Sim, meu filho, a Terra tem lógica. Ela trata com canhestra igualdade todos os seus filhos.
Como assim?
É simples. Nas fábulas modernas, certas coletividades que se constituíram como nações e projetaram seus valores num dado espaço geográfico, tornando-o soberano, e com a invenção de uma estrutura chamada “tecnologia”, conseguiram entender e dominar as riquezas do planeta de modo mais “eficiente” do que outras. Impressionados com o avanço material, consideramos essas nações mais “adiantadas”, “educadas”, “sensíveis” e “ricas”. E, no entanto, são elas as que mais destruíram florestas, rios, montanhas e sociedades tribais que faziam parte do seu “Estado-Nacional” mas que se recusam a fazer parte do seu sistema de valores.
O problema, como já afirmou o velho Freud, que disse quase tudo, não é a tecnologia; é a ingenuidade de pensar que a prótese resolve problemas éticos quando, na realidade, ela engendra outras questões, pois não há como escapar do real.
E haja planeta para fornecer tanto ferro, madeira, carvão, gasolina, algodão, fumo, álcool, açúcar, água e oxigênio para fabricar e sustentar tal modo de viver. Um estilo no qual cada povo se vê como exclusivo e escolhido. A diferença para mais sendo prova de preferência. Um certificado de sucesso cósmico.
A diferença entre “adiantados” e “atrasados” foi originalmente dada numa escolha divina; mas, em seguida, substituída por estilos de vida individualizados e competitivos: progressistas. As próteses substituíram os deuses e os feiticeiros. O revólver no lugar do arco e flecha; o canhão em vez da catapulta, o banco como igreja, o livro do “como fazer” em vez de mitos. Convenhamos que uma bomba de hidrogênio é bem melhor do que a bomba atômica. Aliás, é tão boa que não pode ser usada sob pena de destruir tudo.
Eis a prótese de todas as próteses!
Mas, professor, como é que a igualdade do planeta se manifesta?
Ela se exprime impedindo os adiantados de respirar, como é o caso da China. Na velha Pequim, as pessoas não podem mais fazer exercícios ao ar livre porque o ar empesteado do progresso chinês, engajado em construir suas próteses, não deixa. O progresso vai inibir o próprio progresso.
A Mãe-Terra não é comunista nem capitalista, nem fascista nem anarquista, islamita ou cristã. Ela apenas reage a seu modo e como um gigantesco organismo vivo aos micróbios que a atingem. Um terremoto é um comichão, uma tsunami, uma golfada, um tufão, um espirro, uma nevasca um resfriado, um calor infernal, uma febrezinha...
Eis que tais fenômenos antigamente chamados de meteorológicos e “naturais” são hoje cosmopolíticos. Os polos degelam em virtude do aquecimento oceânico, o qual está ligado ao volume atmosférico. Ou seja, como rezavam os mitos, há mesmo um elo profundo entre céu e terra; terra e mar, animalidade e humanidade. Nada é isolado ou pode ser apenas reduzido como gosta de ensinar o nosso método de ler a vida.
A Mãe Terra não tem alvo, como as vossas ideologias, religiões e sistemas. Ela revela, em vez de mistificar, como costumam fazer as crenças. Com isso, as catástrofes agora anunciadas passam a ser gêmeas do “progresso”. E a questão é enxergar que o progresso não é mais o pai domesticador de uma natureza bruta e selvagem, mas o seu algoz. Existe algo mais perverso que essa construção de um futuro que destrói, como o caso das Ilhas Marshall (que afundam), do desmatamento da Amazônia e do lamaçal que virou a mineração nas antigas Minas Gerais?
Como não confundir expansão técnica com avanço moral? Como reconhecer que alta tecnologia não é sabedoria? E, neste contexto, deter a doença do planeta?
Existem imensas dúvidas e um poder muito pequeno para implantar decisões efetivas. Se não conseguimos liquidar as guerras, os genocídios e as pestes, como redirecionar um estilo de vida — vale dizer, um conjunto habitual de práticas e valores sociais, a maioria concebidos como “naturais”, “normais” e|“sagrados”?
No Brasil, atingimos o limite. E o limite é a lei, que seria o guia numa sociedade de iguais, mas que atua como uma clara aristocracia. Neste momento, a nossa questão não é somente a dos humanos destruindo a natureza, mas é saber se temos mesmo uma natureza humana; ou seja, um mínimo de bom senso para sobrevivermos a essa avalanche de contrassenso produzido pelo nosso modo de manipular o poder.
Roberto DaMatta
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