holofotes dos colegas europeus e americanos, determinados ministros brasileiros não conseguem esconder a satisfação com a atenção da mídia e o prestígio inerente ao universo dos poderosos e influentes.

Cada país tem suas instituições e tradições, a sua forma de conduzir as coisas. Segundo o cientista político da USP Celso Roma, na tradição americana existe a crença de que “quando os julgamentos são televisionados, os juízes perdem o anonimato e, à semelhança dos chefes de governo e parlamentares, passam a ser julgados pela opinião pública, com base em preferências e ideologias... Enfim, para eles, com excessiva publicidade dos processos, a independência e a segurança do Judiciário podem ser ameaçadas. O populismo jurídico é um perigo.”

A filosofia da Suprema Corte brasileira é distinta, e a maior transparência também traz vantagens. O televisionamento do julgamento do mensalão, verdadeiro divisor de águas, não foi só fundamental para a conclusão efetiva daquela ação, mas para a evolução das práticas políticas no país. Somos uma sociedade ainda desigual e uma democracia recém-consolidada. No nosso caso, a maior transparência nos processos da Corte Suprema pode ser um ponto a favor da isenção das deliberações.

Mas tudo é uma questão de grau. Não há que se confundir transparência com espetáculo, independência com personalismo, destemor com vaidade.

O país mergulha em uma assustadora espiral de deterioração da economia. A opinião pública assiste perplexa à podridão desvendada pela Lava-Jato. A atividade parlamentar alcançou nível singularmente disfuncional. O Poder Executivo se mostra inerte, inepto e incapaz. A paralisia do Executivo e do Legislativo se traduz na “judicialização da política”, transferindo as mais graves questões da vida nacional para a deliberação do STF. Nunca dependemos tanto da Corte e de seus integrantes.

O perigo deste momento sem precedente é que alguns ministros sejam tomados pelo fascínio do protagonismo e da paixão partidária. O risco é que se deixem contaminar pelo espírito do “deixa comigo que eu chuto” e queiram legislar, em vez de exercer a função constitucional de interpretar as leis existentes.

Talvez seja demais esperar que voltemos a ser um país no qual a maioria dos habitantes não sabe, nem precisa saber, os nomes dos ministros da Corte Suprema. Ainda assim, diante da gravidade da crise, os brasileiros esperam dos ministros do Supremo neste momento não apenas saber jurídico, mas equilíbrio, independência, sobriedade e grandeza.

As vacas sagradas dos políticos e empresários

Na Índia, a vaca é considerada um animal sagrado. Assim, não pode ser morta, ferida e tem passe livre para circular, sem ser incomodada, pelas ruas das principais cidades do país. Na crença hinduísta, muitos deuses têm animais como montarias, e estes se tornam sacros. A vaca é considerada a montaria de um dos deuses mais populares do país, o Shiva, responsável pela renovação. Desta forma, não convide um indiano para um churrasco, pois a gentileza poderá ser considerada uma ofensa.

No Brasil, porém, o bovino não tem essa conotação mística. Ao contrário, o gado e seus subprodutos frequentemente explicam transações econômicas, no mínimo estranhas.

O ex-governador do Distrito Federal Joaquim Roriz, por exemplo, foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios por improbidade administrativa no caso conhecido como Bezerra de Ouro. Em 2007, quando era senador, ele descontou dois cheques do fundador da Gol, Nenê Constantino, no Banco de Brasília (BRB), no valor de R$ 2,2 milhões. A operação foi considerada estranha, pois nenhuma das partes tinha conta no BRB, levantando a suspeita de lavagem de dinheiro. Na época, Roriz afirmou que pegou o dinheiro emprestado para comprar o embrião de uma bezerra de raça, em São Paulo.


O presidente do Senado, Renan Calheiros, também responde no Supremo Tribunal Federal (STF) à acusação de improbidade administrativa. A ação remonta a um caso de 2007, que levou Renan à renúncia do cargo de presidente do Senado. A Procuradoria da República no Distrito Federal considera que o senador recebeu propina da construtora Mendes Junior para pagar despesas pessoais de relação extraconjugal com uma jornalista, com quem Renan tem uma filha. Na ação consta que um lobista da empreiteira fazia os pagamentos à jornalista e, em contrapartida, a construtora era beneficiada por emendas parlamentares apresentadas pelo senador.

Para comprovar que tinha condições de arcar com os gastos sozinho, o senador apresentou notas fiscais de vendas de bois. Mas a Polícia Federal concluiu que aqueles documentos não garantiam recursos para quitar a pensão alimentícia e aluguéis e, ainda, que os papéis não comprovavam a venda de gado. Assim, além das investigações da Lava-Jato relativas ao senador, seria interessante o STF concluir o julgamento do caso que ficou conhecido como “os bois de Alagoas”.

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que tenta salvar a sua pele no Conselho de Ética da Casa, é acusado de ter recebido cerca de R$ 5 milhões em propina do esquema de corrupção na Petrobras. A defesa do deputado alega que antes de entrar na vida pública — no começo dos anos 90, quando assumiu a presidência da Telerj — Cunha descobriu um verdadeiro filé mignon: a venda de carne processada e enlatada em consignação para países africanos. Desta forma, com os lucros da carne enlatada e de aplicações financeiras, o deputado abriu dois “trustes” e não contas no exterior. O truste consiste na entrega de um bem ou valor a uma instituição para que seja administrado em favor do depositante ou de outra pessoa por ele indicada. A história está apenas começando. Vale lembrar que até hoje Maluf afirma não ter dinheiro no exterior...

Mais recentemente, o pecuarista amigo de Lula José Carlos Bumlai — o homem que tinha “passe livre” no Palácio do Planalto — foi preso por suposta operação fictícia de dação de “embriões de gado de elite” para agropecuárias do Grupo Schahin. Esse contrato de sêmen de boi com o grupo seria a forma de simular a quitação formal do empréstimo de R$ 12 milhões concedido em 2004 pelo banco ao pecuarista. O dinheiro, que nunca foi devolvido para a Schahin, teria abastecido os cofres do PT e campanhas do partido, entre elas a reeleição do ex-presidente Lula, em 2006, conforme suspeita a força-tarefa da Operação Lava Jato. Ao que indicam as delações premiadas, o valor de R$ 12 milhões dados a Bumlai em 2004 foi pago com um contrato de operação do navio-sonda Vitória 10.000, dirigido irregularmente para a Schahin. A dação de sêmen é conversa para boi dormir.

Até o fim da Lava-Jato, o rebanho de inocentes que se defende com o gado deve aumentar. Para o Ministério Público, em muitos casos, tem boi na linha. As relações de alguns desses políticos/empresários com a pecuária parecem ser semelhantes às de um indiano com uma picanha malpassada.

Na Índia, outros animais também são santificados. O rato, por exemplo, é considerado a montaria do Deus Ganesh. Mas esta é uma outra história....

Gil Castello Branco 

O que o Acordo de Paris significa para o Brasil?

O Brasil teve um papel importante nas negociações da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP21). Mas as metas brasileiras, apesar de ambiciosas, são insuficientes para cumprir o acordo universal firmado no último sábado, em Paris, avaliam especialistas ouvidos pela DW Brasil.

O Acordo de Paris, que entrará em vigor até 2020, tem como objetivo limitar a elevação da temperatura a "bem abaixo" de 2ºC em relação ao nível pré-industrial e "perseguir esforços para limitar o aumento a 1,5ºC". Para isso, os países se comprometeram em reduzir as emissões de gases de efeito estufa nos próximos anos, com planos nacionais descritos nas chamadas INDCs (sigla em inglês para Contribuições Pretendidas Nacionalmente Determinadas).


Apresentada em setembro pela presidente Dilma Rousseff na Assembleia Geral da ONU, a promessa do Brasil – um dos dez maiores emissores do mundo – inclui uma redução de 37% nas emissões até 2025, e de 43% até 2030, com base nos níveis registrados em 2005.

"É um plano ambicioso e tem a direção correta, porque coloca uma meta de redução absoluta. Isso serve de exemplo a outros países", diz Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima. "Mas o nível de redução é insuficiente. É possível fazer muito mais."

Márcio Astrini, coordenador de políticas públicas do Greenpeace, concorda. "O plano já era fraco antes do Acordo de Paris. Com o acordo, ele ficou com uma cara ainda mais enfraquecida", afirma o especialista, acrescentando que o país se encontra hoje na contramão de alguns dos pontos positivos do pacto firmado na COP21.

Um exemplo é o reconhecimento dos direitos indígenas pelo Acordo de Paris, algo "inédito em negociações desse tipo". Para Astrini, "no Brasil, os índios vivem em seu pior momento na relação com os poderes Executivo e Legislativo". "Querem fazer mineração em suas terras. Inundá-las com hidrelétricas. Nunca tiveram seus direitos tão ameaçados", afirma.

Para os especialistas, as metas brasileiras devem ser revistas ainda em outro fator: o do desmatamento, que hoje é a maior fonte de emissão de gases de efeito estufa no país.

Na INDC, o governo se compromete a pôr fim no desmatamento ilegal até 2030. Para Rittl, "esse prazo é incompatível com a emergência climática". "É inaceitável que o país viva por 15 anos com ilegalidades na questão florestal. Não podemos basear nossas metas em cumprir a lei somente daqui a 15 anos", acrescenta Astrini.

Segundo Maureen Santos, coordenadora de justiça socioambiental da Fundação Heinrich Böll no Brasil, não é só o desmatamento ilegal que deveria preocupar as autoridades. "Com o Novo Código Florestal Brasileiro [lei de 2012], foi aprovada uma forma de desmatamento legal, que também é muito preocupante."

O coordenador do Greenpeace concorda que, para combater as mudanças climáticas mais efetivamente, seria essencial uma "política de desmatamento zero". "Acabar de vez com o desmatamento no Brasil é a forma mais prática de diminuir emissões."