terça-feira, 20 de novembro de 2018

Imagem do Dia


Pague e chore

Perdemos a capacidade de indignar-nos. De contrário o mundo não estaria como está 
José Saramago
A jovem paga ingresso para chorar diante da obra do artista internacional. E diante da câmera de tevê ainda mostra sua emoção, sincera.

Mas quem chorará por ela que derrama lágrimas e muita emoção em frente à arte e nenhum chisco turva seus olhos quando passa ao lado das realidades urbanas das crianças esmolando, dos velhos mendigos tentando se proteger do frio em mantas esfarrapadas? De joelhos, chorará diante do cadáver fuzilado pela bala perdida?

A realidade não mais emociona em choro e revolta em gritos. Está-se pagando para ter a emoção provocada pela arte, ou pela mídia. A realidade passa a ser apenas um modelo invisível do cotidiano de quem tem olhos para coisas mais importantes que a indignação.
Luiz Gadelha

Reino de palhaços


Falar, falar por falar,
só saliva e nada mais, já se conhece essa estória,
vem de velhos carnavais, nos carnavais tem um rei,
palhaços tem muito mais

Ciro Colares, "Quase um cordel das enchentes"

O bom e o ruim

Maniqueu, filósofo cristão do século 3, também conhecido como Manes ou Mani, dividia o mundo simplesmente entre Bom, ou Deus, e Mau, ou o Diabo. Ganhou influência no mundo greco-romano a partir das antigas Babilônia e Pérsia, sincretizando ideias do hinduísmo, do budismo, do judaísmo e do cristianismo, depois de viajar pela Índia, China e Tibete. Foi perseguido pelos sacerdotes do zoroastrismo, os Magos, durante o reinado de Vararanes 1º (274–277). Preso e condenado como herege, foi esfolado vivo: sua carne foi atirada ao fogo e a pele, crucificada em praça pública, na cidade de Bendosabora, no atual Iraque.

Para Maniqueu, a luz e as trevas originaram o mundo material, essencialmente mau. Por isso, os “pais da Justiça” vieram à Terra redimir os homens, mas a mensagem deles foi corrompida. Maniqueu pretendeu completar a missão deles, como o salvador prometido por Cristo, que detinha os segredos para a purificação da luz, destinados apenas àqueles que tinham uma vida ascética. No dualismo maniqueísta, a matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com o tempo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois princípios opostos do bem e do mal.

Seu mais famoso discípulo foi Agostinho de Hipona, Santo Agostinho, que fundou as bases da filosofia adotada pela Igreja Católica, depois de romper com o maniqueísmo. Até então, os filósofos cristãos defendiam que o fundamento e a essência da vida deveriam ser a fé. A partir dela, os homens tomariam decisões importantes em suas vidas e realizariam os julgamentos morais. A razão regia decisões menores e rotineiras da vida cotidiana. Profundo conhecedor de diversas religiões, porém, Agostinho buscou na Razão a justificativa para a fé. Foi além da própria fé para levar os descrentes a considerá-la. Por exemplo, defendeu o livre-arbítrio como uma graça divina. De fato, liberdade não combina com maniqueísmo.


Desde a campanha eleitoral, o Brasil vive sob o signo do maniqueísmo; talvez tenha sido determinante do resultado das eleições, tanto para bolsonaristas como para petistas. Esse maniqueísmo vem desde o “nós contra eles” da reeleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2006, e contamina toda o debate político. Entretanto, os grandes problemas nacionais, ao contrário do que muitos imaginam, não decorrem das ideologias, mas da realidade objetiva do país.

Exemplo de maniqueísmo é a discussão sobre o programa Mais Médicos, que está contaminada pela disputa eleitoral. O problema atinge 2.885 prefeituras, das quais em 1.575 municípios com menos de 20 mil habitantes. São 8.500 equipes de Saúde da Família que ficarão desfalcadas em 40 dias, em razão da decisão do governo cubano de repatriar esses profissionais, antes da posse do presidente eleito Jair Bolsonaro.

Bolsonaro sempre foi um crítico do programa. Diz que os médicos trabalham em regime de escravidão e que a maior parte do que deveriam receber vai para o governo cubano. Também questiona a qualificação dos médicos. A sua posição tem a ver com a narrativa da campanha eleitoral, ou seja, é uma promessa de campanha endossada pela maioria dos eleitores. A decisão cubana, obviamente, tem a ver com a nova política externa a ser implementada por Bolsonaro, cuja teologia é maniqueísta, se levarmos em conta os novos paradigmas do futuro ministro de Relações Exteriores, Ernesto Fraga Araújo. Essa é a parte ruim do caso Mais Médicos.

A parte boa, digamos assim, é que Bolsonaro mudou sua agenda dos 100 primeiros dias de governo, que naturalmente seria focada nas questões da segurança pública e da corrupção, além da Previdência e do corte de gastos. Com o fim da parceria com Cuba, a agenda da saúde pública caiu antecipadamente no colo de novo presidente da República, que precisa de um novo programa para enfrentar o problema. Uma das alternativas seria militarizar a contratação de médicos para atuar em locais remotos, pequenos municípios e periferia das grandes cidades, oferecendo serviço temporário nas Forças Armadas para médicos residentes e recém-formados , como acontece com os atletas olímpicos.

O equívoco ao abrir várias e simultâneas frentes de conflito

A democracia naturalizou os conflitos como interesses em disputas que se resolvem pelo voto, aceitando-se o resultado. Mesmo assim, sabe-se que a torrente de conflitos precisa estar sob certo controle. O mais prudente é enfrentar um conflito de cada vez. Quem briga com muitos ao mesmo tempo distribui pancadas, é verdade, mas o mais comum é que saia coberto de porrada. Abrir várias e simultâneas frentes de conflito não é, politicamente, muito inteligente.

A boa política aconselha avaliar o campo, perceber as circunstâncias, considerar os perigos e medir as consequências de cada passo, de cada revés. A contenção nem sempre é resultado de imperativos éticos, espírito democrático ou tolerância. Normalmente, é cálculo pragmático: saber a força do inimigo e, mais, os limites da própria força é uma arte. Só vira a mesa quem tem força para isso.

Este parece o grande problema — talvez, o grande equívoco — de Jair Bolsonaro nesses primeiros dias pós eleição, mesmo antes de tomar posse do cargo de presidente da República. O ex-capitão é uma máquina de conflitos, uma metralhadora giratória disparada com precipitação e sem muito critério. O mais provável é que o açodamento e a imprudência consumam-lhe toda a munição antes de abater qualquer inimigo.

É possível citar de memória os inúmeros conflitos que contratou em tão pouco tempo: 1) a mais influente parcela da imprensa nacional e estrangeira; 2) a partir do atrelamento acrítico e automático aos Estados Unidos, a contrariedade da China, do mundo árabe, da Europa e do Mercosul; 3) ambientalistas de todo planeta; 4) empresários da indústria; 5) sindicatos de trabalhadores; 6) comunidade científica, intelectuais e artistas; 7) a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil); 8) os movimentos Feminista, Negro, LGBTIQ, Sem-terra; 9) o Poder Legislativo — ou, pelo menos, o status quo desse Poder —, 10) a corrupção; 11) o crime organizado; 12) o Poder Judiciário, sobretudo o STF; 13) setores do Ministério Público; 14) segmentos das Forças Armadas, preocupados com a politização das Armas; 15) estados e municípios que enfrentarão graves problemas fiscais; 16) o funcionalismo em geral; 17) corporações favorecidas por privilégios previstos em lei; e 18) mais recentemente, o desgaste com o fim do Programa Mais Médicos, que afetará centenas de municípios.

Apenas para começar — ou antes mesmo de começar —, inacreditáveis dezoito frentes simultâneas. Algumas inevitáveis, o bom combate; a maioria, dispensável, resultado de ideologia, arrogância ou inexperiência. Propositadamente, o “petismo” sequer foi mencionado. Ainda que o bolsonarismo possa sempre expô-lo como um espantalho no campo de milho, o petismo talvez venha a ser o menor dos problemas de Jair Bolsonaro, no futuro. Um judas num antigo sábado de aleluia. Já passou.

Essa extraordinária e imprudente relação de desafetos é contrabalançada com os apoios mais ou menos instáveis e pouco fiéis ao longo do tempo, sobretudo, à medida em que o desgaste do governo se estabelecer. São exemplos: 1) as bancadas ruralista, evangélica e da bala; 2) operadores do mercado financeiro; 3) o antipetismo que já perdeu seu objeto com a derrota do PT; 4) setores mais duros e intermediários das Forças Armadas e das Polícias Militares; 5) governadores que na eleição, por puro oportunismo, recorreram ao bolsonarismo. Parece pouco, diante dos conflitos. E mais que “pouco”, instáveis e pouco confiáveis.

Fidelidade política e apoios efetivos não costumam a se conjugar por muito tempo. É uma relação que vive mais de sentimentos concretos baseados na popularidade do governante, no bom momento econômico e nas sinecuras do poder do que em princípios abstratos vinculados à ideologia. Ilusão acreditar que 57 milhões de votos bastam. Não bastam.

O presidente e o seu grupo vivem o momento de euforia e deslumbramento com a vitória eleitoral e com todo aparato do Poder. Talvez, em virtude disto não estejam sensíveis aos desgastes que semeiam e aos alertas que já lhes são feitos.

A conquista insólita nas urnas, o fenômeno político e eleitoral que se deu, sim, em torno de Jair Bolsonaro e seu meteórico sucesso são maus conselheiros, pois despertam um tão perigoso quanto efêmero sentimento de invulnerabilidade. Aí mora seu maior perigo. O Poder pensa que pode tudo até que não possa quase nada. É bom superar essa fase rápido.
Carlos Melo 

Brasil que vale ouro


A realidade é dura

Trapalhadas, bate-cabeças, idas e vindas. A 40 dias de sua posse, o presidente eleito Jair Bolsonaro parece não saber o que quer. Nem mesmo consegue formatar o desenho primário do governo. Transita entre dias de extinção e fusão de ministérios, misturando alhos e bugalhos para chegar aos 15 prometidos na campanha, outros de recuo e até de criação de novas pastas, como o recém-anunciado Ministério da Cidadania. E antes mesmo de tomar assento no Planalto já contabiliza sua primeira baixa: a do general da reserva Oswaldo Ferreira.


Responsável pelo Departamento de Engenharia do Exército durante anos e até então afinadíssimo com Bolsonaro, Ferreira não explicou publicamente os motivos de sua desistência. Algo no mínimo curioso para um dos mentores da aglutinação dos transportes, portos, aviação civil, mobilidade urbana, recursos hídricos e saneamento no mega-Ministério de Infraestrutura, imaginado entre o primeiro e segundo turnos da eleição.

Nele estarão concentrados quase todos os recursos de investimento que o país faz – ou deveria fazer. E toda sorte de problemas. Mais de 7 mil obras inacabadas, boa parte delas vítimas da corrupção. Absurdos como as Ferrovias Norte-Sul, em construção há 31 anos, e Transnordestina, iniciada em 2006 e completamente abandonada, além de heranças pesadas dos PACs do ex Lula e da presidente cassada Dilma Rousseff.

Se Bolsonaro começou a transição em grande estilo, com o anúncio do juiz Sérgio Moro para a Justiça e de gente de peso, como Joaquim Levy para o BNDES, foi o primeiro a colocar seu próprio governo na berlinda ao emitir sinais contraditórios.

Ora quer juntar Agricultura e Meio Ambiente. Depois não quer mais, quer de novo para logo não querer. Pouco antes já havia migrado o ensino superior para a área de ciência e tecnologia. Voltou atrás. O mesmo ocorreu com o Trabalho, extinto, ressuscitado e, na última versão, anexado aos ainda inexistentes ministérios da Produção ou da Cidadania. Minas e Energia, que chegou a ficar embaixo da Infraestrutura, continuará independente. Cultura e Esportes devem ir para a Educação. Pelo menos até novas mudanças.

Os recuos, dirão alguns, podem apontar para alguém capaz de alterar rumos quando é convencido da necessidade de fazê-lo, o que seria mérito. Tomara. Mas a frequência das correções parecem mais efeito da dureza da realidade, muito diferente do blablablá de campanha, na qual à fala não se obriga lastro.

Bolsonaro parece não perceber que cada palavra sua tem consequência. Para o bem e para o mal. Não servem mais apenas como alimento para fiéis reproduzirem nas redes sociais, como ocorria antes de ser eleito. Mexem com mercados interno e externo, com a credibilidade do país.

Defender a imediata reforma da Previdência, até com auxílio do presidente Michel Temer, e, em seguida, dizer que poderá protelar a sua efetivação, deixa aposentados e gente da ativa com o coração na mão. Ou duvidar, publicamente, da eficácia da proposta de capitalização previdenciária de seu Posto Ipiranga, Paulo Guedes, futuro superministro da Economia, de nada ajuda e muito atrapalha em uma questão crucial para o país.

O mesmo vale para as arestas que já criou com árabes, ao anunciar a intenção de mudar a embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém, com argentinos e outros integrantes do Mercosul, com a China, país que mais importa produtos brasileiros. Posições que seu indicado para a Chancelaria, embaixador Ernesto Araújo, parece concordar quando discorre sobre a necessidade de o Brasil se aliar ao projeto de Donald Trump, pela “recuperação da alma do Ocidente”.

Entre outras sandices, Araújo questiona a teoria do aquecimento do planeta e se opõe à globalização, “pilotada pelo marxismo cultural”. Mas também aqui o mundo real é outro: uma coisa é escrever em um blog, outra é conduzir a política externa do país.

Resta a torcida para que Bolsonaro e seu time assimilem velozmente o choque de realidade. Do contrário, teremos um governo de curto-circuitos.
Mary Zaidan

O cálice de 2019

Difícil exagerar as dificuldades que teremos à frente. Alternativas políticas ou econômicas propriamente ditas, que, mesmo operacionalmente imprecisas, ambicionam mudar a face do capitalismo brasileiro, têm convivido no espaço público com delicados temas éticos, agitados muitas vezes de forma superficial, quando não leviana, à maneira de memes de internet ou bravatas politicamente incorretas.
 
Tais aspectos eticamente relevantes também deixam marca em políticas públicas que darão um sentido regressivo ou inovador às nossas relações sociais cotidianas, ao modo como nos comportamos uns com os outros. Os democratas devem não só avaliar os resultados práticos da reforma que se pretende, como também impedir que se enxovalhe a ideia da História como criação acidentada, mas permanente, de valores já irrenunciáveis, como, entre outros, o da tolerância
Luiz Sérgio Henriques

O fim do comum

Na noite de 6 de janeiro de 2015, Phippe Lançon foi ao teatro com uma amiga, em Ivry, ver Noite de Reis, uma peça de Shakespeare sobre a qual teria de escrever no dia seguinte um artigo para o Libération. Mas, na manhã do dia 7, haveria também a reunião de pauta do Charlie Hebdo, para o qual ele também escrevia, na qual seria planejado número seguinte do semanário. Lançon decidiu-se por essa última. Enquanto os colegas discutiam a pauta, ele observava o desenhista Bernard Harris, seu bom amigo, que como sempre passou toda a discussão fazendo caricaturas dos presentes.

Terminada a reunião, quando todos começavam a se despedir, teve início a fuzilaria. Philippe foi o primeiro a receber um balaço, no rosto, que despedaçou sua mandíbula e o derrubou numa grande poça de sangue. Não perdeu os sentidos, mas não podia se mexer. Enquanto sangrava, viu os dois terroristas, os irmãos Kouachi, executarem todos os que estavam na sala, repetindo um mantra, Allahu Akbar!, Allahu Akbar! Philipe não podia acreditar no que via: a cabeça de Bernard Maris aberta a tiros, os miolos saindo. Num dado momento, viu ao lado de seu rosto os sapatos e a metralhadora de um dos assassinos. Por que não o mataram? Sem dúvida por achar que ele já estava morto.

Ele foi finalmente resgatado e uma ambulância o levou para o hospital, onde passou 282 dias e foi submetido a 30 operações que lhe reconstruíram prodigiosamente o rosto. Quando o conheci, em Princeton, há uns três anos, ainda parecia um monstro. Quando vi suas fotos, achei incrível que seu rosto estivesse absolutamente normal, sem uma única cicatriz que recordasse o horror da experiência que ele, no livro que acaba de publicar na França, Le Lambeau (o pedaço, o retalho) chama, com sombria elegância, de “o fim do comum”.

O mais impressionante nesse testemunho assustador, em que vemos um homem morrer e ir ressuscitando pouco a pouco graças à sua valentia e força moral, e sem dúvida à formidável ajuda que lhe deram os enfermeiros, médicos, auxiliares, e sobretudo à destreza e competência dra. Chloé, a cirurgiã autora daquela prodigiosa reconstrução facial – é a sobriedade e o equilíbrio com que está escrito. Não há ódio nem rancor, e aquela máquina de matar que aniquilou todos seus companheiros quase desaparece. O amor pela vida anima suas páginas, com a ajuda vivificante que lhe dão nessa longuíssima ressurreição certas obras literárias – Kafka, Proust, A Montanha Mágica – que relê buscando com elas reviver os momentos tão intensos que sentiu quando as leu pela primeira vez.
Creio que Philippe Lançon não fala de terrorismo em nenhuma dessas belas páginas. No entanto, Le Lambeau é um dos livros que melhor permitem entender os extremos da abominação e da selvageria a que pode chegar um ser humano escravizado pelo fanatismo religioso, convencido de que sua fé o autoriza a devastar o mundo e, se preciso, acabar com ele, purgando-o de infiéis. A essa barbárie crua e dura , Lançon opõe a razão, a humanidade, as belas artes, a poesia e as ideias, que considera os denominadores comuns entre os seres humanos, mais profundos e duradouros que as diferenças de línguas, crenças, raças e costumes, tudo aquilo que nos cerca e nos irmana e terminará prevalecendo sobre a irracionalidade e a loucura abissal de quem acredita que lançando bombas e assassinando inocentes vá obter justiça.

Aos hospitais onde Philippe Lançon luta para renascer, chegam parentes, amigos, sua ex-mulher, suas namoradas (sim, no plural) e também esse rumor poderoso que é o gigantesco movimento de solidariedade gerado na França e no mundo inteiro pela matança de Charlie Hebdo. Ainda que pareça mentira, até o humor abre caminho nessas páginas, e o leitor se vê sorrindo, divertido com os enredos sentimentais e pessoais em que se depara o personagem (chamado pelo pseudônimo de Monsieur Tarbes em um dos hospitais que frequentou), entre anestesias, injeções, vômitos, sondas, termômetros e passes de mágica de que tem de se valer para que haja harmonia onde poderiam eclodir o mau humor e o escândalo.

Nada como estar perto da morte para saber como é maravilhosa a vida. Descobrimos isso ao mesmo tempo que Philippe, quando consegue comer um pouco de iogurte e deixar de se alimentar por sonda, quando volta a mastigar e – por fim! – a falar, sem mais necessidade da lousinha que durante tantos meses ele usou para se comunicar-se com o próximo. E quão generosos e decentes podem ser os homens e as mulheres – como ele descobriu por meio das enfermeiras, atendentes, faxineiras e médicos que dia e noite se empenharam em devolver-lhe a saúde e fazê-lo sentir-se querido e protegido por uma muralha de amizade e de amor nesses longuíssimos meses nos quais voltou a ser um ser humano, deixando para trás o semicádaver que era quando chegou.

Há tempos um livro não me entristecia, emocionava e alegrava como Le Lambeau. Quando se acaba de lê-lo, compreende-se que o terrorismo – não só o islamista, mas todos os terrorismos políticos, sem exceção – não ganharão nunca a guerra que desfecharam, apesar dos danos (inúmeros) que podem causar. Não ganharão porque são primitivos e bárbaros. Perpetuam uma tradição que o desenvolvimento humano – a civilização – está fazendo retroceder e voltar às cavernas e é a própria negação das boas coisas que o progresso nos trouxe – a liberdade, a democracia, a coexistência na diversidade, a justiça, os direitos humanos, a igualdade perante a lei. Sem necessidade de se referir especificamente a esses temas, com o personagem lutando para retornar à vida, recordando-se de quão maravilhoso é um bom livro, uma bela sinfonia, o rejuvenescimento que trazem a amizade ou o amor, Le Lambeau nos faz conscientes da estupidez e cegueira que são o fanatismo e o uso do terror, e de quanto avançamos desde os tempos atrozes em que o ser humano ainda era uma fera entre as feras.

Esse progresso é uma realidade para um grande número de países – para muitos outros, por desgraça, ainda não –, e uma prova disso é que Philippe Lançon esteja vivo de novo, tenha sido capaz de escrever esse livro profundo, que Chloé e seus colegas tenham conseguido devolver a seu rosto a humanidade e a harmonia, que ele tenha se casado e, segundo me dizem, esteja comemorando o nascimento de seu primeiro filho. Isso me levanta o ânimo porque vejo em tudo algo de belo e exultante, a derrota da estupidez e da cegueira mental e moral do fanatismo, a vitória da vida.

Um dos episódios mais comoventes – há centenas mais – do livro é quando, em pleno atentado, Philippe tem uma esquisita sensação na boca e descobre que são seus dentes se soltando. Ao amigo comum, que me mostrou outro dia suas fotos de renascido, perguntei se ele viu como ficaram os dentes de Philippe. “Estão intactos, e além disso, branquíssimos”, respondeu. Senti que meu coração transbordava de felicidade.

Gente fora do mapa


Capital do furto de bicicletas

Não fazia nem um ano que eu tinha comprado minha primeira bicicleta nova em Berlim. Na época andava com a grana curta, mas mesmo assim economizei os cerca de 500 euros necessários para o modelo que pude comprar. Não era das mais baratas, mas também estava de longe de ser uma "máquina" entre as magrelas. Minha bicicleta era simples, mas cumpria muito bem suas funções, de transporte pela cidade e também para passeios de longa distância.

Eu estava satisfeita com seu desempenho. Investi também aproximadamente 50 euros num cadeado, pois já tinha ouvido falar sobre os perigos da cidade para ciclistas. Mas esse cuidado de nada adiantou. Estava em Bonn quando recebi a notícia de que minha bicicleta havia sido furtada dentro do jardim interno do prédio onde morava. Ela foi levada na calada da noite. Nem o cadeado sobrou.

Primeiro veio o sentimento de raiva e revolta, mas depois, com calma, acionei o seguro – sim, em Berlim faz muito sentido assegurar bicicletas. Depois de fazer o boletim de ocorrência pela internet, foi só enviar uma cópia da nota para a seguradora. Poucos dias depois o seguro foi pago e uma nova magrela, adquirida. Depois do furto, passei a deixar minha bicicleta na rua, presa em algum poste em frente ao prédio. Assim é mais fácil alguém perceber se estão tentando furtá-la.


Meu caso não é exceção em Berlim. Estima-se que a cada 17 minutos uma bicicleta seja furtada na capital alemã. São cerca de 30 mil por ano (esses foram apenas os casos registrados na polícia). Em 2017, o valor das magrelas furtadas chegou a 18,6 milhões de euros, ou seja, mais de 79 milhões de reais.

O crime é muito popular porque há mercado. Na cidade, há várias feiras das pulgas onde bicicletas em boas condições são vendidas por apenas 50 euros sem nenhuma documentação. Quem compra bicicletas baratas de origem suspeita também tem culpa no cartório por financiar esse negócio criminoso. As leis alemães punem também o receptor de objetos roubados. Caso a pessoa com uma bicicleta furtada seja parada pela polícia, ela terá a bicicleta aprendida e será indiciada. Para o vendedor, a pena pode chegar a cinco anos de prisão.

A polícia de Berlim dá dicas para evitar o roubo. O uso de dois cadeados de tipos diferentes pode ajudar, pois geralmente os ladrões são especializados em arrombar apenas um tipo. Importante também é registrar a bicicleta na polícia. Para o registro é preciso apresentar a nota da compra, e um número é gravado no quadro. Além de assustar ladrões, pois o objeto furtado pode ser mais facilmente identificado, o registro auxilia a localizar o dono caso a bicicleta seja encontrada em algum lugar da Alemanha.

Meses depois do episódio, para minha surpresa, recebi uma carta da polícia informando que a investigação sobre o furto estava sendo encerrada sem resultados e poderia ser reaberta caso novas evidências surgissem. Acho que a carta era mais uma formalidade, afinal a polícia nem mesmo veio até o meu prédio para recolher possíveis pistas ou depoimentos.

As estatísticas mostram que apenas 3,9% dos furtos de bicicletas são elucidados na cidade. Em alguns destes casos foram os próprios donos que acionaram as autoridades após ver um anúncio da venda de sua bicicleta na internet ou localizá-la em algum mercado de pulgas.
Clarissa Neher

Quantos jalecos nacionais substituirão cubanos?

Ao se retirar do Programa Mais Médicos, Cuba forçou o Brasil a lidar com uma encrenca que fora enviada à UTI em 2013 e vinha sendo mantida desde então em coma induzido. De repente, o país foi forçado a lembrar que faltam médicos nos fundões miseráveis do mapa e nas beiradas empobrecidas das regiões metropolitanas. Ao ordenar aos seus doutores que façam as malas, a ditadura de Havana ofereceu aos similares nacionais a oportunidade de informar à opinião pública brasileira se fazem parte da solução ou se integram o problema.

“O Brasil conta com médicos formados no país em número suficiente para atender às demandas da população”, apressou-se em informar o Conselho Federal de Medicina em nota oficial divulgada na semana passada. Há cinco anos, quando os cubanos começaram a desembarcar no Brasil, a mesma entidade reagiu com o fígado: ''Não admitimos uma medicina de segunda para os mais carentes. Até porque quem está no governo, quando adoece, vai para hospitais de primeira linha.''

Faltou dizer que, numa cidade sem médico, não há medicina de segunda nem de primeira linha. Em localidades assim, o que há são doentes desassistidos, tratados como seres humanos de última linha. Ninguém se lembra. Mas nessa mesma época em que a corporação pegou em bisturis para defender sua reserva de mercado, o médico cubano Juan Delgado, recebido com vaias no aeroporto de Fortaleza, iluminou com poucas palavras a falta de nexo da revolta dos jalecos nacionais.

“Vamos ocupar lugares onde eles não vão”, disse Juan na ocasião. “Impressionou-me a manifestação. Diziam que somos escravos, que fôssemos embora do Brasil. Não sei por que diziam isso, não vamos tirar seus postos de trabalho. Isso não é certo. Seremos escravos da saúde, dos pacientes doentes, de quem estaremos ao lado todo o tempo necessário. Os médicos brasileiros deveriam fazer o mesmo que nós: ir aos lugares mais pobres prestar assistência.''

Nesta terça-feira, o Diário Oficial da União publica um edital oferecendo a médicos brasileiros cerca de 8,5 mil vagas ocupadas por cubanos. A novidade foi anunciada na véspera pelo ministro Gilberto Occhi (Saúde), num encontro com prefeitos. No mesmo evento, Michel Temer declarou que nenhum município ficará “desprovido” de assistência médica. Acredita quem quer. Duvida quem tem juízo.

No início do ano, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) divulgou estudo chamado “Demografia Médica 2018”. Pode ser lido aqui. Revelou a existência de uma quantidade recorde de médicos no Brasil: 452 mil profissionais. Em teoria, isso garantiria 2,18 médicos para cada mil habitantes. Algo muito próximo da taxa registrada em países desenvolvidos como o Canadá (2,7 médicos por mil habitantes) ou Reino Unido (2,8).

O problema é que 63,8% dos médicos brasileiros estão no Sudeste (41,9%), no Sul (14,3%) e no centro-oeste (7,6%). Mais da metade (55,1%) encontra-se nas capitais. O Ministério da Saúde informa que os médicos cubanos distribuíram-se em 2.885 cidades, das quais 1.575 não dispunham de um mísero doutor verde-amarelo. A grossa maioria dos profissionais enviados por Havana foi para áreas paupérrimas do Norte e do Nordeste. Outra parte ficou em áreas periféricas de centros urbanos. A saída dos cubanos deixará sem médico 28 milhões de potenciais pacientes.

A pergunta que se impõe é: quantos profissionais brasileiros toparão ocupar as vagas dos “escravos” cubanos? A julgar pela nota do Conselho Federal de Medicina, as 8,5 mil vagas oferecidas pelo Ministério da Saúde não serão preenchidas facilmente. A entidade condiciona o deslocamento dos médicos a uma inexistente “carreira de Estado”, ao provimento de improvável “suporte” logístico e “remuneração adequada”. Afora o salário de R$ 11,5 mil mensais, não há garantias quanto ao resto.

A reunião da irresponsabilidade fiscal

No mesmo dia em que anunciou um “momento de regeneração”, Jair Bolsonaro foi a uma esquisita reunião de governadores eleitos copatrocinada pelo paulista João Doria. Nada havia sido combinado com sua equipe. O que muitos governadores querem é suspender as exigências e os efeitos da Lei da Responsabilidade Fiscal. Uma legítima superpedalada, capaz de superar os çábios da “contabilidade criativa” que custou a presidência a Dilma Rousseff.

Como o presidente eleito ainda não desceu do palanque, fez brincadeira com a sua presença no conclave: “O que eles querem, eu também quero, dinheiro”. Antes fosse, o que eles querem é atropelar a lei que obriga os Estados a limitar em 60% o comprometimento das receitas com o pagamento de despesas de pessoal


O Rio está com um comprometimento de 81%. Minas Gerais, 79% e o Rio Grande do Sul, 78%. Isso para não se falar no campeão, o Rio Grande do Norte, com 88%. Ao todo, são 17 os Estados que ofenderam a LRF, mas nove governos comportaram-se como deviam.

Os governadores querem mais dez anos de prazo para cumprir uma lei de 2000 e prometem um conjunto de medidas para buscar o equilíbrio financeiro. Velha conversa, como a do Supremo Tribunal Federal que quer o aumento para já, prometendo o fim dos penduricalhos dos juízes para depois. Ademais, dentro de dez anos os governadores serão outros.

Bolsonaro deveria ter desarmado a cilada da reunião, expondo a irracionalidade do pleito. Doria, que governará o Estado que exibe melhor desempenho (54% de comprometimento, graças a Geraldo Alckmin), poderia ter evitado a ribalta.

Para quem temia que depois da eleição viesse mais do mesmo, ressurge a maldição do príncipe de Salinas no romance “O Leopardo”: “Depois será diferente, porém pior”.