sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018
Terrorismo?
(…) O terrorismo é uma estratégia de fraqueza adotada por aqueles que carecem de acesso ao poder de fato. Ao menos no passado, seu funcionamento era resultado mais da disseminação do medo do que de danos materiais significativos. Terroristas normalmente não têm o poder de derrotar qualquer exército, de ocupar um país ou de destruir cidades inteiras. Em 2010, enquanto a obesidade e doenças relacionadas a esse mal mataram cerca de 3 milhões de pessoas, terroristas mataram 7.697 indivíduos em todo o mundo, a maioria deles em países em desenvolvimento. Para um estadunidense ou europeu mediano, a Coca-cola representa um perigo muito mais letal do que a Al-Qaeda.
Como, então, terroristas conseguem dominar as manchetes e mudar a situação política em todo o mundo? Provocando nos inimigos uma reação desmedida. Na essência, o terrorismo é um show. Os terroristas encenam um tenebroso espetáculo de violência que captura nossa imaginação e nos transmite a sensação de estar escorregando de volta ao caos medieval. Em consequência, os Estados frequentemente se sentem obrigados a reagir ao teatro do terrorismo com um show de segurança, orquestrando imensas exibições de força, como a perseguição a populações inteiras ou a invasão de países estrangeiros. Na maioria dos casos, essa reação exacerbada representa um perigo muito maior a nossa segurança do que aquele decorrente de atentados terroristas.
Yuval Noah Harari, "Homo Deus"
Yuval Noah Harari, "Homo Deus"
Para Pezão, solução do Rio é trocar de imprensa
O governador Luiz Fernando Pezão descobriu uma solução revolucionária para os problemas do Rio de Janeiro. Após profundas reflexões, ele concluiu que, no quesito segurança pública, a capital do seu Estado é bem menos violenta do que se imagina. E tudo pode ficar ainda melhor com uma providência simples: trocar de imprensa. Essa que atua no Rio é de péssima qualidade.
Pressionado a pronunciar meia dúzia de palavras sobre o surto de violência que invade o noticiário, Pezão declarou: “A cidade do Rio não é a cidade mais violenta do país. Mas se a gente vir os nossos noticiários, os nossos jornais, parece que é. É uma cobertura cruel, o que a nossa área de segurança tem aqui. Infelizmente.”
Para que o Rio se torne um paraíso seguro, livrando seus moradores da violência, é imperioso que os jornalistas, depois de reciclados como lixo, façam o seu papel: de cegos. Do jeito que está, o noticiário não pode continuar. Se deixar, essa gente acaba retratando o governador como um reles impostor.
Se a imprensa não for trocada, disseminará a tese segundo a qual alguém que, em meio ao pipocar de escândalos e de tiros, depois de anos em que o Rio foi saqueado pelos esquemas que o acompanham no poder desde Sergio Cabral, continua a empunhar a bandeira da normalidade ou é um cínico ou um banana. Em nenhum dos casos é o governador que seus eleitores esperavam.
Com uma imprensa nova e menos rigorosa, nem que seja pela desatenção, o comandante da Polícia Militar do Rio, Wolney Dias, poderá levar adiante o plano que expôs a Pezão. Prevê a redução do número de UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora —em vez de 38, restariam apenas 18.
“A proposta foi no sentido de se extinguir 18 UPPs”, explicou o coronel Wolney. “Logicamente que isso passa, como eu disse, por uma análise técnica. […[ Aquelas em que não haja um domínio territorial maior, talvez possa ser reavaliada a sua manutenção.” Genial: as favelas que o Estado, por esculhambado, não conseguiu dominar voltam integralmente para o controle do crime organizado.
A fórmula encontrada por Pezão é revolucionária porque serve para solucionar problemas em qualquer área. Tome-se o exemplo da medicina. Guiando-se pela lógica do governador, os médicos não precisarão mais curar as doenças. Basta que destruam as radiografias e as tomografias. Com uma vantagem: num Estado assim, tão criativo, as pessoas poderão escolher entre dois papeis: bobos ou cínicos.
Pressionado a pronunciar meia dúzia de palavras sobre o surto de violência que invade o noticiário, Pezão declarou: “A cidade do Rio não é a cidade mais violenta do país. Mas se a gente vir os nossos noticiários, os nossos jornais, parece que é. É uma cobertura cruel, o que a nossa área de segurança tem aqui. Infelizmente.”
Se a imprensa não for trocada, disseminará a tese segundo a qual alguém que, em meio ao pipocar de escândalos e de tiros, depois de anos em que o Rio foi saqueado pelos esquemas que o acompanham no poder desde Sergio Cabral, continua a empunhar a bandeira da normalidade ou é um cínico ou um banana. Em nenhum dos casos é o governador que seus eleitores esperavam.
Com uma imprensa nova e menos rigorosa, nem que seja pela desatenção, o comandante da Polícia Militar do Rio, Wolney Dias, poderá levar adiante o plano que expôs a Pezão. Prevê a redução do número de UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora —em vez de 38, restariam apenas 18.
“A proposta foi no sentido de se extinguir 18 UPPs”, explicou o coronel Wolney. “Logicamente que isso passa, como eu disse, por uma análise técnica. […[ Aquelas em que não haja um domínio territorial maior, talvez possa ser reavaliada a sua manutenção.” Genial: as favelas que o Estado, por esculhambado, não conseguiu dominar voltam integralmente para o controle do crime organizado.
A fórmula encontrada por Pezão é revolucionária porque serve para solucionar problemas em qualquer área. Tome-se o exemplo da medicina. Guiando-se pela lógica do governador, os médicos não precisarão mais curar as doenças. Basta que destruam as radiografias e as tomografias. Com uma vantagem: num Estado assim, tão criativo, as pessoas poderão escolher entre dois papeis: bobos ou cínicos.
O STF é bom de discurso, só falta aplicar a lei
Já virou tradição. A abertura do ano judiciário se tornou um grande encontro de investigadores e investigados. A confraternização se repetiu ontem no plenário do Supremo. Juízes, procuradores e políticos sob suspeita trocaram cumprimentos, posaram para fotos e ouviram juntos o Hino Nacional.
Por força do protocolo, a ministra Cármen Lúcia se viu cercada por três alvos da Lava-Jato. À sua esquerda, sentou-se o presidente Michel Temer, denunciado por corrupção, organização criminosa e obstrução da Justiça. À direita, o senador Eunício Oliveira, o “Índio” da lista da Odebrecht. Completou a mesa o deputado Rodrigo Maia, apelidado de “Botafogo” nas planilhas da empreiteira.
Tudo certo, mas faltou dizer que o Supremo já permitiu o desacato duas vezes na gestão da ministra. Na primeira, aceitou que Renan Calheiros ignorasse uma ordem para deixar a presidência do Senado. Na segunda, curvou-se a uma rebelião contra o recolhimento noturno de Aécio Neves. O tucano se salvou do castigo graças ao voto de minerva de Cármen.
A procuradora Raquel Dodge fez o discurso mais duro da cerimônia. Disse que o país sofre com a “corrupção ainda disseminada” e o “sentimento de impunidade”. Ela citou Ulysses Guimarães (“A corrupção é o cupim da República”) e cobrou a aplicação da lei aos poderosos: “Os culpados precisam pagar por seus erros. Só assim afasta-se a sensação de impunidade e se restabelece a confiança nas instituições”.
Bonitas palavras, mas o Supremo e a Procuradoria têm culpa no cartório. Até hoje, a corte não julgou nenhum réu da Lava-Jato. A delação da Odebrecht já fez aniversário, mas só gerou uma denúncia contra político com foro privilegiado.
Por força do protocolo, a ministra Cármen Lúcia se viu cercada por três alvos da Lava-Jato. À sua esquerda, sentou-se o presidente Michel Temer, denunciado por corrupção, organização criminosa e obstrução da Justiça. À direita, o senador Eunício Oliveira, o “Índio” da lista da Odebrecht. Completou a mesa o deputado Rodrigo Maia, apelidado de “Botafogo” nas planilhas da empreiteira.
A anfitriã fez um belo discurso em defesa do Judiciário. Sem citar Lula, mandou recado aos petistas que protestaram contra a condenação do ex-presidente. “Pode-se ser favorável ou desfavorável à decisão”, disse. “O que é inadmissível é desacatar a Justiça, agravá-la ou agredi-la”.
A procuradora Raquel Dodge fez o discurso mais duro da cerimônia. Disse que o país sofre com a “corrupção ainda disseminada” e o “sentimento de impunidade”. Ela citou Ulysses Guimarães (“A corrupção é o cupim da República”) e cobrou a aplicação da lei aos poderosos: “Os culpados precisam pagar por seus erros. Só assim afasta-se a sensação de impunidade e se restabelece a confiança nas instituições”.
Bonitas palavras, mas o Supremo e a Procuradoria têm culpa no cartório. Até hoje, a corte não julgou nenhum réu da Lava-Jato. A delação da Odebrecht já fez aniversário, mas só gerou uma denúncia contra político com foro privilegiado.
O Judiciário resolveu ser réu
O juiz Marcelo Bretas resolveu passar de símbolo da faxina das roubalheiras do Rio de Janeiro a ícone dos penduricalhos do Judiciário. Contrariando uma resolução do Conselho Nacional de Justiça e respondendo a um questionamento da Ouvidoria da Justiça Federal, cobrou num tribunal o seu auxílio-moradia e o de sua mulher, também juíza.
Bretas sempre morou no Rio e o casal obteve um penduricalho de R$ 8.600 mensais. Num cálculo grosseiro, para pagar uma quantia dessas à Viúva, uma pequena empresa que pague impostos pelo regime de lucro presumido, precisa faturar R$ 5.000 por dia.
Bretas sempre morou no Rio e o casal obteve um penduricalho de R$ 8.600 mensais. Num cálculo grosseiro, para pagar uma quantia dessas à Viúva, uma pequena empresa que pague impostos pelo regime de lucro presumido, precisa faturar R$ 5.000 por dia.
Bretas não é o único juiz ou promotor beneficiado pelo penduricalho. A desembargadora Marianna Fux, dona de dois apartamentos no Leblon, também recebe auxílio-moradia. Seu pai, o ministro Luiz Fux, reteve por três anos no Supremo Tribunal Federal o processo que contesta legalidade do mimo classista.
Quando as repórteres Daniela Lima e Julia Chaib revelaram a bizarrice de Bretas ele se explicou com a ironia dos poderosos: “Pois é, tenho esse ‘estranho’ hábito. Sempre que penso ter direito a algo eu vou à Justiça e peço. Talvez devesse ficar chorando num canto ou pegar escondido ou à força. Mas, como tenho medo de merecer algum castigo, peço na Justiça o meu direito”.
Pegar escondido ele não pega, mas se o doutor tem medo de castigo, não deve levar seu pleito ao balcão de uma lanchonete da rodoviária. Lá, trabalhadores que esperam pelo transporte teriam dificuldade para entender como juízes ou promotores, cujos salários iniciais estão em R$ 27.500 ou R$ 26.125, precisam de R$ 4.300 de auxílio moradia para trabalhar na cidade em que sempre viveram. No caso de Bretas ele deveria explicar como um casal precisa de mais R$ 4.300, morando na mesma casa.
Quando as repórteres Daniela Lima e Julia Chaib revelaram a bizarrice de Bretas ele se explicou com a ironia dos poderosos: “Pois é, tenho esse ‘estranho’ hábito. Sempre que penso ter direito a algo eu vou à Justiça e peço. Talvez devesse ficar chorando num canto ou pegar escondido ou à força. Mas, como tenho medo de merecer algum castigo, peço na Justiça o meu direito”.
Os penduricalhos transformaram-se numa ferida na cara do Judiciário, agravada pela má qualidade da argumentação dos doutores na defesa do mimo. Argumentam que outros servidores também recebem a prebenda. Dois erros nunca somaram um acerto.
O juiz Roberto Veloso, presidente da guilda dos juízes federais, chegou a dizer que um magistrado não pode ter tranquilidade para trabalhar “se o advogado que está a seu lado está ganhando mais que ele”. Parolagem de má qualidade. Para recolher em impostos o que o casal Bretas recebe de auxílio-moradia (noves fora o salário) um advogado precisa faturar R$ 70 mil por mês. Além disso, juiz não fica sem clientes, mesmo sendo um mau servidor. Em São Paulo, um juiz condenado por extorsão está em regime semiaberto e em agosto recebeu R$ 52 mil pela sua aposentadoria.
A Lava Jato colocou o Judiciário no centro da política nacional. Transformado em agente da moralidade pública, esse poder está empesteado pela cobiça, pelo corporativismo e pela onipotência. Bretas decidiu simbolizar as três coisas.
Há poucos dias o professor Conrado Hübner Mendes publicou um artigo intitulado “Na prática, ministros do STF agridem a democracia. Uma joia de coragem, informação e lógica. Expôs baixarias, contradições e automistificações de ministros do Supremo. Sobraram poucos.
Sua amarga conclusão: “O tribunal foi capturado por ministros que superestimam sua capacidade de serem levados a sério e subestimam a fragilidade da corte”.
O juiz Roberto Veloso, presidente da guilda dos juízes federais, chegou a dizer que um magistrado não pode ter tranquilidade para trabalhar “se o advogado que está a seu lado está ganhando mais que ele”. Parolagem de má qualidade. Para recolher em impostos o que o casal Bretas recebe de auxílio-moradia (noves fora o salário) um advogado precisa faturar R$ 70 mil por mês. Além disso, juiz não fica sem clientes, mesmo sendo um mau servidor. Em São Paulo, um juiz condenado por extorsão está em regime semiaberto e em agosto recebeu R$ 52 mil pela sua aposentadoria.
A Lava Jato colocou o Judiciário no centro da política nacional. Transformado em agente da moralidade pública, esse poder está empesteado pela cobiça, pelo corporativismo e pela onipotência. Bretas decidiu simbolizar as três coisas.
Há poucos dias o professor Conrado Hübner Mendes publicou um artigo intitulado “Na prática, ministros do STF agridem a democracia. Uma joia de coragem, informação e lógica. Expôs baixarias, contradições e automistificações de ministros do Supremo. Sobraram poucos.
Sua amarga conclusão: “O tribunal foi capturado por ministros que superestimam sua capacidade de serem levados a sério e subestimam a fragilidade da corte”.
Política também é sacanagem
O comércio político funciona a mesma com os cheques sem coberturaVergílio Ferreira
Tesão pelo Estado
Não creio que adoração do Estado (estatolatria) designe de modo adequado a relação de certas pessoas e partidos políticos com o Estado. Quem adora não se serve do objeto de sua adoração. Um neologismo como estatoafetividade, expressando um sentimento quase carnal, resulta mais fiel para descrever essa relação. É tesão pelo Estado, mesmo.
O tipo de relação a que me refiro e a perspectiva política em que se escora desbordam de toda razoabilidade. Atribuir excessiva importância à política é mais perigoso do que não lhe conferir qualquer valia. Colocá-la acima de tudo mais é da essência dos totalitarismos, é uma hipertrofia de consequências nefastas. De outra parte, não encontrar na vida um espaço para cuidar do interesse geral, numa hipótese branda, é facilitar as coisas para aqueles que se valem do Estado para abusar do poder e para seu bel-prazer.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, ensina conhecido provérbio português sobre a necessidade de moderação. E essa moderação se faz necessária mesmo quando entendemos a política como a ciência e o ofício de governar a sociedade. Imagine, então, quão mais danosa se pode tornar a obsessão pela política quando aplicada de modo exclusivo à conquista e à manutenção do poder, aos impulsos da estatoafetividade!
É o que estamos assistindo, nestes dias, no Rio Grande do Sul, um Estado que, à exemplo da União, após o desastroso e funesto governo petista, agravado pela recessão gerada pelo governo Dilma, afundou numa crise fiscal sem precedentes. O Estado tem duas opções: ou deixa de pagar sua dívida com a União e fecha as portas, ou se livra provisoriamente dessa conta por três anos e adere a um duro ajuste fiscal que pode levá-lo a horizontes menos encardidos ao término desse prazo. E quem se ergue para obstar a adoção de tais medidas, que envolvem privatizações e limites para o aumento da despesa? Os mesmos que tendo recebido o poder com as contas equilibradas produziram o desastre fiscal do Estado.
No mesmo período, os petistas também exerciam o governo da União e nada fizeram na linha das inexequíveis alternativas que agora apresentam. Nada obtiveram do governo Dilma, tampouco, em acordos que poderiam ter sido celebrados – se desejados e possíveis - numa salinha do diretório nacional ou estadual do partido, em meio a rodadas de chimarrão. Agora, porém, aparecem cheios de ideias sobre direitos e haveres estaduais junto à União.
A orientar esse entrevero que se desdobra em turnos e returnos na tribuna do parlamento gaúcho está a conduta referida acima: a obsessão pelo poder, ainda que à custa do bem da população. Não descrevo algo inédito. É possível que em outros estados e municípios se reproduzam situações análogas, envolvendo diferentes partidos. O mesmo se passa, também, no Congresso Nacional. As expectativas eleitorais para outubro vindouro, a ideia de um ajuste fiscal sem sacrifício, tipo happy hour, e o amor quase carnal ao Estado e seus seios murchos patrocinam o ânimo desses inacreditáveis debates.
Percival Puggina
O tipo de relação a que me refiro e a perspectiva política em que se escora desbordam de toda razoabilidade. Atribuir excessiva importância à política é mais perigoso do que não lhe conferir qualquer valia. Colocá-la acima de tudo mais é da essência dos totalitarismos, é uma hipertrofia de consequências nefastas. De outra parte, não encontrar na vida um espaço para cuidar do interesse geral, numa hipótese branda, é facilitar as coisas para aqueles que se valem do Estado para abusar do poder e para seu bel-prazer.
É o que estamos assistindo, nestes dias, no Rio Grande do Sul, um Estado que, à exemplo da União, após o desastroso e funesto governo petista, agravado pela recessão gerada pelo governo Dilma, afundou numa crise fiscal sem precedentes. O Estado tem duas opções: ou deixa de pagar sua dívida com a União e fecha as portas, ou se livra provisoriamente dessa conta por três anos e adere a um duro ajuste fiscal que pode levá-lo a horizontes menos encardidos ao término desse prazo. E quem se ergue para obstar a adoção de tais medidas, que envolvem privatizações e limites para o aumento da despesa? Os mesmos que tendo recebido o poder com as contas equilibradas produziram o desastre fiscal do Estado.
No mesmo período, os petistas também exerciam o governo da União e nada fizeram na linha das inexequíveis alternativas que agora apresentam. Nada obtiveram do governo Dilma, tampouco, em acordos que poderiam ter sido celebrados – se desejados e possíveis - numa salinha do diretório nacional ou estadual do partido, em meio a rodadas de chimarrão. Agora, porém, aparecem cheios de ideias sobre direitos e haveres estaduais junto à União.
A orientar esse entrevero que se desdobra em turnos e returnos na tribuna do parlamento gaúcho está a conduta referida acima: a obsessão pelo poder, ainda que à custa do bem da população. Não descrevo algo inédito. É possível que em outros estados e municípios se reproduzam situações análogas, envolvendo diferentes partidos. O mesmo se passa, também, no Congresso Nacional. As expectativas eleitorais para outubro vindouro, a ideia de um ajuste fiscal sem sacrifício, tipo happy hour, e o amor quase carnal ao Estado e seus seios murchos patrocinam o ânimo desses inacreditáveis debates.
Percival Puggina
Os garimpeiros do esgoto de Caracas
Jorge segue um meticuloso sistema de mineração. Acompanhado pelo irmão e outros dois amigos, inicia o processo de busca pelos metais preciosos recolhendo resíduos do leito do rio. Conhecidos como "garimpeiros dos esgotos", esse caraquenhos, em geral homens, passam o dia a buscar restos de metais preciosos das joias que se perdem nos banheiros das áreas mais ricas da cidade.
"Aqui há de tudo, ouro, prata, cobre, às vezes achamos até joias inteiras", conta Jorge Muñoz, de 22 anos, um jovem da periferia de Caracas que passa boa parte de seu tempo no rio Guaire, a poucos quilômetros do Palácio Miraflores, sede do governo venezuelano e de onde o presidente Nicolás Maduro despacha diariamente.
São quilos e quilos de um material escuro, que reúne desde simples pedaços de garrafas plásticas, borracha, pedras e até elementos orgânicos que ele prefere não saber exatamente do que se trata. "Na época de poucas chuvas podemos ter companhias mal cheirosas aqui, é nojento, mas faz parte desse trabalho", conta.
O triste espetáculo de dezenas, às vezes centenas, de pessoas tateando o fundo dos riachos que recebem o esgoto em natura da cidade em busca de algo de valor soma-se agora às cenas de famílias inteiras buscando comida em lixeiras ou amontoados de dejetos nas ruas de Caracas.
Desesperados diante de uma crise econômica sem precedentes, os venezuelanos estão buscando no lixo e no esgoto saídas para sobreviver a uma escassez crescente de alimentos e a uma hiperinflação que rompeu a barreia dos 2000% no último ano.
O Guaire é o principal rio de Caracas e corta a cidade de ponta a ponta. Nele deságua não só estrutura de captação das águas fluviais, assim como o arcaico sistema de esgoto da cidade, em sua maior parte sem tratamento. Praticamente tudo que desce pelos ralos, pias e, o pior, vasos sanitários desta cidade de quase dois milhões de pessoas vai dar no Guaire.
Sujo e fétido na maior parte do tempo, o riacho mais se parece com um canal de esgoto ao ar livre cortando a capital da Venezuela. Promessas de sua revitalização e da implantação de um sistema de captação e tratamento dos dejetos vêm se repetindo governo a governo. É exatamente por conta da filtragem quase nula do esgoto que tanta gente passa os dias a buscar algo de valor em seu leito.
Javier Muñoz, de 17 anos, que acompanha o irmão Jorge no garimpo, diz que ali, perto do Miraflores, é possível encontrar de tudo. O mais comum são pedaços de joias que se partiram na longa viagem entre o banheiro de uma casa de classe média até o leito do riacho. Mas, às vezes, diz ele, vem a sorte grande.
"Esse ano mesmo nós encontramos pelo menos umas três alianças de ouro maciço. Ganhamos um dinheirão", conta o jovem, que não concluiu o segundo grau e não pensa em largar a vida de garimpeiro do esgoto tão cedo. "Olha, o soldo mínimo nesse país está 750 mil bolívares (algo como US$ 3 no câmbio de 29 de janeiro). Em uma semana normal eu faço sozinho três vezes isso ou mais", diz ele, explicando a razão porque tanta gente se arrisca nas águas sujas do riacho todos os dias.
A moeda nacional venezuelana, o Bolívar, passa por um processo de desvalorização absolutamente sem controle. Só neste ano já perdeu 56% de seu valor diante do dólar. No acumulado dos últimos 12 meses, desvalorizou quase 99%. Com tamanha fragilidade, a única maneira de não perder dinheiro é investindo em ativos menos voláteis, como dólar e ouro. Como o comércio de moeda americana no país é monopólio do Estado, há escassez de dólar no mercado. Com isso, o mercado de ouro se mantém continuamente aquecido.
Nem Javier, nem Jorge ou qualquer outro garimpeiro do esgoto tem dificuldades em vender qualquer mínima peça que encontre. "Nós compramos até um décimo de grama, tanto de ouro quanto de prata", diz Pedro Ortega, sócio de uma das centenas de casas de compra e venda de ouro em Caracas. "O mercado está aquecido porque muita gente está se desfazendo de suas joias, a situação está muito difícil para todos", conta ele. "Por outro lado, quem consegue dinheiro quer se desfazer o mais rápido do possível dos bolívares, ninguém quer ficar com eles com uma inflação como essa".
Além do cheiro e da sujeira, o Guaire também é um depósito de bactérias, parasitas e outros potenciais riscos à saúde humana. De acordo com infectologistas venezuelanos da Universidade Central de Caracas, autora de um estudo sobre as condições do rio, há grandes chances de contaminação por leptospirose, hepatite e outras enfermidades graves. Jorge e Javier garantem jamais terem ficado doentes por passar o dia enfiados no Guaire.
O único problema, dizem eles, é quando se machucam com algum pedaço de vidro ou metal. "Aí realmente demora a fica bom, fica infeccionado, mas nosso corpo já está acostumado, somos fortes", diz Jorge, pouco antes de enfiar a cabeça dentro das águas fedorentas do Guaire em busca de algum pedaço de metal vindo do banheiro de algum vizinho do presidente Maduro.
Deutsche Welle
"Aqui há de tudo, ouro, prata, cobre, às vezes achamos até joias inteiras", conta Jorge Muñoz, de 22 anos, um jovem da periferia de Caracas que passa boa parte de seu tempo no rio Guaire, a poucos quilômetros do Palácio Miraflores, sede do governo venezuelano e de onde o presidente Nicolás Maduro despacha diariamente.
Busca por joias no Guaire, onde deságua o arcaico esgoto de Caracas |
O triste espetáculo de dezenas, às vezes centenas, de pessoas tateando o fundo dos riachos que recebem o esgoto em natura da cidade em busca de algo de valor soma-se agora às cenas de famílias inteiras buscando comida em lixeiras ou amontoados de dejetos nas ruas de Caracas.
Desesperados diante de uma crise econômica sem precedentes, os venezuelanos estão buscando no lixo e no esgoto saídas para sobreviver a uma escassez crescente de alimentos e a uma hiperinflação que rompeu a barreia dos 2000% no último ano.
O Guaire é o principal rio de Caracas e corta a cidade de ponta a ponta. Nele deságua não só estrutura de captação das águas fluviais, assim como o arcaico sistema de esgoto da cidade, em sua maior parte sem tratamento. Praticamente tudo que desce pelos ralos, pias e, o pior, vasos sanitários desta cidade de quase dois milhões de pessoas vai dar no Guaire.
Sujo e fétido na maior parte do tempo, o riacho mais se parece com um canal de esgoto ao ar livre cortando a capital da Venezuela. Promessas de sua revitalização e da implantação de um sistema de captação e tratamento dos dejetos vêm se repetindo governo a governo. É exatamente por conta da filtragem quase nula do esgoto que tanta gente passa os dias a buscar algo de valor em seu leito.
Javier Muñoz, de 17 anos, que acompanha o irmão Jorge no garimpo, diz que ali, perto do Miraflores, é possível encontrar de tudo. O mais comum são pedaços de joias que se partiram na longa viagem entre o banheiro de uma casa de classe média até o leito do riacho. Mas, às vezes, diz ele, vem a sorte grande.
"Esse ano mesmo nós encontramos pelo menos umas três alianças de ouro maciço. Ganhamos um dinheirão", conta o jovem, que não concluiu o segundo grau e não pensa em largar a vida de garimpeiro do esgoto tão cedo. "Olha, o soldo mínimo nesse país está 750 mil bolívares (algo como US$ 3 no câmbio de 29 de janeiro). Em uma semana normal eu faço sozinho três vezes isso ou mais", diz ele, explicando a razão porque tanta gente se arrisca nas águas sujas do riacho todos os dias.
A moeda nacional venezuelana, o Bolívar, passa por um processo de desvalorização absolutamente sem controle. Só neste ano já perdeu 56% de seu valor diante do dólar. No acumulado dos últimos 12 meses, desvalorizou quase 99%. Com tamanha fragilidade, a única maneira de não perder dinheiro é investindo em ativos menos voláteis, como dólar e ouro. Como o comércio de moeda americana no país é monopólio do Estado, há escassez de dólar no mercado. Com isso, o mercado de ouro se mantém continuamente aquecido.
Nem Javier, nem Jorge ou qualquer outro garimpeiro do esgoto tem dificuldades em vender qualquer mínima peça que encontre. "Nós compramos até um décimo de grama, tanto de ouro quanto de prata", diz Pedro Ortega, sócio de uma das centenas de casas de compra e venda de ouro em Caracas. "O mercado está aquecido porque muita gente está se desfazendo de suas joias, a situação está muito difícil para todos", conta ele. "Por outro lado, quem consegue dinheiro quer se desfazer o mais rápido do possível dos bolívares, ninguém quer ficar com eles com uma inflação como essa".
Além do cheiro e da sujeira, o Guaire também é um depósito de bactérias, parasitas e outros potenciais riscos à saúde humana. De acordo com infectologistas venezuelanos da Universidade Central de Caracas, autora de um estudo sobre as condições do rio, há grandes chances de contaminação por leptospirose, hepatite e outras enfermidades graves. Jorge e Javier garantem jamais terem ficado doentes por passar o dia enfiados no Guaire.
O único problema, dizem eles, é quando se machucam com algum pedaço de vidro ou metal. "Aí realmente demora a fica bom, fica infeccionado, mas nosso corpo já está acostumado, somos fortes", diz Jorge, pouco antes de enfiar a cabeça dentro das águas fedorentas do Guaire em busca de algum pedaço de metal vindo do banheiro de algum vizinho do presidente Maduro.
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