segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Bolsonaro acabou com o Bolsa Família

O programa Bolsa Escola, matriz do Bolsa Família, foi uma proposta do economista José Márcio Camargo, apresentada pela primeira vez em uma reunião do "governo paralelo" do PT em 1991. Camargo havia se aproximado do PT por meio de Eduardo Suplicy, cuja proposta de renda mínima tinha semelhanças óbvias com a do economista. O debate entre os dois sobre que setor deveria ser beneficiado primeiro com transferências de renda —crianças em idade escolar (Camargo) ou idosos pobres (Suplicy)— foi publicado nesta Folha em 26 de dezembro de 1991.

O Bolsa Escola foi incluído no programa de governo de Lula de 1994 (p. 173). O programa foi implementado no governo do então petista Cristovam Buarque em Brasília em 1995 e trazido para a esfera federal pelo tucano Fernando Henrique Cardoso em 1998. FHC não mudou o nome do programa, pois tinha vergonha na cara.

No governo Lula, o Bolsa Escola foi integrado a outros programas existentes para dar origem ao Bolsa Família. Para quem quiser ter ideia do gigantesco sucesso que foi o Bolsa Família, sugiro consultar o texto de Thais Carrança publicado na Folha na última sexta-feira (29).


Apesar desse sucesso, o então deputado Jair Bolsonaro defendeu a extinção do Bolsa Família quando concorreu à presidência da Câmara em 2011. E seu atual líder na Câmara, o deputado Ricardo Barros, quando presidiu a comissão do orçamento em 2015, propôs cortar 35% do orçamento do programa com o objetivo de gerar a manchete "PT corta Bolsa Família" e facilitar o impeachment de Dilma Rousseff.

O Bolsa Família foi pago pela última vez na sexta-feira. Será substituído pelo Auxílio Brasil, uma mistura de nove programas. Na pior das hipóteses, pode ficar sem fonte de renda e causar uma crise social sem precedentes. Na melhor das hipóteses, será o Bolsa Família com os aumentos que já deveriam ter sido dados e uma ampliação de cobertura (porque aumentou o número de pobres).

O Auxílio Brasil também traz uma série de programas pendurados que não devem ter grande efeito prático. Os programas de incentivo para estudantes que se destaquem em competições científicas ou esportivas devem chegar a pouca gente. O auxílio inclusão rural dará um dinheiro para agricultores pobres que doem comida (quanta comida eles têm para doar?). O auxílio-creche é uma modificação do programa Brasil Carinhoso de Dilma Rousseff. O auxílio de inclusão urbana pagará um acréscimo a beneficiários do Auxílio Brasil que conseguirem emprego formal, algo que, conforme todos os estudos, eles já fazem sempre que podem.

Algum desses complementos são bons, outros são ruins, alguns já existem, mas o sentido político de incluí-los no substituto do Bolsa Família, é claro: depois de uma vida inteira xingando o Bolsa Família, Bolsonaro precisa mentir para a classe média bolsonarista que seu programa é diferente porque desencoraja vagabundagem de pobre. No mundo real, os pobres não são vagabundos, os bolsonaristas são, mas eles acham que é o contrário.

Todos os riscos do Auxílio-Brasil seriam evitados, e todas suas potencialidades seriam possíveis de serem realizadas, sem acabar com o Bolsa Família. Mas Bolsonaro precisa mentir para os pobres que é Lula, e precisa mentir para seus apoiadores que não é isso que gostaria de ser.

Brasil escatológico

 


Os desterrados do clima

Marta Romero tem 48 anos e uma vida inteira sendo testemunha de como se adaptar aos embates do clima. Em 1998, depois que o furacão Mitch arrasou partes da América Central, entre elas sua aldeia na costa atlântica da Guatemala, sua família teve que trocar os cultivos de milho, feijão e café de que viviam pelo do cardamomo, uma erva que pensavam que cresceria melhor e seria mais lucrativa. Mais de vinte anos depois, em novembro de 2020, outros dois fortes furacões, Eta e Iota, arrasaram sua comunidade e devastaram suas plantações e rebanhos.

Mexicana caminha aonde era um lago em San Marcos Tlacoyalco.

Depois de anos de intensa seca, os campos de cardamomo não resistiram às chuvas e inundações provocadas por esses dois furacões e a família precisou recomeçar do zero. “Vamos ver se podemos nos recuperar um pouco, porque foi muito o que a terra engoliu ou que foi embora com os desmoronamentos. A maior parte da terra fértil foi perdida, mas graças a Deus estamos lutando”, diz Romero ao EL PAÍS por telefone da aldeia de San Francisco de Asís, no departamento de Izabal. Nem todos resistiram. Um de seus filhos, de 24 anos, decidiu há algumas semanas tentar a sorte nos Estados Unidos: “Eu não queria, mas ele me disse: ‘Mãe, vou embora porque na Guatemala as terras não estão boas para trabalhar. Vou buscar uma forma de conseguir trabalhar em outro lugar’”.

Assim como o filho de Marta Romero, outros moradores de sua comunidade emigraram no último ano para os Estados Unidos ou para o departamento de Petén, no norte da Guatemala. A passagem do Eta, de categoria 4, e do Iota, de categoria 5 ― a máxima ―, em novembro do ano passado, deixou mais de 260 mortos e milhões de afetados que perderam suas casas e cultivos nesse país, na Nicarágua e em Honduras. As caravanas de hondurenhos formadas em dezembro, apenas um mês depois, tornaram-se uma clara evidência do efeito que os furacões mais fortes e frequentes podem ter nas migrações. A Organização Internacional de Migrações (OIM) estima que mais de um milhão de pessoas tiveram que se deslocar devido ao impacto do Eta e do Iota. E há outros fenômenos mais progressivos e menos visíveis, como as secas, a elevação do nível do mar e a desertificação de algumas áreas, que estão se acelerando com o aquecimento global ― e também estão expulsando pessoas de suas comunidades em todo o continente.

Um relatório do Banco Mundial projeta que até o ano de 2050 poderá haver mais de 17 milhões de latino-americanos (2,6% dos habitantes da região ou o equivalente à população do Equador) deslocados pela mudança climática se não forem tomadas medidas concretas para frear seus efeitos. “Os migrantes climáticos se deslocarão de áreas menos viáveis, com pouco acesso à água e produtividade de cultivos, e de áreas afetadas pela elevação do nível do mar e pelas marés de tempestade”, diz o documento. As áreas que sofrerão o golpe mais duro, acrescenta, são as mais pobres e vulneráveis. E nem é o caso de conjugar os verbos no futuro. A frequência e a intensidade dos fenômenos extremos já aumentaram, aponta o documento: “As chuvas de verão estão começando mais tarde e são mais irregulares no espaço e no tempo, e sua intensidade aumentou”.

Pablo Escribano, especialista da OIM em migração climática, distingue as ameaças gerais ― como inundações, chuvas e furacões (que afetam principalmente o Caribe) ― das progressivas, como a seca, que está atingindo lugares tão distantes como o Corredor Seco da América Central, algumas áreas da América do Sul ― como a bacia do Rio Paraná ― e a região andina. “Há evidência de que a mudança climática em áreas de alta montanha têm um impacto muito significativo em relação, por exemplo, à escassez de água”, assinala o especialista em entrevista ao EL PAÍS.

“Muitas vezes dizemos que as ameaças relacionadas à mobilidade humana são por excesso ou falta de água. As estatísticas de deslocamentos por desastres mostram que os fenômenos de chuvas extremas e inundações são os que deslocam mais pessoas”, aponta Escribano. “A questão da seca é muito relevante em áreas como o Corredor Seco centro-americano, algumas áreas do México e do centro do Chile e o Nordeste brasileiro”, acrescenta. O continente também foi golpeado nos últimos anos por intensos incêndios, como os que afetaram a Amazônia e o Pantanal no Brasil e a Costa Oeste dos Estados Unidos, e por inundações em algumas áreas da bacia amazônica, do Sudeste brasileiro, do Uruguai e da bacia do Rio da Prata.

Além dos planos governamentais, na América Latina há centenas de iniciativas e comunidades buscando soluções para tentar mitigar os efeitos da mudança climática. A CRS, organização não governamental em que trabalha o hondurenho Carlos Ruiz, está implantando sistemas de irrigação por gotejamento para tornar mais eficiente o uso da água, além de práticas para preservar a umidade do solo e fomentar o desenvolvimento de microclimas. Essa ONG também desenvolveu programas humanitários para fornecer, em épocas críticas ou de escassez de alimentos, ajuda em dinheiro à população com a qual trabalha. O objetivo, diz Ruiz, é “não só responder às necessidades imediatas, como também habilitar algum tipo de infraestrutura e insumos agrícolas que permitam que as pessoas tenham condições de enfrentar as situações adversas da mudança climática”.

De qualquer forma, ele reconhece que dos cerca de 15.000 beneficiários de seus programas também chegam notícias de pessoas que decidem emigrar para os Estados Unidos. “O problema é que nesses países se gerou uma cultura da migração em que jovens de áreas rurais ou urbanas empobrecidas têm como meta migrar devido à falta de oportunidades em seu país, e acho que o interessante é que, através destes projetos, estamos começando a promover uma nova cultura, a da esperança”, destaca Ruiz. Uma esperança que ele vê quando os agricultores que participam de seus programas de irrigação por gotejamento ensinam as técnicas a seus filhos, ou quando começam a incorporar cultivos de ciclo curto, como algumas hortaliças e bananas, que podem lhes oferecer respostas de curto prazo enquanto desenvolvem plantações mais resilientes que gerem ganhos de longo prazo.

A nossa democracia não gosta de Cultura

Num mundo culto temos uma conduta florida
e num mundo inculto temos discursos floridos.
Confúcio

 

Escrevi com amargura o título deste artigo e escrevi-o só ao fim de muitos anos em que andei a não querer escrevê-lo. Custa-me dizer mal da nossa democracia, até porque, quando nasci, não havia democracia e vivi, depois, quarenta e quatro anos sem ela. E o pior sofrimento que a falta de democracia produz não é proibirem-nos que pensemos e digamos certas coisas, o pior é quererem forçar-nos a dizer outras coisas que não pensamos e em que não acreditamos. Ser forçado a dizer é, acreditem, um sofrimento bem maior do que não poder dizer. Mas às ditaduras, mesmo as pífias, como foi a do Estado Novo, nunca lhes basta que fiquemos calados, querem, à força, que falemos, de acordo com aquilo que são as “verdades” que eles apregoam. Dói que se farta, mesmo que se resista e se recuse a “verdade” que nos querem vender. Portanto, quando veio a democracia, regalei-me e preparei-me para me regalar o tempo todo. Íamos finalmente ter educação, saúde e cultura à séria, sem falar noutras coisas igualmente necessárias. Mas a educação, a saúde e a cultura tinham talvez sido as áreas mais particularmente vítimas do Estado Novo. Quanto a educação, pela parte que me toca e apesar de programas impregnados da ideologia maligna daquele regime que nos governava, Moçambique, onde nasci e fiz o ensino primário e secundário, era, apesar de tudo, um território com mais abertura e povoado por muitos refilões que o regime exportava (expulsava) da metrópole para lá. Isto e vivermos rodeados de gente de extracção inglesa e habituada a mais do que alguma liberdade de expressão, fazia com que, à boleia de um núcleo inesquecível de magníficos, cultíssimos e pouco subservientes professores, no liceu, pessoalmente, não me pudesse queixar muito. Se puser de lado algum (raro) aviso ou ameaça de algum neo-convertido oportunista, no sector do ensino, eu e outros como eu fomos deixados livres de dar curso à nossa iconoclastia, gozando à larga com as diatribes acutilantes de Voltaire contra a igreja e os tiranos, que a minha excelsa e culta professora de filosofia acolhia com um sorriso deliciado, sem temer dar a classificação mais alta ao rebelde de serviço. Mas nada disto permite negar que houvesse repressão – e da dura – nas áreas da cultura e educação e criminosa forretice na saúde, noutras partes do “império”.

Portanto, a democracia iria acautelar, finalmente, estes filhos perseguidos. Hoje, limitar-me-ei à cultura, talvez a área mais desprezada por esta democracia e por todos os governos, sem excepção absolutamente nenhuma. Independentemente da ideologia no poder, nem socialistas nem social democratas, quiseram NUNCA propiciar um orçamento minimamente decente à cultura. Tornou-se evidente, ao fim de quarenta e sete anos de democracia, que, para os políticos democratas que nos governam, a cultura “não é uma coisa séria”, para roubar o título de uma obra inesquecível do grande Pirandello. Portugal é, envergonhada e vergonhosamente, um dos países da União Europeia que menos gasta com uma cultura em que no fundo não acredita. Em percentagem do Produto Interior Bruto, andámos, nos primeiros tempos desta tão desejada democracia, pelos miseráveis 0,5 % e actualmente – corai, senhores ministros! – andamos a rapar o fundo desprovido da gamela: 0,25%. A média europeia é de 1%, isto é, quatro vezes as nossas encolhidas migalhas. Se nos lembrarmos de que países como a Argentina chegaram a andar pelos cinco por cento, ou seja, vinte vezes o que nós gastamos, não será excessivo dizer que o Estado Português não se digna dar ao sector da cultura uma fatia decente do PIB, mas tão só uma relutante e mísera esmola! Assim como quem diz: “Dê-se-lhes lá qualquer coisita, para nos desampararem a loja…” Porque os nossos governantes de todas as cores, no fundo, detestam gastar dinheiro com coisas que não dão muito nas vistas – tal como no tempo do Duarte Pacheco, cujo amor pelos estádios de futebol esta democracia herdou e ampliou. E eles acham que a cultura não passa de um capricho de calaceiros e rufias que não querem trabalhar. Que a cultura, em suma, não serve para nada. Mas estão muito enganados: ela serviria, por exemplo, para os nossos egrégios ministros serem capazes de ler aqueles textos, que hoje são marcos históricos fundamentais, acerca da influência que a cultura tem no crescimento económico de um país por via do efeito subliminar que uma imagem cultural adulta consegue produzir. Ortega y Gasset escreveu, a este propósito, páginas luminosas, dizendo coisas como esta: “a cultura não é a vida na sua totalidade mas apenas o seu momento de segurança, força e claridade”. Como já um dia observei, comentando este notável ensaio do pensador espanhol, “é esta imagem de segurança, força e claridade – que a cultura tão eficientemente inculca – é esta imagem, repito, que pode, subreptícia mas fortemente ajudar a criar aquele clima de confiança e segurança sem o qual o comércio não triunfa nem prospera.” Por outras e desenfastiadas palavras: uma imagem cultural pelintra não alicia seja quem for para comerciar a sério connosco. Isto mesmo aprenderam os britânicos, quando, no século passado, descobriram, para seu espanto, que os seus magníficos produtos industriais se vendiam pouco, porque o país se descuidara de fazer projectar para o exterior uma imagem cultural potente (não se tratava de não terem cultura, mas sim de a não tornarem visível.) Curiosamente, quem chegou a esta conclusão, depois de chefiar uma comissão de investigação das causas desse recuo dos britânicos em relação a outros países mais bem sucedidos na venda desses mesmos produtos, foi, não um personagem da cultura mas, sim, um personagem da área comercial: o Sr. D’Abernon. Do relatório dessa missão comercial, não cultural, transcrevo uma curta mas elucidativa passagem: “Àqueles que dizem não ter esta extensão da nossa influência [a cultural] qualquer relação com o comércio, respondemos que estão totalmente errados; a reacção do comércio à mais deliberada inculcação da cultura britânica, que nós advogamos, é definitivamente certa e deverá ter lugar com a maior rapidez.” Repito: o responsável por este relatório histórico, que esteve na base da criação do British Council, foi o chefe de uma missão comercial e não de uma missão cultural. Mas o British Council foi criado para promover, no estrangeiro, os valores culturais britânicos, como apoio indispensável à promoção do seu comércio. “Sem a cultura e a liberdade relativa que ela pressupõe”, disse-o esse espírito profundo e luminoso, Albert Camus, “a sociedade, por mais perfeita que seja, não passa de uma selva. É por isso que toda a criação artística é um dom para o futuro.”


Que bom e eficaz seria que os nossos primeiros ministros batessem de vez em quando o pé ao dono das finanças, que nada sabe de cultura, mesmo que saiba alguma coisa de finanças, dizendo-lhe, alto e bom som, que há vida para além das finanças. No seu muito conhecido e divulgado poema “Liberdade”, Fernando Pessoa lembrava, sei lá porquê, que Jesus Cristo “não sabia nada de finanças”, inculcando, sibilinamente, que ele saudavelmente as desprezava. Às vezes, é preciso meter na ordem o ministro das finanças, explicando-lhe, muito devagar e com muito cuidado, que há outros valores que merecem ser respeitados. Talvez ajude contar-lhe esta verdadeira história: a alguém que lhe perguntou qual a diferença entre os cultos e os incultos, o venerável Aristóteles respondeu: “A mesma diferença que existe entre os vivos e os mortos”.

P. S. – Como disse, os nossos governantes gostam de nos dar apenas “um poucochinho” de cultura. É um grande erro e quero, a esse respeito, lembrar-lhes aqui o aviso do poeta Alexander Pope: ”Um pouco de cultura é uma coisa perigosa”. Sabemos hoje que mais vale nenhuma cultura do que poucochinha cultura. Mal lambida, a cultura é nefasta.

Bolsonaro insiste no crime

Na mesma quinta-feira em que o TSE costurou uma delicada – e polêmica – saída política para não cassar a chapa Bolsonaro-Mourão e fixar princípios para impedir que os crimes digitais cometidos por eles na campanha de 2018 não se repitam em 2022, o presidente deixou claro que mandará às favas qualquer regra. Como um garoto levado, burlou a suspensão de seu perfil no YouTube e transmitiu sua live semanal na conta do filho Carlos e no canal Pingo nos Is, vinculado à Jovem Pan. Mesmo excluída mais tarde, a molecagem permitiu que a transmissão ficasse no ar por várias horas, fosse copiada e replicada por seguidores.


A suspensão de Bolsonaro das redes depois da infâmia de associar a vacina da Covid-19 à aids foi definida pelo próprio YouTube, copiando a ação do Facebook e do Instagram, e não pela Justiça. Mas a atitude do presidente demonstra a dificuldade que a Corte eleitoral terá para punir a utilização desses canais para espalhar informações falsas.

Ainda que o cerco às fake news, no STF e no TSE, tenha inibido um pouco a turma bolsonarista, o presidente e seu clã não têm plano B para substituir os disparos em massa, os robôs e os CPFs falsos que turbinaram a campanha de 2018 e continuaram a todo vapor durante o governo. Com farta distribuição de mentiras.

As frases fortes do ministro Alexandre de Moraes, próximo presidente do TSE, apontando a cadeia para quem atentar contra as eleições e a democracia com disparos em massa de fake news, acenderam sinais de alerta, mas não fecharam todas as janelas. Ao contrário: a decisão da Corte abriu um perigoso precedente.

Para deixar de cassar a chapa Bolsonaro-Mourão, os ministros argumentaram que não era possível mensurar o quanto esses disparos hediondos, o financiamento indevido, os robôs e as contas falsas contribuíram para a eleição do presidente. Atrelaram assim, de forma grotesca, os crimes cometidos à comprovação de benefícios ao criminoso.


Ou seja, Bolsonaro – ou outro candidato qualquer – poderá minimizar a influência das redes no futuro e novamente se safar. No máximo, ele terá de se autofiscalizar para não repetir nas redes denúncias mentirosas de fraudes nas urnas eletrônicas, motivo que levou à cassação do deputado estadual Fernando Francischini (PSL-PR), o primeiro caso do país de perda de mandato por propagação de informações falsas.

Adicionalmente, o bolsonarismo já organiza formas de defesa prévia, parte delas revelada pela advogada do presidente, Karina Kufa, em entrevista à Folha. Ela reclamou da equiparação de blogueiros aos veículos tradicionais de comunicação, considerando desproporcional impor a eles as mesmas restrições da grande mídia. “São pessoas muitas vezes pouco instruídas, que falam besteira e que não contam com apoio da mesma estrutura jurídica”, disse, sem considerar que muitas das “besteiras” são ditas pelo chefe dela ou distribuídas pela central bolsonarista.

A plantação de informações falaciosas é cotidiana, age como fermento e é despejada a baciadas sem qualquer punição. Todas as mentiras do presidente nas lives ou apregoadas nas redes sobre fraudes nas urnas parecem ter sido esquecidas pelo mundo oficial. Por muito menos, Francischini pagou com o mandato. Tampouco se puniu Bolsonaro por usar a internet para propagandear medicamentos sem comprovação científica e “estudos” falsos sobre máscaras e vacinas.

A disposição do TSE de punir aqueles que usam criminosamente o meio digital é louvável. Só não deveria estar atrelada ao ano eleitoral e, sim, ser imediata. Do contrário, Bolsonaro continuará a sua burla, com as já conhecidas consequências nefastas.

A vida profissional

Os banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais que os reis e os marechais e mais que o próprio Papa de Roma. Eles jamais sujam as mãos. Não matam ninguém: se limitam a aplaudir o espetáculo.

Seus funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os impostos, os lucros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a freqüência das chuvas.

Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis conseqüências de seus atos.

Os tecnocratas reivindicam o privilegio da irresponsabilidade:

— Somos neutros — dizem.
Eduardo Galeano, "O livro dos abraços"

Depois de 111 anos, Marinha açoita memória de João Cândido

A Comissão de Educação e Cultura do Senado aprovou a inscrição de João Cândido Felisberto no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. O marujo morreu há 52 anos, foi anistiado duas vezes e é reconhecido como um ícone da luta contra o racismo. Ainda assim, a Marinha tenta barrar a homenagem.

Filho de escrava, João Cândido liderou a Revolta da Chibata, movimento de marinheiros que parou o Rio em 1910. Os rebeldes tomaram quatro navios na Baía de Guanabara e apontaram os canhões para a cidade. Ameaçavam abrir fogo se as punições físicas não fossem abolidas.

Às vésperas do motim, o marujo Marcelino Rodrigues Menezes havia sido castigado diante da tripulação do encouraçado Minas Gerais. Foi amarrado ao mastro e levou 250 chibatadas.

A rebelião mobilizou 2.379 praças aos gritos de “Viva a liberdade” e “Abaixo a chibata”. Em mensagem ao presidente Hermes da Fonseca, eles protestaram contra a rotina de maus-tratos:

“Pedimos a V. Exª. abolir a chibata e os demais bárbaros castigos pelo direito da nossa liberdade, a fim de que a Marinha brasileira seja uma Armada de cidadãos, e não uma fazenda de escravos que só têm dos seus senhores o direito de serem chicoteados.”


A Lei Áurea, assinada em 1888, ainda não havia chegado aos navios de guerra. Os marinheiros, quase todos negros, continuavam a ser açoitados pelos superiores, quase todos brancos.

O motim instalou o pânico na então capital da República. Os rebelados mataram seis oficiais que tentaram reprimi-los. Um tiro de advertência matou mais duas crianças no Morro do Castelo.

A imprensa defendeu os marujos e apelidou João Cândido de Almirante Negro. No Senado, Ruy Barbosa cobrou o fim dos castigos e exaltou “o homem do povo, preto ou mestiço, que veste a nobre camisa azul da nossa Marinha”.

O governo ofereceu uma anistia para encerrar o movimento, mas descumpriu o trato e expulsou a maioria dos rebeldes. João Cândido foi preso e confinado numa solitária. Absolvido, passou a sobreviver como estivador e vendedor de peixes na Praça XV. Na velhice, morava numa rua sem luz e sem asfalto na Baixada Fluminense.

“Ele comeu o pão que o diabo amassou”, conta o historiador Álvaro Pereira do Nascimento, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Morto em 1969, João Cândido viraria herói popular. Inspirou músicas, peças de teatro e desfiles de carnaval. O Congresso aprovou uma nova anistia há 13 anos, mas os chefes militares insistem em açoitar sua memória.

Nos últimos dias, a Marinha tentou convencer os senadores a desistirem da homenagem. Em nota, definiu a Revolta da Chibata como “um péssimo exemplo e um episódio a ser lamentado”. “A Marinha não reconhece o heroísmo das ações daquele movimento e o considera uma rebelião”, sentenciou. O texto admite que os castigos físicos não eram “corretos”, mas condena a “ruptura do preceito hierárquico”.

A proposta foi aprovada na sexta-feira e seguirá para a Câmara, onde a pressão deve recomeçar. “Os militares querem apagar a História. João Cândido morreu há 52 anos e continua a ser perseguido”, critica o professor Nascimento. Somando o tempo de banimento em vida, já são 111 anos de perseguição.

Bolsonaro virou símbolo da estupidez inimputável

"Presidente, por que o senhor não foi de manhã no encontro do G20?". A pergunta do repórter Leonardo Monteiro, da TV Globo, fazia sentido, pois Bolsonaro passeava pelo centro histórico de Roma como um turista incidental depois de negligenciar a abertura dos trabalhos do último dia do encontro dos líderes das maiores economias do mundo. Esnobara também a foto de encerramento, que reunira os chefes de Estado na Fontana di Trevi, um dos cartões postais da capital italiana.

Espremido, Bolsonaro comportou-se como se não devesse nada a ninguém. Muito menos explicações. "É a Globo? Você não tem vergonha na cara?" O repórter insistiu: "Oi, presidente, por que o senhor não foi de manhã nos eventos do G20?" Bolsonaro não se deu por achado: "Vocês não têm vergonha na cara, rapaz." Um dos agentes que faziam a segurança do capitão empurrou o repórter, desferindo-lhe um soco no estômago.


Reforçada por agentes cedidos pelo estado italiano, a equipe de guarda-costas de Bolsonaro acionou os músculos contra os jornalistas. Distribuíram-se empurrões. Jamil Chade, do UOL, que filmava as agressões, foi agarrado pelo braço. Tomaram-lhe o celular. Cobrou a identificação do agressor. Foi ignorado. Minutos depois, o segurança jogou o aparelho no asfalto, com a câmera voltada para o céu.

O prenúncio de encrenca surgira mais cedo, quando a repórter Ana Estela de Sousa Pinto, da Folha, fora empurrada defronte da embaixada brasileira, quando Bolsonaro ainda se encontrava dentro do prédio. Agrediram-se também repórteres da BBC Brasil e de O Globo.

Quando seguranças percebem que a autoridade patrocina hostilidades, passam a crer que fazem parte de uma milícia onipotente. A insensatez de Bolsonaro é um estímulo à violência. Com sua retórica encrespada, o presidente empurra os agentes para a delinquência. A cumplicidade criada entre protegido e protetores explica a conversão do esquema de segurança em anarquia.

A truculência de Roma emoldura um problema maior: o apagão mental das autoridades que deveriam impor limites a Bolsonaro no Brasil. A Procuradoria-Geral da República o enxerga como inviolável e imune. O Legislativo e o Judiciário o tratam como intocável e impune.

Há um mês, Bolsonaro já expusera o Brasil a vexame ao exibir seu arcaísmo num discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU. A ida do capitão ao encontro do G20 revelou-se mais uma inutilidade a serviço da desmoralização do país.

As viagens internacionais do presidente não servem senão para reforçar a sensação de que a imagem do Brasil no estrangeiro tornou-se um borrão. Uma mancha na qual se misturam o desastre sanitário, os arroubos antidemocráticos, a estagnação econômica e a destruição ambiental.

Bolsonaro realizou o pesadelo que frequentava os sonhos do antichanceler Ernesto Araújo —aquele sujeito que, antes de ser expurgado do comando do Itamaraty, difundiu a tese segundo a qual se a atuação do governo bolsonarista faz do Brasil "um pária internacional, então que sejamos esse pária."

O brasileiro paga as viagens do presidente para que ele seja pária no estrangeiro. Só Bolsonaro não paga por nada. Todos os seus defeitos estão perdoados. Seus crimes foram preventivamente prescritos. É como se vigorasse um entendimento tácito de que ser Bolsonaro já é castigo suficiente para qualquer um. O problema é que o personagem se esforça para demonstrar que não é qualquer um.

Bolsonaro deixou de ser qualquer um quanto transformou a Presidência na única repartição pública privatizada durante sua gestão. O presidente transformou-se num símbolo de todos os privilégios que o déficit público pode pagar. Governa como um símbolo do patrimonialismo.

Graças à inércia das instituições nacionais, o símbolo não precisa responder pelo que simboliza. Livre de todos os incômodos, Bolsonaro entrou para a galeria dos seres inimputáveis, ao lado dos menores de idade e dos índios isolados. O Brasil é presidido pelo símbolo da estupidez inimputável.