sexta-feira, 29 de novembro de 2019

'Racismo ganha terreno no Brasil'

“Reconhecemos que a escravidão e o tráfico escravo, incluindo o tráfico de escravos transatlântico, foram tragédias terríveis na história da humanidade, não apenas por sua barbárie abominável, mas também em termos de sua magnitude, natureza de organização e, especialmente, pela negação da essência das vítimas; ainda reconhecemos que a escravidão e o tráfico escravo são crimes contra a humanidade e assim devem sempre ser considerados, especialmente o tráfico de escravos transatlântico, estando entre as maiores manifestações e fontes de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata; e que os Africanos e afrodescendentes, Asiáticos e povos de origem asiática, bem como os povos indígenas foram e continuam a ser vítimas destes atos e de suas consequências”.

Inspirados na Declaração de Durban, transcrita acima, e adotada como marco referencial no mundo na luta contra o racismo, tendo sido publicada quando da realização da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em 2001, na África do Sul, nós que tivemos a honra de presidir a Fundação Cultural Palmares, em períodos os mais distintos, consideramos que a continuidade da luta pela promoção da igualdade racial no Brasil é um imperativo de toda e qualquer pessoa ou instituição que acredite na democracia, nos direitos humanos, na cidadania e na liberdade.


A Fundação Cultural Palmares foi criada, em 1988, ano do Centenário da Abolição da Escravatura com este propósito: “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”, visto que as sequelas oriundas do período escravocrata em nosso país, deixou um legado de racismo, exclusão e discriminações que persistem até os dias atuais, vitimando milhões de pessoas, em particular a juventude negra que tem sido alvo de um verdadeiro genocídio, reconhecido até mesmo pela Nações Unidas. 

O momento atual que estamos vivendo é preocupante e requer coragem, ousadia e determinação na defesa do processo civilizatório, tanto no Brasil como em grande parte do mundo. Por isto mesmo, devemos recusar com toda a veemência quaisquer ideias ou propostas que ponham em risco conquistas duramente alcançadas nos últimos anos no campo da promoção da igualdade e dos direitos humanos, em particular no que diz respeito à Educação (cotas no ensino superior), à terra (reconhecimento dos quilombos), à cultura (reconhecimento das manifestações culturais de origem negra enquanto patrimônio cultural brasileiro e mundial) e o direito à liberdade religiosa. 

A Fundação Palmares é uma instituição do Estado brasileiro e não um biombo para servir a interesses contrários aos objetivos para os quais ela foi criada. Neste sentido, expressamos nossa preocupação com o fato de que, além do racismo estar ganhando terreno no Brasil, as formas e manifestações contemporâneas do racismo, da intolerância e do fascismo, estão se empenhando para recuperar o reconhecimento político, moral e, até mesmo, legal das mais variadas maneiras, inclusive, por meio de plataformas de partidos políticos e organizações que tem disseminado o ódio, a violência e a negação dos direitos mais elementares do nosso povo.

Por fim, ao tempo em que nos manifestamos de forma contundente contra a tentativa de criminalização dos movimentos sociais, dentre eles o movimento negro brasileiro, a destruição das instituições tão duramente conquistadas como a Fundação Cultural Palmares e as Políticas Públicas de Cultura decorrentes de suas iniciativas, reafirmamos o nosso compromisso com a democracia e conclamamos a todos os democratas, progressistas, anti-racistas e a comunidade negra brasileira a se unirem na defesa do nosso bem maior que o é o Estado Democrático de Direito e claro, a defesa da Promoção da Igualdade Racial em nosso país.

Brasília, 28 de novembro de 2019
Carlos Moura, Dulce Maria Pereira, Zulu Araújo, Eloi Ferreira, Hilton Cobra, Erivaldo da Silva, ex-presidentes da Fundação Palmares

Paraguai ensina uma lição ao expulsar senador extremista

Quando senadores paraguaios abriram o primeiro processo contra Payo Cubas, em abril, um parlamentar fez um alerta. Ele disse que o colega tinha as características do fascismo, do autoritarismo e da intolerância. Acrescentou que, se nenhuma medida fosse tomada, aquele “monstrinho” cresceria.

Cubas foi suspenso do Senado por dois meses. Ele recebeu a punição por ter xingado outros legisladores e por ter atirado copos d’água no chefe da Polícia Nacional e no ministro do Interior durante uma reunião.


Depois das férias forçadas, sem receber salário, a criatura voltou ainda mais abominável. Nesta quinta, ele foi cassado por ter defendido o assassinato de “pelo menos 100 mil brasileiros” que vivem no país e por ter dado um tapa num policial.

Os paraguaios ensinam uma lição. Cubas é o típico agitador que explora o marketing do ódio como ferramenta política. Os senadores preferiram expulsá-lo do Parlamento a permitir que abusasse do cargo para chafurdar nos próprios desatinos.

No Brasil, políticos boquirrotos fazem fama até chegar ao topo do poder. Deputados com discursos racistas ficam protegidos pelo recurso à imunidade parlamentar.

O caso mostra que não se deve aplicar leniência a agentes públicos que, a distância, podem parecer meros polemistas. O senador já havia tentado chamar a atenção quando ameaçou jogar uma banana num colega ou quando atirou água de uma garrafa noutro. Agora lançou uma propaganda nitidamente extremista.

Cubas é membro do Movimento Cruzada Nacional. O repórter Fábio Zanini, que contou a história da cassação, destaca que uma das bandeiras do partido é o combate à presença estrangeira no Paraguai. Nessa onda, Cubas disse que brasileiros deveriam ser mandados ao “paredão”.

O senador cassado ainda tentou surfar no episódio. Escreveu que deixava o “Parlamento sombrio” rumo ao “país que todos merecemos”. Alguns paraguaios lhe deram apoio. Caberá aos eleitores evitar o crescimento de outros monstrinhos.

Flerte de morte

O que gera mais preocupação pra mim é o descaso do Governo com as questões sociais. Não tem nenhuma preocupação com o povo desempregado, com o povo que está morando nas ruas, com o desmatamento da Amazônia. Não tem nenhuma preocupação com o meio ambiente ou com o petróleo que está chegando nas praias do Nordeste. Pra ele, não existe isso. Ele é um cidadão vocacionado a não gostar das coisas que a humanidade gosta. Por exemplo, a humanidade gosta de paz. Ele quer guerra. A sociedade brasileira precisa de livros e de carteira de trabalho, ele quer dar arma para o povo. O Brasil é um país que não tem contencioso com nenhum país do mundo. Ele quer fazer contencioso e apenas se submetendo da forma mais vergonhosa possível aos americanos, coisa que o Brasil jamais fez. Eu acho que ele não se preparou para exercer o cargo de presidente
Lula

A penúltima de Jair Bolsonaro: um negro racista

Sob Jair Bolsonaro, há um adorador da ditadura na Presidência, um antiambientalista no Ministério do Meio Ambiente, um antidiplomata no Itamaraty, um deseducado na pasta da Educação e um inimigo dos artistas na Secretaria de Cultura. Quando se imaginava que o governo já havia atingido o ápice do contrassenso, sobreveio o escárnio: um negro racista no comando de uma entidade criada para zelar pelos interesses da comunidade afrodescendente.

Chama-se Sérgio Camargo. Jornalista, foi acomodado na presidência da Fundação Palmares, que tem entre os seus objetivos: promover e apoiar a integração cultural, social, econômica e política dos afrodescendentes. Os pensamentos vadios do personagem estão disponíveis na vitrine das redes sociais.

Sérgio Camargo avalia que "não há salvação para o movimento negro. Precisa ser extinto! Fortalecê-lo é fortalecer a esquerda". Espanto! Para ele, "a escravidão foi terrível, mas benéfica para os descendentes". Pasmo! Sustenta que "os negros do Brasil vivem melhor que os negros da África". Estupefação!



Uma das metas do novo presidente da Fundação Palmares é abolir o Dia da Consciência Negra, que "celebra a escravização de mentes negras pela esquerda". Procurado, absteve-se de esmiuçar sua antiplataforma numa entrevista. Mas a Secretaria da Cultura, que abriga em seu organograma a Fundação Palmares, parece dar-lhe carta branca.

Em nota, a secretaria esclareceu que Sérgio Camargo defende que o negro não precisa ser vítima. Tampouco precisa ser de esquerda. Trabalha para alcançar a libertação da mentalidade que escraviza ideologicamente os negros. Uma de suas prioridades é desaparelhar a Fundação Palmares.

O Hino à República, aquele que pede à liberdade que "abra as asas sobre nós", diz a certa altura: "Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre país..." Alguns versos adiante, proclama: "Somos todos iguais". O hino foi escrito pelo poeta pernambucano Medeiros e Albuquerque em 1890.

Dois anos antes, ainda havia escravos no Brasil. Decorridos 129 anos, eles continuam existindo. Sergio Camargo, por exemplo, está acorrentado à mesma mentalidade que faz do governo Bolsonaro não um fenômeno conservador, mas um flagelo arcaico. Instado a comentar a nomeação de Sérgio Camargo, o presidente da República economizou palavras: "Não conheço pessoalmente".

É uma pena que Jair Bolsonaro não conheça Sérgio Camargo. Vivo, o grego Sócrates, de passagem por estas anacrônicas ágoras tropicais, repetiria para o capitão um de seus célebres ensinamentos: "Conhece-te a ti mesmo". Um encontro de Bolsonaro com o presidente da Fundação Palmares será como uma espiada no espelho.

Se prezasse seu ofício de jornalista, Sérgio Camargo talvez percebesse que o melhor engajamento político é o de retratar a estupidez humana, usando a habilidade verbal para produzir um testemunho contra. Mas ele parece ter optado por denunciar a estupidez praticando-a.

Pensamento do Dia


Quando renunciará Guedes?

Caros brasileiros,

Quando um político tem que entregar o seu cargo? Quando cometeu um delito e foi condenado? Quando faltou decoro para o cargo? Quando se envolveu num escândalo? Ou simplesmente quando perdeu o apoio político?

No Japão, por exemplo, o ministro encarregado dos Jogos Olímpicos de 2020 em Tóquio, Yoshitaka Sakurada, teve que sair por falta de tato e decoro. Em fevereiro, ele havia dito que “estava muito decepcionado” com o diagnóstico de leucemia da nadadora Rikako Ikee. A ausência da potencial vencedora de uma medalha de ouro, disse ele, reduziria a euforia pelos Jogos.

Alguns meses depois, Sakurada pisou outra vez na bola e ofendeu a população de Fukushima. A região, que foi devastada por um terremoto e a catástrofe nuclear em 2011, continua abandonada. Mesmo assim, Sakurada afirmou que "a política é mais importante que a recuperação da região".

Na Inglaterra, quem renunciou este ano foi a primeira-ministra Theresa May, que não conseguiu o apoio necessário no Parlamento para seu acordo costurado com Bruxelas sobre o Brexit. Na Franca, o ministro do Meio Ambiente François de Rugy teve que renunciar em julho, acusado de desperdício de dinheiro público.

Na Alemanha, durante o governo da chanceler federal Angela Merkel, dois ministros tiveram que deixar os seus cargos, pois foi descoberto que parte das suas respectivas teses de doutorado eram plagiadas. Primeiro foi o ministro da Defesa, Karl-Theodor zu Guttenberg, em 2011, e depois a ministra de Educação e Ciência, Annette Schavan, em 2013.


E no Brasil? Em poucos meses do governo Bolsonaro, vários ministros já entraram na dança das cadeiras. Uma das saídas mais destacadas foi a do general Santos Cruz, da Secretaria de Governo. A baixa ocorreu após críticas do filósofo Olavo de Carvalho à ala militar do governo.

Saíram também Joaquim Levy, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e Ricardo Vélez, ministro da Educação a quem o próprio Bolsonaro atestou "falta de expertise".

O próximo na fila deveria ser o ministro da Economia Paulo Guedes. Um membro do gabinete que publicamente desmerece instituições democráticas, a meu ver, não poderia mais fazer parte do governo da quinta maior democracia do mundo.

Até agora, as críticas a respeito da declaração de Guedes sobre uma possível edição de um novo AI-5 no país foram contundentes. Mas, apesar do repúdio das instituições democráticas no Brasil, o ministro de Economia não parece estar ciente da gravidade política de suas palavras.

Não dá para relativizar: a meu ver, o que Paulo Guedes fez foi ameaçar com a volta de uma ditadura militar. Com isso, ameaçou acabar com a liberdade de expressão, a volta da tortura, e desmereceu instituições democráticas como o Congresso Nacional e uma Justiça independente. Como se não bastasse, ele ainda fez isso sem nenhuma razão concreta, simplesmente por uma raiva irracional de uma esquerda política supostamente agitada.

É como se um ministro alemão ameaçasse com a volta dos nacional-socialistas caso houvesse manifestações de grupos de esquerda ou de ativistas que alertam para a mudança climática. Provavelmente, nem o partido de extrema direita AfD (Alternativa para a Alemanha) teria coragem de reivindicar isso publicamente.

A declaração de Paulo Guedes sobre o AI-5 é absurda e intolerável. As palavras mostram falta de consciência democrática e de respeito para com os próprios cidadãos brasileiros. Elas espantam até os próprios adeptos da agenda neoliberal perseguida pelo ministro.

Paulo Guedes tem que renunciar. Na Alemanha, um ministro que deseja a volta da ditadura nazista teria que sair da mesa do gabinete no mesmo instante. As fantasias ditatoriais desse ministro tem que ser banidas pelo governo. Tomara que a "possível radicalização dos protestos de rua no Brasil", que ele tanto teme, acelere a renúncia dele.
Astrid Prange de Oliveira

A opressão de hoje

Antigamente o que oprimia o homem era a palavra calvário; hoje é salário
Carolina Maria de Jesus

Incêndios na Amazônia derretem geleiras andinas

Os incêndios que destroem a floresta e a savana amazônicas têm outro efeito bem longe dali: o derretimento das geleiras andinas. Essa é a conclusão de um estudo que mostra como a fuligem das queimadas viaja pelo ar até a cordilheira e, ao se depositar sobre o gelo, aumenta a radiação solar que retém ― acelerando sua fusão. O foco do trabalho foi um pequeno glaciar, mas seus resultados poderiam ser reproduzidos nas centenas de geleiras dos Andes, já castigadas pela mudança climática.

Em 23 de agosto de 2010, houve 148.946 incêndios na região amazônica. Aquele inverno foi o pior do século em relação aos fogos. Inclusive pior que o deste ano. A fumaça, repleta de fuligem e carvão preto da combustão, nublou os Andes, como mostra o arquivo de imagens de satélite da NASA. Dias depois da onda de fogos daquele ano, houve um pico de descarga de água procedente de várias geleiras. Agora, cientistas brasileiros e franceses ligaram os pontos.

Num trabalho publicado na revista Scientific Reports, os pesquisadores reuniram os dados existentes sobre os incêndios registrados neste século na região amazônica. A imensa maioria ocorreu entre agosto e outubro, quando acontece a transição entre as estações seca a chuvosa. Nesses meses, a escassez de precipitações impede que a água arraste a fuligem das queimadas. Estima-se que a queima da terra na América do Sul produza cerca de 800.000 toneladas de fuligem por ano.
A fumaça dos incêndios do inverno de 2010 cobria
boa parte da encosta oriental dos Andes.MODIS/NASA
Para complicar as coisas, nos meses da temporada de incêndios os ventos dominantes a região, até então do oeste, deslocam-se para leste/noroeste em direção aos cumes andinos. Para saber aonde a coluna de fumaça se dirige, os cientistas também analisaram mais de 2.000 trajetórias de fumaça nesses meses entre 2000 e 2016. Com os dados, criaram um modelo de deposição de partículas de carbono preto sobre o gelo que indicou como essas impurezas reduziam seu efeito albedo, ou seja, sua capacidade de refletir a radiação solar.

Os pesquisadores aplicaram o modelo a Zongo, uma pequena geleira da cordilheira Real, porção boliviana dos Andes. Ali, os glaciologistas franceses (alguns deles coautores do estudo) têm uma base da qual saíram os dados sobre as partículas de fuligem acumuladas no gelo e a descarga anual em forma de água perdida pela geleira. Para cada metro quadrado de gelo em 2010, indica a pesquisa, havia em sua camada mais superficial 1,17 miligrama de carbono preto. Em termos de concentração, em setembro daquele ano havia 73,4 partes de fuligem por um bilhão de partes de matéria (ppb). A cifra caiu para 29,2 ppb em outubro.

Os pesquisadores aplicaram o modelo a Zongo, uma pequena geleira da cordilheira Real, porção boliviana dos Andes. Ali, os glaciologistas franceses (alguns deles coautores do estudo) têm uma base da qual saíram os dados sobre as partículas de fuligem acumuladas no gelo e a descarga anual em forma de água perdida pela geleira. Para cada metro quadrado de gelo em 2010, indica a pesquisa, havia em sua camada mais superficial 1,17 miligrama de carbono preto. Em termos de concentração, em setembro daquele ano havia 73,4 partes de fuligem por um bilhão de partes de matéria (ppb). A cifra caiu para 29,2 ppb em outubro.

Com essas cifras, os autores do estudo estimam que, sozinha, a fuligem pode ter reduzido o efeito albedo em até 7,2%. Se a isso for somada a poluição procedente de outras fontes, incluindo pó e poluição urbana, a porcentagem de redução poderia chegar a 20,2%. A consequência é um maior degelo: “Estimamos que entre 3% e 4% da fusão da geleira se deva aos incêndios”, afirma por e-mail o pesquisador Newton de Magalhães Neto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Embora o resultado só possa ser aplicado a essa geleira, os autores acreditam que os incêndios também agravariam o degelo de outros glaciares andinos.

“A neve pode refletir até 85% da radiação solar, ao passo que o efeito albedo do gelo é menor: entre 30% e 40% da radiação”, recorda Francisco Navarro, físico da Universidade Politécnica de Madri e presidente da Sociedade Glaciológica Internacional. Entre os elementos que mais podem reduzir o albedo, estão a poluição oriunda das atividades humanas e o pó dos desertos. “Mas a redução máxima é gerada pelas erupções vulcânicas, em especial se o vulcão tem uma geleira associada. Então o albedo pode diminuir em até 50%”, afirma Navarro.

Navarro diz que a maioria das geleiras andinas, como Zongo, é pequena e de montanhas muito altas. “Portanto, o efeito será local [afetando as reservas de água para as comunidades localizadas ao pé da encosta], mas não global”, afirma. Além disso, como acontece com as erupções, os incêndios são mais ou menos pontuais. “Para as geleiras, o global é o aquecimento da atmosfera com a mudança climática, e o pontual são os vulcões e os incêndios”, completa.
Miguel Ángel Criado

Livros, gatos, capivaras

Como já contei aqui, faço há alguns meses um podcast com a Isabella Saes, que conheci nos meus tempos de rádio (OK, foram apenas as quintas-feiras de pouco menos de um ano, mas dá gosto dizer isso, “meus tempos de rádio”); eu era convidada semanal num programa que a Isabella apresentava diariamente, e gostamos tanto do papo que, quando ela precisou se afastar da emissora, decidimos continuar a conversa por conta própria.

Aos poucos, o “Aquelas duas” começa a tomar corpo. Anteontem, por exemplo, fomos conversar com professores da rede pública de ensino no Encontro do Educador, uma espécie de extensão da Ler— Salão Carioca do Livro que, na semana passada, levou 185 mil pessoas à Biblioteca Parque e ao Campo de Santana.

O espaço da Biblioteca Parque não podia ser mais bonito. É ao mesmo tempo amplo e acolhedor, e foi uma alegria vê-lo funcionando tão bem. Havia menos gente do que imaginávamos —muitos professores que viriam do interior do estado ficaram retidos por causa de chuvas torrenciais —, mas ainda assim tivemos uma ótima plateia, atenta e interessada.

O salão da Ler é uma espécie de pequena Bienal, uma miniFlip em que autores e leitores se reúnem festejando livros, ideias e a arte de contar histórias. Por isso o nosso podcast estava lá: porque é disso que ele é feito, afinal. Uma palavra que puxa a outra, uma conversa, muitos ouvidos numa roda em que cada ponto está num lugar diferente.

No primeiro andar da Biblioteca Parque há sofás vermelhos para acolher leitores. Num deles, um siamês dono da casa lambia caprichosamente as partes. Lindo, bem cuidado, pelo visto aceito tanto por funcionários quanto por frequentadores. Não há nada mais civilizado do que um gato numa biblioteca, e fiquei encantada ao vê-lo lá: uma cidade em que gatos e livros se misturam ainda tem salvação.

Uma das professoras me perguntou o que estou lendo e o que recomendaria para os seus alunos.

Estou lendo “The buried”, de Peter Hessler, que escolheu morar no Cairo pouco antes da Primavera Árabe, e que conta como é a vida num lugar em geral caótico num momento de caos excepcional. Hessler, que eu já conhecia de “River Town”, memórias do tempo em que era professor de inglês numa pequena cidade chinesa, descobre personagens fascinantes, encontra paralelos entre a história contemporânea e o tempo dos faraós, e traça o retrato de um país inábil que, por vezes, lembra desconfortavelmente o Brasil.

Para os alunos da professora, supondo que já seriam jovens, recomendei “Enfim, capivaras”, de Luisa Geisler. Comecei a leitura atraída pelo título e pela linda capa de Deco Farkas, mas a história me ganhou: cinco adolescentes passam a noite movidos a refrigerantes, álcool e comida malsã à caça de uma capivara que pode ou não ser real, numa cidade do interior que pouco tem a lhes oferecer. É uma delícia.

Há duas semanas, o livro foi censurado numa feira de literatura numa cidade do interior gaúcho por “linguajar inadequado”. Não sei como fala a garotada de Nova Hartz, mas as personagens de “Enfim, capivaras” falam exatamente como adolescentes.

Pobres desses meninos e meninas criados num ambiente tão obscurantista.

Pobres de nós.
Cora Rónai