quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O 'leão' rugiu

Eu tenho o compromisso de tirar o Brasil do buraco apesar da imprensa porca, nojenta, canalha, imoral como é o sistema Globo de rádio e de televisão
Jair Bolsonaro, em reação à citação do seu nome no caso da morte da vereadora Marielle Franco

O conto do vigário dos dois governos Bolsonaro

Jair Bolsonaro pediu desculpas ao Supremo, caso alguém lá tivesse ficado ofendido com o fato de a corte ter sido comparada a uma hiena, em vídeo publicado pelo presidente na segunda-feira, e apagado duas horas depois.

Ainda assim, a falange revolucionária do bolsonarismo, sua autodenominada “ala antiestablishment,” reafirmou com outras palavras a mensagem do vídeo apagado, que não era apenas de injúria contra parte importante da sociedade civil e política organizada, mas uma convocação militante. O filmete do leão acossado (Bolsonaro) terminava com um chamado para que “conservadores patriotas” defendessem o presidente da oposição, das hienas e também dos isentões: “quem não é por nós, está contra nós".


As peripécias da história do vídeo, similares às de outros episódios de morde e assopra, indica que o bolsonarismo revolucionário está forte e sacudido, ainda que por ora contido no bunker do Planalto ou em catacumbas digitais. Continua, assim, o conto dos dois governos.

Um governo, de reformas econômicas, é motivo de conversa das elites e da maior parte da opinião pública como se normal fosse, goste-se ou não de seu programa. Outro, prega a “quebra do sistema”, uma revolução moral, o esmagamento da esquerda e da participação social no governo, faz ameaças aos Poderes e, na boca do próprio Bolsonaro, elogia a tortura e a ditadura.

O governo “do bem” é em parte importante tocado pela regência provisória do parlamentarismo branco, por lideranças do Congresso, que também limita as iniciativas prática do governo “revolucionário”. A ala anti-establishment, no entanto, age com liberdade nas relações exteriores, nos direitos humanos e ambientais e continua a atuar desimpedida no departamento de imprensa e propaganda, mantendo a exaltação militante, quem sabe o desejo de subversão.

Os adeptos e propagandistas do programa econômico frequentemente observam que os desvairados do governo podem atrapalhar as “reformas”, daí o seu caráter mais daninho. Um velho comunista ou um bolsonarista de primeira hora poderiam dizer, porém, que a “ala anti-establishment” apenas espera a mudança da “correlação de forças”, como diz o clichê.

Gustavo Bebianno, um dia da cúpula bolsonarista, disse nesta-terça ao site “Congresso em Foco” que “tudo indica” que Bolsonaro vai tentar uma “ruptura institucional”. Não é preciso ir tão longe para se preocupar com o bolsonarismo revolucionário, mas notem o tipo de conversa que estamos tendo neste país.

De onde veio o manifesto reescrito do vídeo das hienas? Ainda na noite desta terça-feira, Filipe Martins, ideólogo do bolsonarismo e assessor de assuntos internacionais do presidente, mantinha no ar o seguinte tuíte:

“O establishment não gosta de se ver retratado, mas ele é o que ele é: um punhado de hienas que ataca qualquer um que ameace o esquema de poder que lhe garante benefícios e privilégios às custas do povo brasileiro. Isso só mudará quando o Brasil se tornar uma nação de leões”.

Diante de tal conhecimento, qual perdão para o presidente? Na hipótese mais benigna, ainda muito grave, Bolsonaro não tem controle sobre mensagens difamatórias e destrutivas da harmonia entre os Poderes. Ou, então, Bolsonaro apenas administra os avanços e mordidas dos seus “conservadores patriotas”, fingindo escusas para inglês ver, esperando o momento certo para abrir as porteiras.

Fora de ordem

A velha canção de Caetano Veloso me vem à lembrança por causa do refrão: “Alguma coisa/ Está fora da ordem/ Fora da nova ordem/ Mundial…(Várias vezes)”. Ela fala do pequeno traficante nas ruínas de uma escola em construção, de meninos e meninas ganindo para a lua, de crianças que mordem os canos de pistolas, dos ianomâmis na floresta… Mas não perde o otimismo: “Eu não espero pelo dia/ Em que todos/ Os homens concordem/ Apenas sei de diversas/ Harmonias bonitas (…)”

“Aqui tudo parece/ Que era ainda construção/ E já é ruína”, porém, adverte o poeta. A crise do governo Sebastián Piñera, no Chile, e a vitória eleitoral do peronista Alberto Fernández, na Argentina, embaralharam o jogo político na América do Sul e, como a música, provocam reflexões sobre o que pode acontecer no Brasil. Estamos diante de uma espécie de El Niño político. O fenômeno climático é provocado por um aquecimento anormal das águas de superfície do oceano Pacífico Equatorial, na altura do Peru, que influencia o clima no Brasil e todo o Cone Sul.

Com a aprovação da reforma da Previdência e a expectativa de que um pacote de medidas administrativas e fiscais do governo está para ser anunciado, havia muito otimismo no mercado em relação ao início de um novo ciclo de expansão da economia, moderado, mas consistente. A crise do Chile, cujos indicadores econômicos são melhores do que os nossos, mostrou que a economia moderna e competitiva do vizinho escondia um país sem rede de proteção social e com desigualdades gritantes, sobretudo na distribuição de renda.

A derrota de Maurício Macri era pedra cantada, mas, nem por isso, merece ser desconsiderada. A volta dos peronistas ao poder sinaliza que os argentinos colocaram em segundo plano as denúncias de corrupção contra a ex-presidente Cristina Kirchner, agora vice mandatária do país, mais uma vez. O fracasso de Macri pode ser visto por vários ângulos, mas o fato é que seu governo frustrou as expectativas de crescimento e bem-estar social da população. A nova ressurreição peronista anima os petistas a sonharem com a volta por cima do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.


A reação do presidente Jair Bolsonaro às mudanças nos dois países era a previsível. No caso do Chile, viu nos protestos uma conspiração da Venezuela e de Cuba; no da Argentina, a retomada do projeto bolivariano pelo novo presidente eleito, que gritou “Lula livre!” no comício de comemoração da vitória eleitoral. A rigor, ninguém sabe muito bem o que vai acontecer nos dois países. O melhor mesmo é tentar entender o que se passa por aqui. Na verdade, somos muito diferentes.

Há esgarçamento social também no Brasil, os indicadores de violência mostram sua face mais brutal. Apesar da queda do desemprego e da criação de vagas formais, temos um exército de 28 milhões de pessoas “subutilizadas”, sendo 12,5 milhões no desemprego total, principalmente nas faixas de 18 a 29 anos de idade e acima de 55 anos. Ou o governo Bolsonaro enfrenta esse problema ou os cenários chileno e argentino entrarão no radar dos investidores: ninguém quererá investir em um país em risco de convulsão política e social.

As declarações de Bolsonaro contra a guinada à esquerda nos países vizinhos, e de que as nossas Forças Armadas estarão preparadas para reprimir eventuais protestos da oposição, ao contrário de dar segurança aos investidores, sinalizam mais problemas, ou seja, riscos à nossa democracia. A renúncia de oito ministros e o recuo de Piñera em relação aos protestos, que foram duramente reprimidos, são um alerta de que, nos dias de hoje, essa estratégia não é a melhor opção. Por outro lado, a comparação com a Argentina é boa para a oposição, mas é burra para o governo: estamos a mais de três anos das eleições presidenciais. É nessas horas que o sangue frio faz a diferença.

Voltando à canção do Caetano Veloso, a verdade é que alguma coisa está fora da ordem. Os sinais vêm de toda parte. Citando Alexis de Tocqueville (1805-1859), em análise da Revolução Francesa (“à medida que a situação econômica melhorava, os franceses achavam sua posição cada vez mais insuportável”), o cientista político Marcus André Melo, ontem, na Folha de São Paulo, destacava: “Revoltas e protestos resultam do descompasso entre aspirações e capacidade para materializá-las (“privação relativa”), que aumenta se as expectativas são constantes, mas a capacidade diminui (um choque econômico); se as expectativas elevam-se, mas a capacidade permanece constante (modernização acelerada); ou quando ambos aumentam, mas a capacidade não acompanha as expectativas na mesma proporção (fim de um boom de commodities)”.

Bolsonaro gerou muitas expectativas na população, em algum momento, a conta terá que ser paga. Deveria levar mais em conta esses cenários.

Por trás desse sorriso

Compreender a dimensão da desigualdade na sociedade, entender suas razões estruturais e discutir amplamente propostas para diminuí-la, longe do binarismo, é o caminho para afastar figuras insanas elevadas à categoria de heróis na vida real

“Coringa”, blockbuster que deve arrecadar US$ 1 bilhão nas bilheterias do mundo todo, tem como um de seus grandes méritos captar o espírito do tempo.

Em uma das muitas cenas incômodas do filme, uma mulher, terapeuta e negra, comunica ao protagonista, um homem branco e usuário do serviço, que os interesses de ambos estão unidos graças a uma aliança das elites, que decidiu cortar as verbas para a continuidade do trabalho.

Esse diálogo, na visão do escritor Micah Uetricht, revela que, apesar das fronteiras de gênero e de raça, os dois têm um inimigo de classe comum.


O homem branco é Arthur Fleck. Com uma risada medonha e incontrolável, ele é um comediante fracassado, que faz bicos como palhaço e apanha nas ruas de uma metrópole nojenta, corrupta e desigual. Nessa micropolítica de humilhação, a opressão se pereniza.

Sua história muda quando, vestido de palhaço, Arthur mata três jovens arrogantes e bem-sucedidos do mercado financeiro que o agrediram no metrô. O crime divide a sociedade, e Arthur, que até então vivia o abandono pela indiferença do outro, psicotiza, vira herói e assume-se como Coringa. Na sequência, uma convulsão social explode em Gotham City.

Visto como maniqueísta por uns e como uma ode à vitimização por outros, “Coringa” também foi exaltado como melhor filme no Festival de Veneza, já desponta como um dos favoritos ao Oscar e transformou-se em tema de debates nas áreas de cultura, psicanálise, sociologia, política, economia e saúde mental.

Por que, afinal, um filme perturbador como “Coringa” desperta tanto interesse? Com uma performance arrebatadora de Joaquin Phoenix, o longa tem várias chaves de leitura. Uma delas é a de que os protestos violentos em apoio a Coringa, na tela, expressam uma insatisfação difusa, nascida do ressentimento e da revolta com a desigualdade.

Não por acaso, máscaras de Coringa estavam nas ruas do Chile, em chamas, em protestos pela redução do fosso social. Dezoito pessoas morreram.

Em 2015, revela levantamento da ONU, o 0,1% mais rico dos chilenos concentrava 19,5% da renda do país, 1% detinha 33% e os 5% mais ricos ficavam com 51,5%. Dados do Ministério de Desenvolvimento Social do Chile mostram que a renda dos 10% mais ricos da população, em 2017, foi 39,1 vezes mais alta do que a dos 10% mais pobres, em comparação às 30,8 vezes de 2006.

É nesse clima de tensão do filme e das ruas do Chile que Thomas Piketty volta às livrarias. Autor de “O Capital no Século XXI”, que vendeu 2,5 milhões de exemplares, ele lança agora “Capital e Ideologia”. Seu best-seller de 2013 ecoava o movimento Occupy Wall Street, de 2011, que criticava a desigualdade na distribuição de renda da riqueza nos Estados Unidos entre o 1% mais rico e o resto da população.

No novo livro, o economista francês retoma a questão, defendendo que o fundo do problema está na ideologia. “Dar um sentido às desigualdades, e justificar a posição dos vencedores, é uma questão de vital importância. A desigualdade é acima de tudo ideológica”, escreve Piketty no livro, que sairá no Brasil em 2020 pela Intrínseca.

Para o autor, o período que se estende do pós-Segunda Guerra aos anos 80 foram bem-sucedidos no que ele chama de “coalizão igualitária”. Nesse intervalo, os Estados Unidos e a Europa adotaram fiscalidade progressiva, com impostos impositivos, sistemas de proteção social avançados e acesso à educação. Mas, a partir do “hipercapitalismo” de Ronald Reagan, vitaminado pela queda da União Soviética, o cenário mudou, diz, e dá o tom hoje.

Na onda de argumentos como os de Piketty surfa também a ascendente pré-candidatura de Elizabeth Warren para a Casa Branca. A senadora democrata cresce entre vários segmentos eleitorais como opção real para ganhar as primárias e tornar-se a adversária de Trump em 2020.

Boa parte de sua retórica remete ao tom social de “Coringa” e é construída com base nas ideias de dois conselheiros, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, autores do também recém-lançado livro “The Triumph of Justice”. Ambos atacam a desigualdade e criaram a proposta de um imposto de 2% sobre a riqueza de quem ganha mais de US$ 50 milhões e 1% adicional para as fortunas acima de US$ 1 bilhão. Esse tópico tornou-se central na campanha presidencial da democrata.

Para os dois, franceses e amigos de Piketty, a questão tributária é o debate mais importante nas sociedades democráticas, já que ela define toda as outras ações.

O nó górdio da proposta de Saez e Zucman é que ela poderia provocar o efeito Gérard Depardieu. Em 2012, cansado da alta tributação em seu país, o astro francês mudou seu domicílio fiscal para a Rússia. “Para dar certo, esse imposto sobre riqueza teria de ser global, evitando o deslocamento para países com menos tributos, o que é muito difícil”, diz o economista Paulo Tafner.

O melhor seria a tributação sobre a circulação de renda, propõe ele. “É mais razoável o imposto sobre os ganhos de capital oriundos da operação financeira.” Um ponto para quem é contrário a esse imposto, porém, é que, quando se perde dinheiro em capital mobiliário, a pessoa também é tributada.

Tafner reconhece ser preciso haver mais justiça tributária, melhorando o sistema, incluindo taxação sobre ganhos superlativos e novas alíquotas de Imposto de Renda. “Mas não acho que tributar o estoque de riqueza causará impacto na redução de desigualdade.”

O economista alerta para dois fenômenos que ocorrem ao mesmo tempo: a desigualdade aumenta, mas há uma tremenda redução na pobreza. Pesquisador da Fipe-USP, Tafner avalia que o ponto fulcral para o problema é melhorar o acesso à educação e garantir a igualdade de oportunidades, favorecendo também a mobilidade social.

Assim como no Brasil, a desigualdade no Chile continua alta e há no ar uma sensação difusa de injustiça social e frustração, escreveu o economista Arminio Fraga em artigo na “Folha de S.Paulo” anteontem.

“O caso reforça a tese de que crescimento e equidade precisam caminhar juntos, sob pena de inviabilizar politicamente qualquer estratégia de desenvolvimento”, continua ele.

Como se vê, a desigualdade mobiliza multidões às ruas, aos cinemas e às livrarias, tornou-se protagonista de debates econômicos e seu combate pode ser o mote para eleger o político mais importante do mundo. Compreender sua dimensão na sociedade, entender suas razões estruturais e discutir amplamente propostas para diminuí-la, longe do binarismo, é o caminho para afastar figuras insanas elevadas à categoria de heróis na vida real.

Pensamento do Dia


Rei dos animais

Quando se julgavam esgotados os epítetos, afrontas e apodos dirigidos a Jair Bolsonaro —nunca um presidente da República se prestou tanto a ser desqualificado—, eis que ele próprio acrescentou à sua galeria o título que lhe faltava. O vídeo produzido por sua equipe e protagonizado por um leão identificado com o seu nome, acossado por hienas marcadas com os logotipos de seus supostos inimigos, não deixa dúvida. Ele é o rei dos animais.

Essa repentina majestade, no entanto, não o livrará de continuar a ser tratado com casca e tudo, inclusive pela turma com quem andava antes de chegar ao Planalto. Outro dia, seu próprio colega de partido, um certo Delegado Waldir, chamou-o de “vagabundo” e “essa porra” —quase fazendo o colunista sair em defesa da porra, injustamente rebaixada a Bolsonaro.


Turma aquela que, de tão íntima, parece na iminência de lhe custar caro. Fabrício Queiroz, seu ex-boy, ex-motorista, ex-oficial de gabinete, ex-coordenador de contratações escusas e ex-amigo, ressuscitou em áudio esta semana, dando dicas a “Jair” sobre como melhor conduzir o poder e se queixando de que, alvo de um processo perigoso, está sendo abandonado pelos cúmplices, digo colegas. O vocabulário de Queiroz não é dos mais ricos. Consta de dez ou doze palavras, metade das quais, palavrões. Mas é injusto tirar as crianças da sala quando se sabe que ele vai falar na TV. Todo o governo Bolsonaro justifica que se tirem as crianças da sala.

Ao escalar o time de hienas que hostilizam o leão, Bolsonaro arrolou uma nova instituição ao seu rol de inimigos imaginários: o STF. O fato de o vídeo ter sido “apagado” e, como sempre, Bolsonaro ter se “desculpado” —desta vez, 24 horas depois—, não impede o vídeo de continuar no ar, atingindo milhões de pessoas. E, em todas as exibições, lá está o insulto: o STF é uma hiena.

Resta ver se o STF fará jus à descrição.
Ruy Castro

Dá-lhe, Queiroz

A dedicação dos Bolsonaro às redes sociais é repugnante. Sua estupidez nem surpreende mais. Nessa segunda, enquanto cumpria agenda internacional, o presidente perdeu tempo precioso para se colocar na fantasia de um leão ameaçado por "comunistas". Bolsonaro os vê escondidos pelos cantos, atrás das portas dos palácios.

O vídeo grosseiro postado pelo capitão põe Supremo, OAB, CUT, imprensa, PSL, ONU, MBL, Greenpeace, no mesmo balaio. Representados por hienas, provocam um leão corajoso, Bolsonaro, claro, socorrido por outro leão, o “conservador patriota”. O tuíte foi apagado no fim do dia.


Com suas postagens, Bolsonaro e filhos empenham-se em fazer marola, mascarar fatos, camuflar, ofender. Nesses dias em que tenta se abichar pela Ásia e Oriente, Bolsonaro quis abafar a voz de Fabricio Queiroz, ex-assessor do seu filho Flavio na Assembléia Legislativa do Rio.

Não conseguiu. Hienas e leões foram ofensivas, Queiroz foi além. Em gravações reveladas pela Folha de S. Paulo, aparece até o capitão, depois de sua eleição, negociando a demissão de uma funcionária do gabinete do filho Carlos.


Nas gravações, o ex-assessor de Flavio e amigo pessoal do presidente xinga promotores do Rio (que o estão investigando), diz que a investigação até demorou, sugere que ainda atua nas rachadinhas, e diz que Bolsonaro está perdido em seu governo.

De onde vieram essas, poderão vir outras gravações. A família está de orelha em pé. Nada que impeça Bolsonaro de fazer ou falar uma bobagem atrás da outra. Anunciou que não cumprimentaria Alberto Fernandez, presidente eleito da Argentina, e foi ainda mais grosseiro com os eleitores do país vizinho. “Lamento, escolheram mal”.

Bolsonaro não tem vergonha de mostrar sua falta de educação. Somada à mania de perseguição, usa as redes sociais como se não tivesse qualquer compromisso na vida, menos ainda com o Brasil. Certamente, falta serviço para esse cidadão. Mente vazia é oficina do diabo.
Mirian Guaraciaba

Sobre realezas e togas

O Japão tem um novo imperador. O mundo globalizado e digitalizado continua realizando arcaicos “ritos de passagem”. Naruhito, o novo imperador, foi investido dentro da ritualística antropológica na qual o sagrado é removido do corriqueiro na esquecida fórmula de Durkheim.

Que contraste com as nossas malsinadas tradições políticas sul-americanas. Afinal, o que é um “golpe de Estado” senão uma sacanagem — o retorno violento de uma república à ordem aristocrática feita por uma corporação, partido e/ou família?

No Japão, o poder tem um lado sacrossanto avesso à malandragem política como um meio de boa vida. Tal simbolismo, certamente, inibe a proliferação do chamado “baixo clero”; esse resultado objetivo de uma tosca confusão quando se pensa que democracia é quantidade, e não qualidade, a qual depende de mérito, ética e impessoalidade.

No Japão, há uma aristocracia fixa e um regime eleitoral móvel. Mas não foram apagados os elementos tradicionais de controle do cargo público na figura do suicídio de honra — o seppuku (“cortar o ventre” em tradução literal) — quando uma figura pública malandramente abusa do seu cargo, que é "do público", e não "um cargo público" tal é concebido no Brasil.

Houvesse seppuku entre nós, perderíamos a conta dos suicidas, mas, como o Brasil é governado "também" por uma ética de malandragem, os sacanas acumulam prestígio como “sabidos”, apoiados na jurisprudência de Pedro Malasartes. Um legalismo desenhado para inocentá-los.

Estive no Japão em 1981. Em Tóquio e Toyama, tomei parte de discussões sobre teatro e ritual. O professor Victor Witter Turner, um escocês radicado na Universidade de Chicago com quem tive uma grata afinidade intelectual, levou-me ao Oriente. Suas teorias conduziram-me também ao estudo do carnaval brasileiro, que investiguei como um “rito de passagem coletivo”, tentando tirá-lo do sonambulismo da brincadeira festiva inocente, para vê-lo como como um cerimonial com uma mensagem igualitária e paradoxal na qual a malandragem, a fantasia, a ostentação, a máscara, a inversão dos sexos e classes sociais e a música de duplo sentido relativizavam o comportamento reacionário, bem como a profunda e inconsciente hierarquia que governa a nossa vida diária.

Victor Turner renovou os estudos simbólicos. Tinha um coração tão grande que, não cabendo neste mundo, explodiu em Charlottesville, Virgínia, Estados Unidos, no dia 18 de dezembro de 1983. Por uma coincidência recorrente da minha vida, recebi a notícia depois assistir a um “Rei Lear”, de Sérgio Britto, um de seus dramas prediletos. Com sua morte, foi-se um renovador dos “teoremas de Arnold Van Gennep”, que, como resume Meyer Fortes, estabelecem: (a) os estágios críticos do ciclo de vida que começam no nascimento e seguem para a puberdade, o casamento e, finalmente, para a morte, são marcados por rituais de reconhecimento; (b) a entrada e saída desses estágios são sinalizadas em todas as sociedades, sejam “primitivas” ou “avançadas”; (c) esses ritos têm sempre três fases: separação, transição ou margem, e incorporação.

Os togados do Supremo Tribunal Federal presididos por Dias Toffoli, com sua nobre barba de vampiro e sua certeza de que não existe conflito de interesse, estão, mais uma vez, considerando atalhar a prisão em segunda instância. Nas aristocracias, mais do que donos do poder, os nobres eram donos de tudo! A óbvia insegurança do STF diante da prisão em segunda instância mostra a tara aristocrática da matriz cultural do Brasil e, com ela, o nosso mais profundo horror à igualdade. Brancos nobilitados por nomeação ou eleição podem ser criminosos, mas (tendo bons advogados) estão isentos de condenação, exceto até o Dia do Juízo Final... Aqui, o rito legal é uma racionalização de cunho político-ideológico para adiar e inocentar anulando montanhas de fatos. Não sei, confesso, como conseguimos abolir a escravidão!

Também não tenho dúvida de que esse ordálio do Supremo é mais um rito de passagem a confirmar que o crime efetivamente compensa para os que estão drasticamente separados de nós outros, os cidadãos-plebeus. Pensando bem, há mais pompa e circunstância na realeza populista brasileira do que na assumida nobreza do Japão.

Consolo-me com Montaigne quando dizia que “no mais alto trono do mundo o homem senta-se com o traseiro”.
Roberto DaMatta

Gente fora do mapa


A hipocrisia como política externa

A coerência de um líder é, provavelmente, uma de suas maiores virtudes para conquistar credibilidade internacional e respeito. Questionar uma ideologia, sempre que dentro da lei, é legítimo. Preferir um certo caminho econômico, desde que não retire direito fundamentais de seus cidadão, é sempre uma opção.

O que não é uma opção é a hipocrisia. Desde que assumiu o Governo, Jair Bolsonaro colocou Nicolas Maduro e Havana como seus maiores inimigos no hemisfério. Para questionar e tirar qualquer tipo de legitimidade do Governo de Caracas, ele e seu chanceler, Ernesto Araújo, fizeram questão de denunciar o caráter autoritário do regime venezuelano.

Cuba é também uma obsessão do atual Coverno. Com pouca relevância hoje no mundo, a ilha caribenha mereceu espaço nobre no discurso do presidente na Assembleia Geral da ONU. Poucos dias depois, de próprio punho, Araújo mandou instruções a seus diplomatas para que usassem uma reunião das Nações Unidas para atacar Havana. Uma embaixadora chegou a alertar que aquele ataque era desnecessário. Mas ordens são ordens.

Brasília está errada em denunciar as violações em Cuba e Venezuela? Não necessariamente. A própria ONU, desprezada por Bolsonaro, acusa o governo de Maduro de ter montado uma verdadeira máquina de repressão. Antes mesmo da intensificação da crise, a cúpula das Nações Unidas já alertava para o fato de que a democracia estava ameaçada em Caracas.

Mas o problema é quando se opta por chamar Maduro de ditador e os cubanos de ameaça, enquanto fecha-se os olhos para afirmar, com orgulho, que temos “afinidades” com um príncipe saudita acusado das piores atrocidades.


Ao desembarcar num dos regimes mais repressores do mundo, a Arábia Saudita, o chanceler publicou comentários nas redes sociais contra o novo governo argentino. Um dos argumentos de seu ataque era de que Alberto Fernandez estaria apoiando ditaduras.

Riad e sua opressão contra a liberdade de imprensa pareciam não constranger os membros do Governo brasileiro. Tampouco parecia ser um problema o papel secundário que se dá à mulher. Ápice da falta de coerência foi ainda o comentário do presidente de que as mulheres desejariam passar uma tarde como o príncipe saudita, como ele fez.

Em junho, estive com Hatice Cengiz, a noiva de Jamal Khashoggi, jornalista saudita morto dentro de um consulado saudita. Ela apelava para que Bolsonaro cobrasse o príncipe Mohamed Bin Salmam pela morte do crítico ao regime. Os elogios do brasileiro ao herdeiro do trono soaram com um solene ato de chancela e um recado: esse assunto não nos incomoda.

Tudo tinha um preço. Ao final do encontro, o Governo anunciou investimentos de 10 bilhões de dólares por parte dos sauditas no Brasil. O silêncio cúmplice sobre mortes, abusos e golpes sobre a dignidade compensavam. Se a oposição simplesmente não tem o direito de existir, talvez essa conversa fique para uma outra ocasião.

Essa não foi a única vez em que o Governo Bolsonaro traçou uma linha para diferenciar entre ditaduras. Há poucas semanas, num comunicado, Brasília criticou o fato de o governo Maduro ter sido eleito para o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Mas mandou parabenizar regimes como o da Mauritânia, Sudão e outros, também eleitos.

Agora, a turnê de Bolsonaro pelo Oriente Médio reforça necessidade de esclarecimentos urgentes. Para além de suas afinidades com um príncipe acusado de repressão, Bolsonaro precisa explicar o que entende exatamente por “democracia” ou “ditadura”.

Sem uma explicação, temos duas hipóteses.

Na melhor delas, sabemos que somos governados por hipócritas. Um aliado de Donald Trump que seja uma ditadura é um amigo. Uma ditadura que seja adversária da Casa Branca é um governo ilegítimo e que merece nosso desprezo. Numa política externa dogmática, uma ditadura de esquerda é uma ditadura de esquerda. Já uma ditadura de direita é um aliado e um parceiro comercial.

Na pior das hipóteses, porém, o temor é de que tenhamos um chefe-de-estado que considere que, em algumas situações, abolir o estado de direito, os direitos humanos e a democracia sejam atos legítimos.

Numa política externa que supostamente defende valores democráticos e de liberdades individuais, o comportamento do Governo na Arábia Saudita é a comprovação de que a diplomacia nacional é guiada pela hipocrisia típica das ideologias. Hipocrisia essa, porém, incapaz de abafar o insuportável grito das vítimas e de uma dor que não conhece ideologia.
Jamil Chade

Ato de coragem

Numa época de mentiras universais, falar a verdade é um ato revolucionário
George Orwell

Crise no Chile mexe com instintos primitivos do bolsonarismo

As manifestações no Chile mexeram com os instintos mais primitivos do bolsonarismo. Em visita à China, o presidente Jair definiu os protestos como “atos terroristas”. Dias antes, no Japão, chamou de “bárbaros” os chilenos que tomaram as ruas contra o aumento do custo de vida e a piora dos serviços públicos.

O governo de Sebastián Piñera respondeu ao início da crise com uma repressão brutal. Pôs o Exército nas ruas e ressuscitou o toque de recolher da ditadura Pinochet. Depois de 20 mortos e mais de uma centenas de feridos, o presidente decidiu recuar. Pediu desculpas à população, recolheu a tropa e anunciou reformas sociais.

Em pronunciamento na TV, o conservador Piñera admitiu que os chilenos têm motivos para reclamar. Disse que as últimas gestões, incluindo as dele, não foram capazes de perceber a insatisfação popular. “Reconheço e peço perdão por essa falta de visão”, penitenciou-se.


O mea culpa não parece ter convencido o governo brasileiro. Segundo Bolsonaro, os protestos no Chile fariam parte de um complô de partidos de esquerda da América Latina. “A intenção deles é atacar os EUA e se autoajudarem”, acusou. A tese conspiratória foi endossada pelo ministro Augusto Heleno, que falou num conluio da “esquerda radical” para “conturbar a vida”, “tentar retornar ao poder de qualquer maneira e nos jogar no abismo”.

Nos últimos dias, Bolsonaro levantou ao menos três vezes a hipótese de convocar as Forças Armadas para reprimir protestos até agora inexistentes no Brasil. Ele tem falado repetidamente em acionar o artigo 142 da Constituição, que permite convocar as tropas para a garantia “da lei e da ordem”. Nas redes sociais, militantes bolsonaristas evocam o mesmo artigo em defesa de uma “intervenção militar” no país.

Ontem o deputado Eduardo Bolsonaro escancarou o tom de ameaça. Na Câmara, ele disse que os oposicionistas “vão querer repetir no Brasil o que tá acontecendo no Chile”. “Não vamos deixar isso aí vir pra cá. Se vier pra cá, vai ter que se ver com a polícia. E se eles começarem a radicalizar do lado de lá, a gente vai ver a História se repetir. Aí é que eu quero ver como é que a banda vai tocar”, desafiou. Deixou a tribuna sob vaias e gritos de “golpista”.

Fatos intimam Bolsonaro a acender a luz de casa

A vinculação do nome de Jair Bolsonaro ao assassinato de Marielle Franco é, por ora, apenas um asterisco em meio a um inquérito crivado de pontos de interrogação. A despeito disso, ganhou ares de crise a notícia divulgada pelo Jornal Nacional de que o nome do presidente da República consta do processo sobre a execução da vereadora do PSOL.

Deve-se o fenômeno às relações perigosas da família Bolsonaro com milicianos. Para evitar que uma dificuldade aparentemente pequena se torne crítica e passe a influenciar o rumo do governo, Bolsonaro precisaria acender a luz de casa. Mas ele não parece disposto a fazê-lo.


Eis o que foi ao ar em horário nobre: no dia do assassinato de Marielle, um suspeito de participar do crime entrou num condomínio para visitar um comparsa, acusado de puxar o gatilho. Alegou na portaria que iria à casa de Bolsonaro, localizada no mesmo conjunto habitacional. Em depoimento à polícia, o porteiro disse ter obtido pelo interfone autorização do "seu Jair" para a entrada do visitante.

O livro de controle de acessos anota o nome do suspeito, a placa do carro e o número da casa de Bolsonaro: 58. Naquele dia, esclareceu a reportagem, Bolsonaro estava em Brasília. Registrou presença na Câmara. Divulgou vídeos nas redes sociais. A guarita do condomínio dispõe de equipamento que grava as comunicações feitas via interfone. A polícia tenta recuperar o áudio, para descobrir com quem, afinal, o porteiro conversou na casa de Bolsonaro.

A situação exige claridade e serenidade. Mas Bolsonaro, numa transmissão ao vivo pelas redes sociais, ficou fora de si. Com isso, tornou-se mais fácil enxergar o que o capitão tem por dentro: muita raiva e um enorme apreço pelo breu. A irritação compromete o discernimento de Bolsonaro, impedindo-o de perceber que o nome da crise não é imprensa, mas família Bolsonaro.

A novidade chega num instante em que Fabrício Queiroz, um policial militar que trabalhou com os Bolsonaro, envia pelo WhatsApp sinais de que se considera abandonado. Ex-assessor de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio, Queiroz ainda não forneceu ao Ministério Público do Rio uma explicação que fique em pé sobre suas movimentações financeiras.

Amigo de Queiroz, o ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, da PM do Rio, teve a mãe e a mulher pendurados na folha salarial do gabinete de Flávio Bolsonaro. Apelidado de "Caveira", o oficial Adriano foi expulso da corporação. Comandava uma milícia em Rio das Pedras. Está foragido.

É contra esse pano de fundo que a polícia civil do Rio encosta na biografia de Bolsonaro um letreiro de neon com o nome de Marielle. A novidade mistura-se aos passivos que não saem das manchetes.

Acusado de peculato e lavagem de dinheiro, Flávio Bolsonaro percorre os corredores do Senado como se nada tivesse sido descoberto sobre ele. Superblindado por duas liminares do Supremo —uma de Dias Toffoli, outra de Gilmar Mendes, o primogênito toma distância de Queiroz: "Não falo com ele há quase um ano". Bolsonaro ecoa o filho.

Afora os crimes de peculato e lavagem de dinheiro atribuídos a Flávio e a rachadinha administrada por Queiroz, o Ministério Público do Rio esquadrinha a folha do gabinete de Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, na Câmara Municipal do Rio. Recolheram-se indícios de que funcionava ali outro ninho de ilegalidades funcionais.

Num ambiente assim, presidente que se queixa da imprensa soa como capitão de navio que reclama da existência do mar. Só Bolsonaro sabe o tamanho real do buraco em que ele e sua família estão metidos. Toda crise tem um custo. O presidente precisa decidir quanto deseja pagar. A fatura vai aumentando com o tempo.

Em tese, Bolsonaro ainda dispõe de três anos e dois meses de governo. Não há blindagem que dure tanto tempo. Melhor acender a luz, nem que seja num dos cômodos: o quarto das crianças.

Uganda, aqui

Uganda é um dos países mais pobres do mundo. É mais pobre que a Zâmbia, o Senegal, o Zimbábue. É tão pobre que tem cerca de metade do PIB per capita do Sudão. Ou de Bangladesh. Quase um terço daquele da República do Congo.

Muita gente mora em Uganda: entre 40 e 44 milhões, uma das maiores populações da África. Uganda é atrasada: chamou recentemente atenção da imprensa internacional quando o primeiro-ministro Ruhakana Rugunda tentou criar um imposto sobre mídias sociais, ou quando foi perguntando se pretende mesmo introduzir a pena de morte para homossexuais. 


A miséria de Uganda parece distante daqui. Seu PIB per capita foi equivalente a 15% do PIB do Brasil em 2018, na estimativa do Banco Mundial (mesma proporção da projeção do governo americano para 2017).

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Economistas costumam dividir a população de acordo com sua renda, útil para analisar a desigualdade ou efeitos de uma política pública. Ordena-se todos os cidadãos do mais rico ao mais pobre, dividindo a população em fatias de acordo com sua posição.

Um corte usual é o em quintis. A população é dividida em 5 grupos, cada um correspondendo a 20%. Essa foi uma divisão comum no debate da reforma da Previdência no Brasil, evidenciando que esses gastos poucos chegam nos mais pobres.

Em 2018, o quintil mais pobre da população tinha renda média equivalente a 18% da renda média nacional – pelos dados de Daniel Duque, da FGV. Somente um pouco acima dos 15% de Uganda.

Muita gente mora no quintil mais pobre: são 42 milhões de brasileiros.

Quando falamos nos quintis ou nos 20% mais pobres, frequentemente não fica claro do que estamos falando. Existe uma Uganda no Brasil, uma multidão equivalente à população do país africano que tem renda média próxima à daquele país.

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Se a Uganda é o país que mais se aproxima aos dados de população e renda do quintil mais pobre do Brasil, a Espanha é que mais adere a esses dados para os 20% mais ricos. O quintil mais rico brasileiro teria renda média um pouco maior à da Espanha, e uma população um pouco menor.

Quando se criticou a progressividade do déficit previdenciário com dados como o que expõe que somente 10% dos recursos chegam ao quintil mais pobre e 40% vão para o quintil mais rico, houve chiadeira. A posição relativa dos mais ricos, por não os tornar ricos em termos absolutos, seria irrelevante.

Mas a verdadeira questão é sobre quem priorizar. No caso desses dados, referentes a centenas de bilhões de déficit da Previdência urbana e do funcionalismo, eles indicam que destinamos 40% para nossa Espanha, e somente 10% para a nossa Uganda.

E sem reforma, sobrariam cada vez menos recursos para políticas mais pró-Uganda, como o Bolsa Família: quase 70% vai para Uganda, menos de 1% vai para a Espanha. A transição demográfica agindo sobre um gasto gigantesco e obrigatório aumentaria o muro anti-Uganda no Orçamento.

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Erguemos outros muros contra nossa Uganda, e a agenda de reformas tem de ser uma agenda para derrubá-los. Na trabalhista, reduziu-se o elevado piso de produtividade para ingresso no mercado de trabalho formal, com as novas jornadas (como a intermitente) e a reformulação do processo trabalhista. Falta o sinal verde do STF. Não há emprego quando a produtividade esperada é menor do que o custo esperado. Trabalhadores menos escolarizados e menos experientes são os punidos.

Os mais jovens predominam na Uganda daqui, sendo meritórios também os projetos para diminuir a sua taxa de desemprego, ainda ao redor de 30%. É o caso da Nova Lei do Primeiro Emprego, projeto do senador Irajá, e do pacote de Rogério Marinho aguardado para novembro. Democracias avançadas diferenciam os encargos para trabalhadores jovens.

Uganda também enfrenta o muro do consumo, erguido por um sistema tributário que lhe exige mais do que é cobrado por Espanha. A reforma tributária da PEC 45 prevê a devolução dos tributos pagos pelos mais pobres, um expressivo ganho de renda.

Contudo, remete o mecanismo a um projeto de lei complementar: melhor seria se o texto da PEC já fosse dotado de eficácia, cabendo à lei a possibilidade de alterar o mecanismo, mas não sendo necessária para criá-lo. Nesse sentido, a proposta de reforma tributária da oposição é mais ousada. Aliás, ainda que menos madura no tocante à simplificação e à eficiência, deveria estar recebendo mais atenção, inclusive dos círculos liberais. A Emenda 178 faz a promessa de desonerar os mais pobres, compensando sobre os mais ricos, mantendo a carga tributária total inalterada. Também é agenda para Uganda.