No filme de Gillo Pontecorvo, “A Batalha de Argel” (1966), sobre a luta pela libertação da Argélia contra o domínio colonial francês, um líder da FLNA (Frente de Libertação Nacional da Argélia) capturado é interrogado pela imprensa sobre as ações do grupo. Os métodos da FLNA incluíam o recrutamento de mulheres para, passando despercebidas pelas forças francesas, depositarem bombas escondidas em cestas, carrinhos de bebê e outras formas de disfarce nos locais públicos da capital frequentados pelos franceses.
– O senhor não acha covarde e imoral usar mulheres portando cestos com bombas para matar inocentes nos cafés e restaurantes?
– Se os franceses me derem os seus helicópteros, podem ficar com os meus cestos.
A cena acima nos convida a uma reflexão necessária sobre o emprego político da violência a partir de duas categorias fundamentais na formação do mundo contemporâneo: colonialismo e terrorismo. Não se trata de justificar, mas de entender a violência, o que nos leva à política. É ela que está por trás da guerra e, paradoxalmente, somente ela pode produzir a paz. Por isso, qualquer avaliação que atribua a violência que ora testemunhamos ao puro ódio interdita uma solução política.
Antes de desbordar o problema, proponho uma reflexão (crucial em nosso tempo): Marx disse que “se aparência e essência coincidissem, toda ciência seria supérflua.” Quando olhamos algo, temos uma impressão. Essa impressão não é capaz de nos revelar a essência do que se vê. Ao observarmos o movimento do Sol, temos a impressão de que é ele que gira ao redor da Terra, e foi a essa conclusão que incontáveis gerações chegaram antes do método científico revelar a verdadeira essência do movimento. Da mesma forma, os fenômenos sociais demandam análise amparada por categorias e método para serem compreendidos.
Dito isso, uma das impressões mais comuns sobre o conflito que inspira esse texto é aquela segundo a qual trata-se de uma guerra religiosa, movida por puro ódio. Nada mais falso.
O objetivo central da política é “produzir” segurança. Isso significa, paradoxalmente, que ela detém a violência em sua essência, já que o preço da segurança é a capacidade de empregar a violência. Assim, quando a diplomacia e a dissuasão falham, a guerra pode se tornar inevitável. Eis, de forma sumária, a fórmula de Clausewitz, cânone da estratégia moderna.
Portanto, à política atribuímos a missão da pacificação indispensável à promoção da vida em sociedade, pois as diversas dimensões dessa vida só podem se realizar após a paz. Esse raciocínio faz da segurança o ativo nº 1 da civilização como a conhecemos (ou como se tornou dominante), e ensejou a formação de Estados capazes de demarcar o que é violência legítima e o que não é.
Passados séculos desde a formação dos Estados, habitamos um mundo dividido entre as regras do Direito Internacional (um dever ser) e a política das grandes potências, que usam a força para transgredir regras. Entre o dever ser e o que a realidade de fato é há um espaço onde operam a diplomacia, a opinião pública e as dimensões econômica, social, jurídica etc. Mas, no limite, o poder decide (ou, pelo menos, tem sido assim).
Segundo a teoria Realista, o sistema internacional pode ser analisado a partir do conceito de estado de natureza hobbesiano, que reitera o paradigma que confere a pretensão do monopólio legítimo da violência aos Estados. Nesse contexto, a guerra continua sendo “um ato de força para obrigar o inimigo a fazer a nossa vontade” (Clausewitz, 2010), e não existe independente da política, mas como outra gramática dela. Por isso, o emprego político da violência tem sido um elemento permanente na política internacional, e nada sugere que o deixará de ser no horizonte tangível.
“A Europa é indefensável”, disse Césaire (2020). O sentido histórico da frase é profundo. O mundo contemporâneo é produto de uma hierarquia de nações que, de modo esquemático, pensamos em dimensões correlatas: centro e periferia. A formação desse esquema geopolítico remonta à projeção de algumas nações europeias, que primeiro consolidaram o Estado Moderno, em busca da exploração de outros continentes e povos. Em fins do século XIX, esse processo havia culminado na dominação de 86% da superfície terrestre pelos europeus (Kennedy, 1989).
E no que consiste o colonialismo? Trata-se, inicialmente, de uma relação. Fanon (1968, p. 26) escreveu: “O colono e o colonizado são velhos conhecidos. (…) É o colono que fez e continua a fazer o colonizado.” Atavicamente ligado ao colonizado, o colonizador não está invulnerável à violência que pratica. Pelo contrário: a barbárie passa a constituí-lo, com impactos dentro da fortaleza colonial.
Ato contínuo, pensemos na original interpretação de Césaire sobre o nazismo. Segundo ele, o nazismo foi o impacto do colonialismo entre os europeus (daí, não parecer casual que campos de concentração tenham aparecido antes em território africano). Então, a diferença entre a violência colonial nas Américas, África, Ásia e Oceania para aquela vivenciada por judeus e outras minorias europeias por mãos nazistas, durante a II GM, é apenas o locus: enquanto o holocausto ocorreu no centro, o colonialismo se deu na periferia. Enquanto o rei belga Leopoldo II, responsável por 10 milhões de mortes no Congo, teria disciplinado “selvagens”, Hitler cometeu o desatino de levar a barbárie ao solo “civilizado”. Depois de Auschwitz, Hitler ilustra as piores páginas escritas pela humanidade, mas Leopoldo segue imponente em estátuas pela Bélgica.
Disso concluímos que há os que devem viver e os que devem morrer (Mbembe, 2018). Essa diferenciação é uma das estruturas vertebrais das relações internacionais e está na raiz do desprezo pelo drama palestino, que também nasce no que Said (2012) classificou como “Orientalismo”: determinar o Oriente (outro) como uma caricatura que consubstancie cultural e moralmente sua subordinação política. Essa caricatura desconstrói sua humanidade e faz dele uma ameaça ao… colonizador! Ou seja: a colonização se dá não apenas pela força, mas pela aniquilação cultural do outro, negando-lhe qualquer existência fora da condição colonial, fazendo dele um sujeito ontologicamente colonizado. E quando ele renega a condição imposta, suscita a reação do colonizador amparada pela legitimidade de quem está devolvendo as coisas ao seu “devido lugar”. É essa a relação política que informa o direito em situações de apartheid e condena uma violência promovendo outra, anterior e maior, emulando da condição sine qua non do Estado, o monopólio da violência, o pretenso direito à aplicação da força contra aquele (o colonizado) que infringe a lei (o apartheid). O apartheid, pois, consiste numa ordem indisfarçadamente violenta.
Na coluna de hoje trago um pouco sobre o bate-papo com o Fernando Maskobi, consultor financeiro estrategista que aborda a concentração de riqueza no Brasil e como isso está interligado ao racismo. A concentração de riqueza e o racismo são dois problemas interligados que persistem no Brasil, alimentando desigualdades profundas e persistentes na sociedade. Essas questões têm raízes históricas que remontam ao período colonial e à escravidão.
Conforme cita Fernando: “Num país onde a metade mais pobre possui menos de 1% da riqueza, fica difícil esperar um Brasil melhor sem encararmos o tema de concentração de riquezas de frente e com maturidade. De onde nasce a desigualdade social e qual a sua relação com o racismo? Qual o custo de viver numa sociedade com tamanha diferença social?
Vamos voltar um pouco na história. Do ponto de vista social, o Brasil foi um dos, senão o último, país a sair do período escravocrata, em 1888. Naquela época, a abolição foi votada pela elite, evitando a reforma agrária. Portanto, numa população na qual negros e pardos representam mais do que 50%, tivemos um total de 0% dessa etnia com direito a compra de terras.
Sob o prisma econômico, vivemos num sistema monetário baseado no crédito, no qual temos juros em cima de juros. Sem delonga no sistema classista, comitês de diversidade nas empresas e movimentos como o black lives matter (vidas negras importam) são fundamentais. Entretanto, é como ‘colocar de colher enquanto o sistema econômico tira de pá’, como dizia uma antiga chefe minha.
Precisamos ir mais fundo. A conta não fecha e, por isso, mesmo com tanta visibilidade para o tema nos últimos anos, a concentração de riquezas continua ampliando. Se não falarmos do tema com maturidade, continuaremos romantizando o garoto(a) da comunidade que pegava trem sem tênis e conseguiu uma bolsa em Harvard mesmo assim.”
A disparidade racial é igualmente evidente em relação à educação e ao emprego. A taxa de analfabetismo entre negros é consideravelmente mais alta do que entre brancos, e a representatividade de negros em posições de liderança e cargos de alta remuneração ainda é limitada.
Segundo pesquisa do Instituto de Referência Negra Peregum e do Projeto Seta, 81% das pessoas afirmam que o Brasil é um país racista. A coleta de dados foi realizada em 127 municípios em 2023, com participantes acima de 16 anos, num total de 2 mil pessoas. A pesquisa buscou identificar como as pessoas compreendem o racismo.
“Mas vamos entender ainda melhor essa engrenagem socioeconômica. Foram tirados os direitos dos negros de comprarem terras e de terem acesso à educação, logo foram financeiramente e socialmente prejudicados. Sem esse acesso, não participam na formulação e aprovação de leis que ditam as ‘regras do jogo’. Com poder aquisitivo reduzido, são as pessoas que se veem obrigadas a parcelar seus bens em inúmeras vezes pedindo mais crédito aos bancos (aqui incide juros em cima de juros).
Comparado ainda aos Estados Unidos, a criticidade no Brasil e muito maior. Falar de diversidade é considerar que os negros são uma minoria. Porém, no Brasil, estamos falando da maioria. É muito mais que diversidade, é direito de existir.
A cegueira social nos deixa cada vez mais separados e apáticos, nos levando a naturalizar situações que não deveriam ser comuns. Estamos tão identificados com a desigualdade social que sequer conseguimos imaginar a sensação de liberdade que teríamos se vivêssemos numa sociedade equilibrada. Ou será que é tão prazeroso assim viver cercado de seguranças confinados em nossas bolhas?
O atual sistema claramente não funciona para o pobre, que ainda luta todos os dias para sobreviver, mas não funciona para o rico também, que precisa se isolar em suas bolhas. Nosso passado precisa ser encarado e, acima de tudo, reparado. Pode parecer desafiador, mas precisamos refletir e reparar!
Talvez, no mais íntimo, estejamos enfrentando o medo de renunciar a conveniências e privilégios. Afinal, num sistema no qual a competição é incentivada, talvez seja confortável viver em circunstâncias em que a competitividade é baixa e a massa, desqualificada.”
Temos um grande caminho pela frente no caminho da igualdade. Precisamos dar oportunidade, voz e amparo para aqueles que foram discriminados durante toda sua existência. Precisamos lutar por um país equânime.
Se é preciso na paz preparar a guerra, como diz a sabedoria das nações, indispensável também se torna na guerra preparar a paz
Romain Rolland
Até agora, as sínteses de especialistas sobre o conflito entre Israel e o Hamas acentuam expressões fortes e pessimistas como "abismo de ódio" e "nenhuma porta de saída". Unânime é o reconhecimento enfático da barbárie perpetrada pelo Hamas contra a massa desarmada de mil e quatrocentos israelenses, embora a mesma ênfase arrefeça quanto à morte por bombardeios de mil e novecentas crianças, dentre um total de seis mil palestinos.
Barbárie tem fonte, mas não tem identidade. Nem se avalia por números. O extermínio massivo no Oriente Médio é tão bárbaro quanto o terror semanal na zona oeste ou na Baixada Fluminense, as endêmicas mortes de crianças por balas aleatórias, as execuções de turistas na paisagem carioca. O que assombra a consciência global é o estado de desvario em que a dizimação do outro parece destino irrecorrível. É a condição convulsa da guerra perpétua.
Essa condição foi pressentida por Sigmund Freud numa carta a Chaim Koffler, membro da Fundação para a Reinstalação dos Judeus na Palestina, quando diz não acreditar "que a Palestina possa jamais se tornar um Estado judeu (...) Parece-me mais avisado fundar uma pátria judia sobre um solo historicamente não carregado" (26/2/1930). Ele deplora "que o fanatismo pouco realista dos nossos compatriotas (Volksgenossen) tenha sua parte de responsabilidade no despertar a desconfiança dos árabes".
Judeu, o criador da psicanálise não viveu para ver o Estado de Israel nem as guerras que asseguraram, com apoio norte-americano, o domínio colonial da região. Mas já manifestava regozijo com a prosperidade de "nossos Siedlungen (colonos)". Aqui há um deslize na tradução de "Siedlung", que significa assentamento urbanizado, e não agência de colonização. Os povoamentos a que Freud se refere não tinham nada a ver com as práticas do já findo império colonial alemão.
Mas modernizar implica urbanizar. A modernização do Estado israelense sempre dependeu da urbanização de territórios arrebatados aos palestinos. É a lógica colonial na nova ordem pós-racial (pós-Segunda Guerra) da tomada de terras: constrói-se um Estado de colonizadores brancos à revelia da população nativa.
Método hard, limpeza de terreno pela violência: "Em nossa terra só há lugar para nós. Vamos dizer aos árabes: saiam" (Isaac Rolf, rabino alemão, antes da Segunda Guerra). Método soft, narrativas de exclusividade dos lugares santos lastreadas por uma estatização teocrática. Freud pensava e sentia: pressentia. Daí sua acidez contra "uma piedade mal interpretada, que faz de um pedaço do muro de Herodes uma relíquia nacional". Quanto à barbárie, diz a perversa Lei de Murphy que "se algo pode dar errado, dará". Só que tem piorado.
O combate às alterações climáticas é demasiado importante e decisivo para que, em seu nome, se desperdicem armas e argumentos que pouco ou nada contribuem para a transição energética e para a redução das emissões de gases com efeito de estufa. Este é um combate tão fulcral que, para ser vencido, precisa da colaboração de todos, por implicar mudanças nos hábitos de vida e de consumo, além de uma profunda transformação dos modelos de desenvolvimento económico em que alicerçámos as nossas vidas, nas últimas décadas. Tendo em conta o impacto dos recentes fenómenos climáticos extremos que têm irrompido pelo planeta, este é também um combate cada vez mais urgente e necessário. Precisamos rapidamente de recuperar o tempo perdido, para não entrarmos num caminho irreversível, em que já não será possível evitar a multiplicação de incêndios, de secas e de inundações por causa do aumento da temperatura global. Precisamos de nos proteger e de estancar, na medida em que ainda for viável, a proliferação de ondas de calor em cada vez mais regiões do globo. E temos a obrigação de impedir a redução drástica da biodiversidade, num planeta em que, nesse cenário, as condições de vida serão críticas para a espécie humana.
Estamos naquilo a que o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, chamou a “autoestrada para o inferno” – num dos seus muitos alertas que todos aplaudem, mas ninguém verdadeiramente escuta. Contudo, precisamente por isso, não podemos virar na saída errada, nem deixarmo-nos enganar no caminho.
Ao contrário do que tem sido tantas vezes o discurso oficial, a transição energética não vai ser um passeio no parque, rumo a um arco-íris luminoso, onde se esconde um pote de ouro, que nos deixará a todos alegres e felizes. Se é verdade que há muitas oportunidades de negócio e de criação de riqueza nesta transição, também não podemos ignorar que nenhuma transformação deste género será feita sem que existam vítimas e custos que não podem ser negligenciados.
De um modo ou de outro, vai ser preciso, ao longo de todo o processo, penalizar as atividades que prejudicam o ambiente e, em simultâneo, apoiar e beneficiar aquelas que contribuem para formas de energia mais limpa, que promovem um consumo responsável e, por isso, ajudam a criar uma economia sustentável.
Neste contexto, faz todo o sentido a ampliação da chamada fiscalidade verde – a criação de impostos que penalizem quem mais emite carbono para a atmosfera. Mas é necessário que a receita desse tipo de taxas ou de impostos seja, depois, utilizada na criação de alternativas amigas do ambiente, na promoção de atividades e de comportamentos que reduzam efetivamente as emissões nocivas. E ainda é mais necessário que, em simultâneo com o anúncio desse custo adicional que passa a recair sobre os contribuintes, sejam explicadas, ao pormenor e com frontalidade, as razões dessa medida e de como ela, no futuro, pode mudar coletivamente as nossas vidas.
Ora, foi precisamente o contrário disto tudo que o Governo fez em relação à sua proposta de penalização do Imposto Único de Circulação (IUC), nos mais de três milhões de veículos, anteriores a 2007, que circulam em Portugal. Com os resultados que estão à vista: em vez de ser vista como uma medida ambiental, foi lida por todos como uma receita suplementar para o Orçamento do Estado. Em especial quando, ao contrário do que seria desejável numa lógica de redução de emissões, a medida foi apresentada como uma forma de compensação pela diminuição dos preços em seis autoestradas.
Mais grave é o que a medida representa em termos de injustiça social, ao penalizar aqueles que, por falta de recursos, têm menos condições para poder trocar de carro. Isto, ainda por cima, num País que privilegiou o automóvel como sinal de desenvolvimento, com uma aposta total em autoestradas em detrimento do caminho de ferro. Mas também um País onde o automóvel tem estado no centro de grandes movimentos de contestação aos governos, como se viu no bloqueio da ponte em 1994, nos últimos anos do cavaquismo, ou em tantos protestos contra portagens ou más condições de estradas que, ciclicamente, unem populações e são a chama até para boicotes eleitorais.
Quando se confundem as medidas para evitar o fim do mundo climático com aquelas que dificultam às famílias chegar ao fim do mês sem sobressaltos financeiros, fica aberto o caminho para a revolta. Mas fica ainda mais frágil o combate necessário às alterações climáticas: quando se dão tiros nos pés, como este aumento mal direcionado do IUC, quem fica a perder é o ambiente.