sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Pensamento do Dia

 




Desafios do novo sebastianismo

Muito provavelmente, o restabelecimento da ordem após a catástrofe econômica e política de quatro anos de incitação à baderna não é a única na importância e na urgência. É preciso mais para superar o governo que desgovernou para criar um vazio proposital, redesenhar o Estado e fragilizar a sociedade. A articulação golpista de 2018 não foi feita apenas para ganhar uma eleição, mas para subjugar um país.

Falas presidenciais valorizaram a desordem. A bandeira do bolsonarismo não tinha disfarce: era a de substituir valores, normas, direitos, concepções políticas e conquistas sociais exatamente pelo seu contrário. O objetivo era evidente: implantar o caos, transformar o país num caso de polícia, criar a necessidade de repressão para enquadrar um inimigo fantasioso e fora de moda.


Analistas e comentaristas políticos experientes começam a chamar a atenção para o fato de que Bolsonaro não tem competência para as tarefas intelectuais de arquitetar as minúcias do que foi o desastre de seu governo e das pretensões do bolsonarismo. Poderiam dizer que tudo se encaixa desde antes de sua posse e durante todo o seu governo. Nenhuma bobagem, nenhuma tolice fora do lugar. Ao mesmo tempo é o todo que está fora de lugar. Uma articulação de longa duração, algo montado para transformar qualquer presidente que fosse o eleito em 2018 em mandatário de curto mandato, mesmo o próprio Bolsonaro. Ele deu indicações de consciência do descarte.

O bolsonarismo foi planejado como permanência do ausente, visibilidade do invisível, morto que fala e acha que vai ressuscitar.

Em todo canto que se vá, seu fantasma está lá, com muitas caras, muitas vozes. Ele mesmo, no entanto, é cada vez mais um ninguém. O que propõe a indagação: quem é o verdadeiro Bolsonaro? Onde está ele? Quem o sustenta? Pode-se ver-lhe a sombra nos mais estranhos e diferentes lugares.

A grande surpresa nesse processo foi a disponibilidade do enorme número de cúmplices, civis e militares, de gente ansiosa por se armar e se tornar caçadora, prontos para se tornar “patriotas”, sem levar em conta que patriota de verdade pega no batente duro. Surgiu o patriota de fantasia, bandeira nacional transformada em trapo para substituir blusa e cueca. Em Brasília, uma multidão sebastianista na agonia da espera, fora e dentro do quartel.

A estratégia do bolsonarismo foi ampla, atacou em todas as frentes e todas articuladas: Forças Armadas, igrejas e religiões, profissões, partidos, grupos humanos residuais com traços claros e limítrofes de identidade marginal. Tudo que, de diferentes modos, se situa no terreno complicado do que o sociólogo Everett Stonequist definiu como “homem marginal”. Os casos mais extremos dessa marginalidade são os dos seres humanos que não se encontram, julgando-se permanentemente do lado oposto daquele em que gostariam de estar. São pessoas que não são, seu lado mais perigoso. Todo o tempo passando para o lado de lá sem sair do lá de cá. Querendo voltar sem ter atravessado a barreira da ida.

Essa situação sugere a necessidade urgente de dar à restauração da ordem a dimensão severa de um projeto de reconstrução nacional e de despoluição ideológica do país.

Os vencedores da guerra de 1939-1945 tiveram a lucidez de não repetir o erro de 1918. O programa de desnazificação decorrente da derrota da Alemanha abriu espaço para uma redemocratização socialmente enraizada. Não deixou restos de sementes no cisco da história.

Tudo que se sabe sobre Hitler é que ele não tinha competência para fazer o que fez ou o que em seu nome fizeram. Já no governo, passava boa parte do tempo fechado em seu quarto, levantava tarde e passava a maior parte do tempo conversando a mesma conversa todos os dias. Hitler foi sendo inventado pelos cúmplices, pelos bajuladores, pelos covardes, pelos oportunistas. Foi um ser imaginário, rodeado de gente que nele via alguém que não existia de fato, mas que achava ser real.

A trajetória e o declínio de Bolsonaro já nos dias anteriores ao término do mandato indica algo parecido. A situação esquisita de que se tornou personagem, de certo modo, sugere que é ele uma invenção, uma construção. Ele é o todo de cada um que com ele se identifica, que nele vê o que julga ser. O rápido esvaziamento do ex-presidente o transformou num ser murcho, com perfil de ator à espera de um papel enquanto o enredo flui.

Poderá ser grave engano considerá-lo de plantão à espera da próxima eleição presidencial para eventual retorno ao poder. A personagem oculta maquinada nas sombras, que ele personificou de 2019 a 2022, provavelmente encarnará em outra figura que, com mais talento para o mal, dê continuidade ao desmonte da nação.

A extrema direita veio para ficar, talvez mais fraca. Já Bolsonaro…

Do seu refúgio em um condomínio de luxo em Orlando, na Flórida, o ex-presidente Jair Bolsonaro mandou dizer que não comentou com ninguém as declarações da deputada Carla Zambelli (PL-SP) a seu respeito, e que nem sequer as leu.

Pode não ter comentado, mas sem dúvida as leu. Um dos seus filhos (adivinha qual!) repassou a informação de que ele sabia que Zambelli fez um acordo com o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, para não ser presa.


Fez parte do acordo ela sair atirando em Bolsonaro. Devota do ex-presidente, sua fiel escudeira nos últimos quatro anos, Zambelli, só ontem, perdeu quase 10 mil seguidores no Instagram por ter dito que Bolsonaro abandonou sua tropa e que deveria estar aqui.

Foi além: criticou-o por não ter condenado os acampamentos de golpistas à porta de quartéis do Exército, e sugeriu que a direita procure um novo líder, que reúna condições para vencer as eleições de 2026. Soou a rompimento de relações com Bolsonaro.

Zambelli é investigada pelo Supremo Tribunal Federal por ter postado nas redes sociais que duvidava da lisura do processo eleitoral do ano passado. Insinuou que houve fraude. Ela confessa que temeu ser presa e que, por isso, procurou Moraes.

O que retém Bolsonaro nos Estados Unidos é também o medo de ser preso. Sem mais direito a ser julgado exclusivamente pelo Supremo, muitos dos processos a que responde foram parar na primeira instância da Justiça. E aí mora o perigo para ele.

Uma vez de volta, poderá ser preso temporariamente por um juiz qualquer. Como foi Michel Temer quando saiu da Presidência da República. Se Zambelli afirma que Bolsonaro deixou órfãos os que lhe foram leais, o inverso parece também estar em curso.

Uma fatia expressiva do Centrão, que apoiou Bolsonaro, negocia o apoio a Lula. Sob a desculpa de que os estados não sobrevivem sem a União, governadores procuram Lula em busca de ajuda, e ele está sempre disposto a ajudá-los. Uma mão lava a outra.

Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador de São Paulo, diz-se encantado por Lula, que o socorreu na hora em que ele mais precisava, em meio à tragédia de São Sebastião. Ali, o número de mortos pelas chuvas fortes ultrapassará, hoje, a casa dos 50.

Ronaldo Caiado (União), governador de Goiás, e Celina Leão (PP), governadora em exercício do Distrito Federal, estão com trânsito livre no Palácio do Planalto. Os dois batalharam pela reeleição de Bolsonaro, mais Celina do que Caiado. Não deu, não deu.

A extrema direita jamais deixará de existir, embora mais fraca. Quanto a Bolsonaro…

País tem duas correntes políticas baseadas no horror

Mesmo depois das Trevas Bolsonaristas, última etapa da fase de devastação da vida pública nacional que foi motivada por uma enorme onda de sentimento antipolítica, há ainda quem realmente considere que o desprezo pela política é coisa muito sofisticada e nitidamente superior.

Mas não foi o antipetismo o combustível do ciclo de autodestruição que estará completando uma década este ano e que alimentou as várias camadas de crise que nos levaram quase ao fundo do abismo?

Certamente, mas o antipetismo é tão somente uma forma aguda do sentimento antipolítica que emergiu numa circunstância em que o PT vinha de três mandatos presidenciais seguidos.

Tanto é verdade que os portadores da atitude antipolítica viraram ferozes anti-Temer apenas seis meses depois de consolidado o impeachment de Dilma, sem nem trocar de luvas ou discurso. E os que permaneceram lúcidos também se tornaram antibolsonaristas quando se deram conta da farsa da "nova política" prometida pelo "mito" e da sua mais completa submissão às velhas raposas do Congresso.

O fato é que o sentimento antipolítica continua o básico da afetação de quem continua acompanhando a política institucional e o funcionamento do governo apenas para desprezá-los de pertinho.


Por outro lado, falar mal da política e de quem governa é tradição desde que os humanos inventaram formas de comunidade política. E um certo grau de hostilidade e desconfiança com relação ao poder político é um bom sinal de saúde política e autonomia de pensamento.

A antipolítica, contudo, é mais que isso: acontece quando numa sociedade há um baixíssimo grau de confiança nas instituições e nos atores da política contrastando com um elevado nível de ódio contra tudo que se refere à vida pública.

Resumo a crença antipolítica nacional em cinco dogmas: 1) a política é uma atividade indigna praticada por indivíduos rebaixados que lutam apenas pelos próprios interesses; 2) todo governo é uma corja; 3) todo partido político é uma quadrilha; 4) todos os políticos e portadores de mandatos são ou parasitas ou ativos delinquentes à espreita de uma oportunidade; 5) essas coisas só acontecem no Brasil.

Atualmente, há pelo menos duas grandes correntes de antipolítica no país. A primeira parte de uma posição superior que repete que Brasília é uma cloaca, não há político que preste, todo governante é um gângster.

E adora citar "a melô do despeitado" de Ruy Barbosa: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto".

Ruy merecia melhor sorte do que virar patrono do "mimimi" antipolítica.

A segunda posição antipolítica pode ser sintetizada na máxima de Danilo Gentili: "Existem níveis para otários. O otário nível master é aquele que acredita em político". O gentilismo provém do modelo-CQC, que considera que insultar e humilhar políticos é um ato de justiça.

Diferenciam-se basicamente porque o primeiro tipo é um decadentista bem-educado e o segundo tem na grosseria um dos seus programas fundamentais. Além disso, o gentilismo é instintivamente conservador (no caso, antiesquerdista visceral), embora os recursos intelectuais arregimentados para defender a sua posição nunca passem de dogmas.

Ambos os tipos consideram a política uma atividade rebaixada, mas o segundo não se contenta em desprezar grandes categorias como "os políticos", "os partidos" ou "o governo"; o seu desprezo precisa ser mostrado no varejo e ser "fulanizado": Sarney é ladrão, Dirceu é corrupto, Renan é patife, Lula é o nine, Dilma... Bem o que eles diziam de Dilma em 2014 eu prefiro não repetir.

Na antipolítica grossa, pessoas e instituições precisam ser ofendidas pessoalmente.

O segundo tipo é mais fácil de descartar intelectualmente, dada a sua brutalidade, mas é a forma mais difícil de ser superada na prática, não só porque dez anos de raiva política nos deixaram viciados, mas por ser o insulto muito menos exigente que o argumento.

O primeiro tipo, por outro lado, é mais difícil de se enfrentar intelectualmente, a não ser pela provocação clássica que diz que não há problema em se detestar a política, desde que se saiba que você será governado por quem gosta dela.

Refazendo a história

Nascido na Martinica, Aimé Césaire (1913-2008) é o mais importante poeta surrealista. Na década de 1930, época em que estudou em Paris, escreveu no jornal L’Étudiant Noir o artigo “Nègreries: conscience raciale et révolution sociale”, no qual formula o conceito de “negritude”, no sentido de ideologia e/ou ontologia. Na síntese de Jean-Paul Sartre, “contra a Europa e a colonização”.

Em 1950, Aimé Césaire lança o Discurso sobre o colonialismo. Tornada a bíblia dos militantes anticolonialistas, inspirou a doutrina pan-africana e os Panteras Negras. É citada na abertura do livro Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon. Compõe o acervo básico das bibliotecas escolares francesas, de segundo grau. A autorreflexão pelos colonizados é um ato performático de libertação. A atualidade do libelo está em apontar o fascismo como produto do colonialismo.

Para o intelectual insurgente, “embora se disfarce de humanista e cristão, o burguês carrega consigo um Hitler sem saber, Hitler vive nele, Hitler é seu demônio, se o vitupera é por falta de lógica; o que ele não perdoa em Hitler não é o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco; é haver aplicado na Europa os procedimentos colonialistas que atingiam apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África”. Corta, agora, para uma breve recapitulação da história verde-amarela recente.

Dois meses e meio depois de assumir a presidência, Jair Bolsonaro reuniu-se nos Estados Unidos com representantes da extrema direita estadunidense. Com todas as letras, expôs o programa de destruição das bravas conquistas alcançadas pelos governos progressistas, no primeiro decênio do século XXI. Foi incisivo ao anunciar o ataque aos direitos sociais pelo desgoverno que iniciava.


O desprezo aos direitos humanos já era de conhecimento geral. Fora reiterado em cerimônias laudatórias a covardes torturadores. Assim, quando as entidades empresariais, o aparato judicial e a mídia corporativa brasileira avalizaram o golpe ao mandato legítimo de uma presidenta honesta para, a seguir, cancelar o líder das intenções de voto nas pesquisas, em 2018, as “elites do atraso” tinham ciência de que seu Hitler interno chancelava um Hitler externo. Ninguém foi ludibriado. “Essa é a acusação que eu dirijo ao pseudo-humanismo: ter reduzido os direitos humanos, ter uma concepção tendenciosa deles e, sordidamente, racista”, parafraseando a denúncia do vate caribenho.

Isso não tirou o sono das pessoas de bem, nem constrangeu o lero sobre a liberdade e a igualdade nos saraus da “casa grande”. Os pobres, na maioria negros e pardos, pagariam a conta. A esquerda levaria a culpa. Tudo delineado de acordo com a gramática da tradição para perpetuar as hierarquias sociais herdadas do domínio colonial. O caráter extrativista da burguesia local não viu nenhum problema no retrocesso que fez, o Brasil, voltar a ser um mero entreposto comercial das potências maiores. As privatizações de empresas e de riquezas estratégicas bloquearam o promissor projeto desenvolvimentista para amainar as iniquidades, que avolumavam na periferia. Com o que os vira-latas do capital abraçaram um homem sem qualidades, com a alegação de que era “sincero”.

As oscilações das classes dirigentes dependem do comprometimento com o sistema-mundo. Para o agronegócio, tanto faz se a nação preserva o Estado democrático de direito ou se encarna o regime iliberal. “Os países compram alimentos, sem perguntar sobre a procedência”. A convicção utilitária reproduz o imperialismo das commodities. A fábula meritocrática dos exportadores nutre-se de ideias inescrupulosas. Os ressentidos, sublinhe-se, não com as cruéis injustiças que infernizam a população, mas com sua posição específica no edifício das discriminações, respaldaram o candidato que elogiava os 500 anos do status quo de desigualdades, para que suspendesse a mobilidade social.

Os setores globalizados da economia tendem à contemporização. Não por que possuam uma ética superior, afinal, endossaram a escalada ao Palácio do Planalto do “palhaço sociopata”, na expressão de Noam Chomsky. Prospectam negócios, com mais variáveis intervenientes. Não quer dizer que os aspectos processuais da trama sejam secundários, e sim que a identificação ideológico-moral com o extremismo de direita foi decisiva para a adesão da escumalha elitista. O Coisa Ruim é o seu “eu” profundo, onde fracos não têm vez, gays são linchados, mulheres se acomodam no degrau debaixo, negros obedecem ao sinhô, negras servem à concupiscência e precarizados limpam os banheiros.

Tristes trópicos em que as classes detentoras do poder concentram a renda e o consumo, não a capacidade de socializar a cidadania e garantir a soberania nacional. Por instinto de sobrevivência, dias antes do memorável segundo turno, banqueiros, investidores, empresários declararam apoio à chapa que aglutinou a Frente da Esperança contra a corja de canalhas, encabeçada pelo genocida.

Anos atrás, o Estado de São Paulo cravara, em editorial, que a escolha era difícil. A mentalidade antirrepublicana não se alterou. Em 2022, as classes médias retornaram à cena do crime e quase reelegeram o corrupto que vocalizou os preconceitos colonialistas da dominação e subordinação. O país ainda não ultrapassou a fase de acumulação primitiva, o que explica os delitos dos bilionários. Se o andar de cima não cuida do ralo da pia, a caixa de gordura entupida transborda no condomínio.

Sob o tacão bolsonarista, a ignorância e a truculência eram normais. La bête humaine, porém, era um pária em assembleias da ONU, sem que uma alma se dignasse cumprimentar. O negacionismo científico em plena pandemia do coronavírus, o negacionismo político em relação à importância das instituições republicanas, o negacionismo afetivo com o sofrimento de vulneráveis empurrados para o mapa da fome e o negacionismo climático frente ao desmatamento da floresta amazônica feriram a razão iluminista ocidental que, apesar dos pesares, influiu na opinião pública esclarecida. As maneiras de miliciano, desbocado, esteve sempre em contradição com o respeito e o decoro.

A invasão do Capitólio pela turba trumpista acendeu o alerta. Uma generalização dos Estados de exceção acarretaria uma instabilidade no planeta, transformando-o num barril de pólvora, e deixaria a bandeira da paz e da democracia de posse dos defensores radicais da justiça social e ambiental.

Acostumadas a cálculos geopolíticos, frações da burguesia perceberam que, criar o Frankenstein, é uma tarefa simples comparada ao controle do monstrengo, uma vez instalado no centro do aparelho estatal na condição de comandante-em-chefe das Forças Armadas. A lição, amiúde esquecida, remonta à experiência na Alemanha, com o Führer, o exterminador de estimação dos extremistas.

O capitalismo tem se mostrado, incapaz, de assegurar um direito dos povos (vide o fracasso das conferências sobre o clima) e, impotente, para estabelecer uma moralidade individual (vide o papel dos yuppies na crise de 2008, fruto da especulação financeira e da desregulamentação econômica). “No final do beco, há Hitler. No fundo do capitalismo, ansioso por sobreviver, há Hitler. No fundo do humanismo formal e da renúncia filosófica, há Hitler”. Trump, Putin, Orbán, Erdogan, Meloni…

O núcleo do hitlerismo está condensado na seguinte assertiva: “Nós aspiramos, não à igualdade, mas à dominação. O país de raça estrangeira terá que se tornar novamente um país de servos, diaristas agrícolas ou trabalhadores industriais. Não se trata de eliminar as desigualdades entre os homens, mas de ampliá-las e torná-las uma lei”. A receita de selvageria foi adotada pelo Consenso de Washington, nos estertores da Guerra Fria. Era o neoliberalismo que, com pompa, se apresentava como La nouvelle raison du monde, para evocar a ótima obra de Pierre Dardot e Christian Laval.

Políticas impúblicas necessitam do autoritarismo para impor o laissez-faire protoescravista. O mercado recicla e renova as graves disparidades no tecido social, e barra ou omite as contestações orgânicas por parte dos ofendidos, em cada momento. O modelo ideal de gestão da modernização neoliberal combina o velho colonialismo com o novo fascismo – a trágica tríade da necropolítica.

Os Yanomami, a exemplo dos demais povos originários, compreendem o dilema. Submetidos ao totalitarismo da mercadoria, em que a devastação da natureza anda junto com a extração ilegal de minerais (ouro, diamantes) em terras oficiais demarcadas, a comunidade é um obstáculo à rapina. O mesmo vale para os trabalhadores excluídos da cadeia produtiva, que formam o triste exército de marginalizados rumo à “solução final”. A dinâmica capitalista, ao justificar a colonização, premiou a força e a morte. “A civilização doente, de negação em negação, chama seu Hitler, seu castigo”.

Aimé Césaire incomoda os reacionários. Em uma ocasião, um deputado direitista confrontou-o diretamente. “O que seria de você sem a França?” – “Um homem de quem não teriam tentado tirar a liberdade”, respondeu. “Mas você ficou feliz que nós o tenhamos ensinado a ler!” – “Aprendi a ler graças ao sacrifício de milhares e milhares de martinicanos que sangraram suas veias para que seus filhos pudessem ser educados e pudessem defendê-los um dia”, arrematou com altivez e destemor.

“Posso ver bem o que a colonização destruiu: as admiráveis civilizações indígenas, e nem Deterding nem a Royal Dutch, nem a Standard Oil jamais me consolarão dos astecas ou dos incas”, desabafa o poeta. Imagine o quadro Angelus novus, de Paul Klee, em que o anjo é empurrado para a frente pelo progresso, enquanto volta a cabeça e olha para as terríveis ruínas do belo que ficam pelo caminho.

A colonização é igual à coisificação. Não há espaço para o efetivo exercício dos afetos autênticos na dialética entre o colonizador e o colonizado. Só há espaço para o trabalho forçado, a intimidação, a pressão, a polícia, os impostos, o roubo, o estupro, a imposição cultural, o desprezo, a desconfiança, as covas rasas, a presunção, a grosseria, o insulto, a loucura, as elites descerebradas, as massas aviltadas. “Falo de proletarização e mistificação. Faço a apologia das civilizações para-europeias”.

A Europa burguesa liquidou civilizações inteiras, dissolveu pátrias, arruinou nacionalidades e arrancou a raiz da diversidade. Maquiou a barbárie com avenidas cheias de automóveis, o moderno shopping norte-americano e a crença em soluções hiperindividualistas. Multiplicou a violência, o excesso, o desperdício, o mercantilismo, o comportamento de manada, a vulgaridade, a desordem. Se prevaleceu, é que o sistema aprendeu a absorver a “grande recusa”, interpreta Herbert Marcuse.

Reconhecer o continuum que liga o colonialismo ao neoliberalismo e ao fascismo, por meio de Estados de exceção, significa assumir a longa história de duras batalhas (o “bom combate”, a que se referia o apóstolo Paulo) pela emancipação dos oprimidos e explorados. Significa enriquecer o imaginário e as práxis populares com o elã de personagens anônimas, que resistiram às atrocidades. Organização sociopolítica e de parentesco, linguagem, cosmologia, artesanato, ritualística, cultos, hábitos, vivências, lendas, conflitos, mártires são memórias que perpassam as múltiplas gerações.

“Transformar o mundo”, disse Karl Marx. “Mudar a vida”, disse Arthur Rimbaud. As duas palavras de ordem se encontram na encruzilhada esperada da historicidade com a cotidianidade. Quando restabelecemos os elos escondidos da corrente de opressão e exploração; quando recuperamos a percepção coletiva de lutadores redivivos sobre elos perdidos de dignidade e resiliência, em nossa ancestralidade, reapropriamo-nos da energia capaz de erguer a democracia igualitária e libertária, com participação cidadã. Refazendo a história, o horizonte se reabre e a utopia afigura-se perto.

Com o otimismo da vontade, é possível quebrar os grilhões. Como nos versos surreais do poema de título A hurler (A uivar): “Mon temps viendra que je salue / grand large / simple // Et là là / bonne sangsue / là origine des temps / là fin des temps (Meu tempo virá e eu o saúdo / grande vasto / simples // E então então / boa sanguessuga / então a origem dos tempos / então o fim dos tempos).