terça-feira, 19 de julho de 2022

A moto que move o Brasil

 


Liberdade pessoal e os perigos da ditadura digital

Será que a humanidade está criando o seu próprio fim? Será que somos umas das últimas gerações da espécie Homo sapiens, que, em breve, será suplantada por seres cibernéticos que mal se parecem com seus criadores (nós)? No dia 24 de janeiro de 2018, o historiador e autor Yuval Harari apresentou sua visão do futuro no Fórum Mundial de Economia em Davos, na Suíça.

Harari é famoso no Brasil por seus best-sellers Sapiens: uma breve história da humanidade e Homo Deus: uma breve história do amanhã. Numa apresentação fascinante, Harari construiu um futuro terrível – mas possível – baseado na sua tese de que estamos, agora, na terceira grande revolução, o controle da informação, que segue o controle da terra (Revolução Agrária) e o controle das máquinas (Revolução Industrial).

O fim da nossa espécie, segundo ele, ocorrerá quando for possível extrair de cada indivíduo dados biométricos de alta precisão que serão, então, analisados por um sistema centralizado de decisões controlado por governos ou corporações (ou ambos). Dados biométricos incluem, por exemplo, o batimento cardíaco, a pressão arterial, a composição do suor, a dilatação das pupilas etc.; uma espécie de detector de mentiras de alta sofisticação que permite mapear fisiologicamente as emoções.


Imagine, sugeriu Harari, que o governo da Coreia do Norte force seus cidadãos a usar um bracelete que transmite dados biométricos aos centros de dados do governo. Com isso, o governo poderá monitorar o que as pessoas pensam do seu líder e, essencialmente, como vivem o seu dia a dia. Poderão, até, saber mais sobre você do que você mesmo, visto que muitas vezes nem sabemos o que está ocorrendo com nossas emoções.

A visão apocalíptica de Harari ecoa, com tons de historiador, a chegada da “Singularidade” do inventor americano Ray Kurzweil, desprovida da expectativa um tanto romântica de Kurzweil de que a tecnologia nos trará a imortalidade. (Ao menos, uma versão de imortalidade, com nossa essência, a informação de quem somos, transferida a computadores com capacidade de emular nosso consciente. Veja o ensaio “O homem que quer ser Deus”.)

Convido os leitores que querem saber mais sobre Kurzweil a assistir ao documentário Transcendent Man (Homem Transcendente). A ideia central de Harari é que estamos próximos a conseguir modificar o “programa informático da vida”: se pensarmos em organismos como sendo algoritmos, basta termos capacidade de computação e acumular dados biométricos suficientes para criarmos qualquer tipo de criatura viva. Afinal, se a vida é como um programa de computador (o software) que roda nas reações bioquímicas que definem nosso metabolismo (o hardware), podemos modificar o programa e criar novos algoritmos correspondendo a outros tipos de criatura.

Juntando a isso os avanços na área da inteligência artificial, podemos contemplar o fim da nossa espécie, que se tornaria obsoleta. Outro modo de se ver isso: pela primeira vez na história, podemos controlar as rédeas da evolução das espécies, que deixa de depender da seleção natural. As questões essenciais, portanto, são:

Quem controlará esses dados?
Como essa nova fonte de riqueza será regulada? Temos leis que regulam a possessão da terra e das máquinas.
Quais as leis que regulam os dados e a privacidade das pessoas?


Harari especula que a maioria das pessoas doará suas informações privadas de graça, inclusive os seus dados biométricos, especialmente em troca de uma saúde melhor. Ou, numa ditadura, talvez não tenham outra opção. Ou, ainda, e mais pertinente com o que já está acontecendo, pessoas fornecerão dados biométricos em troca de serviços oferecidos por empresas: "Receba suas entregas de graça em casa e muitas outras ofertas se você nos passar os dados biométricos registrados no seu relógio esportivo ou Fitbit.”

Harari é corretamente vago ao prever quando isso vai ocorrer: décadas, talvez um século, disse. Porém, na sua visão, como na de Kurzweil, esse futuro é inevitável. Obviamente, ninguém pode prever o futuro. O que podemos fazer é extrapolar o que sabemos no presente da melhor forma possível. Não há dúvida de que computadores serão cada vez mais poderosos, e que a genética e a bioengenharia continuarão a avançar rapidamente.

A ciência de dados (do inglês, data science), que atende principalmente aos interesses de empresas e governos, vai ficar cada vez mais sofisticada. Forças de mercado e a gana dos investidores vão continuar a alimentar a nova revolução. Será que não existem outras tendências, capazes de equilibrar essa inevitabilidade? Felizmente, acho que sim.

Os tempos estão mudando de várias formas. Em primeiro lugar, estamos testemunhando o surgimento da ética empresarial. Um número cada vez maior de empresas está percebendo que, se não alinharem seus valores com os dos seus clientes, irá perdê-los. Um exemplo recente nos EUA é o boicote de várias empresas à Associação Nacional do Rifle, que promulga o direito do cidadão ao porte de armas de fogo. (Lamentavelmente, um projeto do Senado Federal no Brasil propôs a revogação do Estatuto do Desarmamento no Brasil.

Não existe modelo a ser copiado pior do que o americano, dados os constantes massacres em escolas e lugares públicos. Mas este é um assunto para outro ensaio.) O consumidor tem poder, mais do que imagina. Empresas e instituições com padrões éticos baixos podem ser forçadas a mudar de posição.

Outro ponto essencial é que a ciência tem limites, em particular em relação a quanto podemos saber do mundo e de nós mesmos. A convicção, inclusive de Harari, de que a ciência irá saber tudo, conquistar tudo, não tem nenhum respaldo na prática ou historicamente. A onisciência é reservada aos deuses; a tecnologia é limitada, mesmo se avança sempre. Monitorar a atividade de 85 bilhões de neurônios e dos neurotransmissores fluindo através de trilhões de sinapses no cérebro humano é impraticável.

No máximo, podemos ter um mapa incompleto do que ocorre no nosso corpo e cérebro. Harari parece confundir o mapa (como descrevemos o mundo) com o território (o mundo como ele de fato é), um erro típico de uma cultura que defende o triunfalismo científico como uma espécie de nova religião. Nossa percepção da realidade depende fundamentalmente do quanto podemos ver do mundo, algo que explorei em detalhe em meu livro A ilha do conhecimento. A ciência jamais responderá a todas as perguntas pelo simples motivo de que jamais saberemos todas as perguntas que podem ser feitas! Ao avançar, a ciência encontra novas perguntas que não poderia ter antecipado.

De qualquer forma, mesmo com dados biométricos limitados, governos e empresas podem causar sérios danos. Concordo com Harari que precisamos começar essa conversa sobre nosso futuro coletivo imediatamente. Concordo, também, que de forma alguma essa conversa pode ser relegada aos políticos que, tipicamente, pouco ou nada sabem sobre os avanços científicos.

Sendo assim, quem, então, irá controlar o armazenamento de dados pessoais? Quais os limites e salvaguardas que devem ser impostos para garantir nossa liberdade na era da ditadura digital? Precisamos de uma pluralidade de opiniões: cientistas, humanistas, empresários, artistas, advogados, líderes comunitários.
O perigo maior é a apatia, é o não fazer nada. Historicamente, as maiores tensões sociais ocorreram quando o controle da terra e das máquinas ficou na mão de poucos. Com os dados, temos o mesmo desafio, e com um bem muito mais fluido, muito mais difícil de controlar do que a terra a ser arada ou as máquinas industriais.

No meio-tempo, cuidado com os seus dados biométricos, aqueles que você capta no seu Fitbit ou relógio esportivo e divide inocentemente na rede, achando que só você e seus amigos têm interesse neles.
Marcelo Gleiser, "O caldeirão azul"

Seu santo nome em vão

Dizem que Deus é brasileiro. Talvez dissidente, diante do farto uso de seu nome em vão. Está no preâmbulo da Constituição de 1988 – “sob a proteção de Deus” – , a mesma que define o Brasil como estado laico. Abre as sessões dos parlamentos e decora com o crucifixo de seu filho milhares de repartições públicas país afora. Mas nunca antes Ele foi tão explorado como nos tempos de Jair Bolsonaro. Do slogan do presidente às participações cada vez mais frequentes em cultos de campanha, em pleno horário de trabalho, de preferência associados a motociatas, o “mito” não se envergonha de abusar do Senhor. Algo, decididamente, nada divino.


Planejado, o movimento de campanha envolvendo evangélicos é contínuo. Na sexta-feira, Bolsonaro usou a 43ª Assembleia Geral das Assembleias de Deus do Ministério de Madureira para voltar a Juiz de Fora, 1.408 dias depois do atentado que sofreu na cidade. Procurou sem sucesso desviar o foco do assassinato brutal do tesoureiro do PT de Foz de Iguaçu, que comemorava seu aniversário quando foi morto a tiros por um bolsonarista. Visitou também a Santa Casa que prestou a ele o primeiro atendimento após a facada. Antes, em clima de euforia, nada parecido com a comoção ensaiada que apresentou mais tarde, havia curtido uma motociata com apoiadores. Tudo em dia de batente, custeado pelos impostos dos brasileiros.

E nada acontece, nem mesmo um puxãozinho de orelha. Assim como fez com o Senado e a Câmara no episódio de aprovação da PEC kamikaze, no qual usou os pobres para constranger os parlamentares, Bolsonaro desafia a Justiça com ameaças golpistas, inibindo iniciativas de processos, multas e de impedimento de sua candidatura por desrespeito à legislação eleitoral. Instiga o temor da ruptura democrática para minar a democracia.

De meados de abril para cá, essa foi a 15ª participação de Bolsonaro em cerimônias evangélicas, sete delas em dia de semana, sem qualquer preocupação de casar a agenda religiosa-eleitoral com compromissos formais de governo.

Além da presença, que confere prestígio aos eventos e aos pastores que os lideram, Bolsonaro tem feito o diabo para garantir o apoio irrestrito de representações evangélicas. Anulou dívidas e promulgou isenções de impostos, em um movimento de engana-bobo grotesco – primeiro vetou o perdão de mais de R$ 1 bilhão devido pelas igrejas e depois fez de tudo para que o Congresso derrubasse o veto. Nomeou um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF e abriu as portas do Palácio do Planalto para pastores lobistas flagrados em relações nada republicanas entre o Ministério da Educação e prefeituras. Mais: no dia 12, editou um decreto que modifica o Código Nacional de Telecomunicações, permitindo que emissoras de rádio e televisão possam vender até 100% de seu tempo, antiga reivindicação das igrejas. Pai como este, nem nos céus.

Bolsonaro é originalmente católico, evangélico por influência da mulher Michelle e conveniência eleitoral. Batizou-se no Rio Jordão e passou a ter como queridinho o pastor Silas Malafaia, que parece atrelar a fidelidade não a Deus, mas ao bolso. Em 2012 apoiou o candidato José Serra do PSDB, mesmo partido do presidente Fernando Henrique Cardoso, que Bolsonaro sugeriu ser “fuzilado” por cometer o crime de privatizar estatais. Agora, o mesmo Bolsonaro diz querer privatizar a Petrobras para baixar o preço dos combustíveis, como se o investidor privado fosse abrir mão de políticas de mercado. Algo de fazer até Deus gargalhar.

Para agradar aos evangélicos e à turba conservadora, nas pautas comportamentais Bolsonaro também deu uma guinada incrível: afirma ser radicalmente contra o aborto. Bem diferente de 2000, quando assegurava que essa deveria ser “uma decisão do casal”. Ou seja, suas crenças são de mentira, do jeito que o capeta gosta.

Apesar da ação intensa para assegurar a preferência dos evangélicos – único público em que Bolsonaro detém intenção de votos superior à do adversário Luiz Inácio Lula da Silva -, o embate continua duro. De acordo com o último Datafolha, entre os fiéis, Bolsonaro detém a preferência de 40%. Outros 35% optam por Lula.

Os números refletem um cenário que vai muito além da religiosidade. A maioria dos evangélicos é pobre e a maioria dos pobres rejeita Bolsonaro. São os dados que a campanha de reeleição do presidente tenta inverter com bondades temporárias – aumento no Auxílio Brasil, bolsa-gás, bolsa-caminhoneiro autônomo, troco para taxistas, caixas-d’água, tratores… – e com abuso sem limites da fé.

Mas há um consolo: Deus tudo vê.

A ineptocracia

Clima tenso é o estado natural das competições. Nas eleições, a disputa é a ambicionada taça do poder.

Neste jogo, emerge o que temos de nobre e perverso. Nobre é confiar a outrem a capacidade de agir em nome de legítimos interesses individuais e coletivos. Perverso é o comportamento afrontoso às instituições, às regras do jogo e ao uso criminoso da violência no ambiente democrático.

O Observatório da Violência Política e Eleitoral da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio) registrou no primeiro semestre deste ano 214 casos de violência política, 32% maior do que 161 episódios (ameaças, homicídios, atentados e agressões físicas) no mesmo período do ano eleitoral de 2020.

O levantamento revela que a violência se espalha pelo território nacional e por vários partidos, atingindo de forma mais significativa integrantes do PSD, 19 episódios, Republicanos, 18, PT e PL, 17, no primeiro semestre.


A retórica eleitoral reacenderá os assassinatos brutais da vereadora Marielle Franco, do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira. O misterioso caso de Celso Daniel virá à tona assim como o atentado ao então candidato Bolsonaro.

O que virá pela frente? Mais ódio. No sábado 09/7 o bolsonarista Jorge Guaranho invadiu a festa de aniversário e “fuzilou” o lulista Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu. Em Diadema, Lula agradeceu ao ex-vereador Maninho de PT que, em 2018, reagiu às ofensas do empresário Carlos Alberto Betoni e foi condenado por tentativa de homicídio.

Ao longo do mandato, o Presidente Bolsonaro não buscou construir uma cultura de paz. Pelo contrário, o discurso, o gestual e a mensagem simbólica contribuíram para o atual ambiente de intolerância e conflito.

No plano institucional, constitucionalizado o populismo fiscal, os poderes instauram uma forma degenerada de governo: a INEPTOCRACIA, título de autoria incerta entre o filósofo francês Jean D’Ormesson (1925-2017) e Ayn Rand (1905-1982), filósofa americana de origem judaico-russa, que definiu: “Quando você perceber que, para produzir precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho e que as leis não nos protegem deles, mas pelo contrário, são estes que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada e a honestidade se converte em auto sacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada”.