quarta-feira, 15 de outubro de 2025
O Brasil caminha para um futuro sem dinheiro em espécie
O dinheiro sempre foi mais do que um simples instrumento de troca; ele é uma construção simbólica e política que expressa a soberania de um Estado e a confiança de uma sociedade em si mesma. Desde as primeiras moedas cunhadas pelos impérios antigos, a emissão do dinheiro representou o poder de uma autoridade sobre o território e o destino econômico de seu povo. Michel Aglietta, em La violence de la monnaie, afirma que a moeda é uma “instituição social da confiança”, um elo entre os indivíduos e a coletividade que legitima o poder soberano. Cada cédula, cada símbolo impresso, carrega não apenas o valor de compra, mas um sentido de pertencimento e identidade. O real, o dólar ou o euro não são apenas unidades monetárias, são expressões da história, da cultura e do pacto de confiança que sustenta um país.
O avanço tecnológico que hoje desmaterializa o dinheiro, transformando-o em impulsos eletrônicos, códigos e senhas, ameaça não só o papel físico das cédulas, mas também o significado social que elas carregam. Ao substituirmos o dinheiro tangível pelos pagamentos digitais, como o Pix, os cartões por aproximação ou as carteiras virtuais, caminhamos para um regime de abstração, onde o valor é administrado por algoritmos e corporações globais. Georg Simmel, em Filosofia do Dinheiro, já havia percebido que a modernidade transforma o dinheiro em uma forma pura de mediação, reduzindo as relações humanas a equivalências calculáveis. Essa “abstração monetária” reconfigura as interações sociais, esvaziando o contato direto e concreto que antes havia nas trocas face a face.
A desmaterialização do dinheiro, portanto, não é apenas uma mudança tecnológica, mas uma mutação da experiência social. O dinheiro físico é sensorial, palpável, partilhado já que ele passa de mão em mão, produz vínculo, gesto e confiança imediata. O dinheiro digital, ao contrário, é invisível, automatizado, mediado por sistemas. David Graeber, em Debt: The First 5,000 Years, lembra que as trocas sempre foram também formas de reconhecimento moral, de reciprocidade e de obrigação mútua. O dinheiro físico permite ver e sentir o valor que se transfere, enquanto o dinheiro digital dissolve a materialidade da troca e, com ela, uma parte do vínculo social.
A digitalização integral dos pagamentos transfere também o poder de controle da moeda. O Estado, que sempre foi o emissor e guardião da soberania monetária, passa a dividir ou mesmo ceder esse papel para bancos digitais, empresas de tecnologia e plataformas globais. André Orléan chama esse processo de dessouverainisation monétaire, a perda da soberania monetária diante de atores privados que controlam a infraestrutura digital das transações. Quando o dinheiro deixa de ser uma criação do Estado e passa a ser administrado por sistemas corporativos, a moeda deixa de representar uma nação e passa a representar uma rede, sem rosto, sem território e sem identidade coletiva.
A pesquisa recente do Opinion Box (2025) evidencia o alcance dessa transformação: 83% dos brasileiros afirmam usar cada vez menos dinheiro físico, e 87% utilizam o Pix como principal meio de pagamento. Esse dado não é apenas estatístico, é sociológico. Ele revela uma mudança nas formas de sociabilidade, na temporalidade da vida cotidiana e na percepção de valor. O ato de pagar, que antes implicava um gesto – abrir a carteira, escolher a nota, entregar o troco – torna-se instantâneo e silencioso. As transações se aceleram, mas também se desumanizam. As relações econômicas, antes mediadas pela presença física, tornam-se mediadas por interfaces digitais, e com isso, a própria noção de confiança desloca-se: confiamos menos nas pessoas e mais nos sistemas.
Há também riscos sociais e políticos. Uma sociedade sem dinheiro físico é uma sociedade em que toda transação é rastreável. Isso amplia o controle, mas reduz o anonimato e a autonomia. Para os milhões de brasileiros que ainda vivem à margem do sistema bancário, o dinheiro físico é não apenas um meio de pagamento, mas um meio de existência. Ele permite circular, comprar, vender e participar da vida econômica sem intermediações. Quando o dinheiro físico desaparece, parte da população desaparece com ele, expulsa para fora do sistema digital.
Do ponto de vista sociológico, a questão central é compreender como essa transformação afeta o tecido das relações sociais. O dinheiro, como observa Karl Marx em O Capital, é uma forma de mediação social que transforma as relações humanas em relações entre coisas. Na era digital, essa mediação torna-se ainda mais opaca, pois agora as “coisas” são dados, algoritmos e fluxos invisíveis. A economia torna-se um sistema de signos autorreferenciais, em que o valor já não se ancora no trabalho, mas na informação. A moeda, que antes representava o produto da força humana, passa a representar o produto da codificação tecnológica.
Ao mesmo tempo, Maurizio Lazzarato, em O governo do homem endividado, mostra que a financeirização da vida cria sujeitos permanentemente endividados, dependentes de crédito, cartões e limites. Nessa lógica, o pagamento instantâneo e a ausência de cédulas físicas criam uma ilusão de poder de compra, mas reforçam a submissão às estruturas financeiras. A liberdade de consumir se confunde com a servidão ao crédito.
Essa revolução digital do dinheiro tem, portanto, um duplo rosto: de um lado, traz eficiência, segurança e modernidade; de outro, corrói formas tradicionais de convivência, desmaterializa a experiência social do valor e ameaça a soberania simbólica do Estado. A moeda é um dos pilares da identidade nacional porque traduz em valor comum a confiança coletiva. Quando ela se torna apenas um dado flutuante, essa confiança se desloca para fora das fronteiras, para servidores, plataformas e instituições que não respondem à lógica do interesse público.
O futuro sem dinheiro físico pode ser inevitável, mas ele não precisa ser cego. A sociologia deve olhar para esse fenômeno não como simples progresso técnico, mas como um processo de reconfiguração da vida social. Estudar o dinheiro é estudar o poder, a confiança e o modo como as pessoas se relacionam. O desafio está em garantir que a inovação digital não apague a dimensão simbólica e política da moeda. O dinheiro, afinal, sempre foi, e continuará sendo, um espelho da sociedade que o cria.
O avanço tecnológico que hoje desmaterializa o dinheiro, transformando-o em impulsos eletrônicos, códigos e senhas, ameaça não só o papel físico das cédulas, mas também o significado social que elas carregam. Ao substituirmos o dinheiro tangível pelos pagamentos digitais, como o Pix, os cartões por aproximação ou as carteiras virtuais, caminhamos para um regime de abstração, onde o valor é administrado por algoritmos e corporações globais. Georg Simmel, em Filosofia do Dinheiro, já havia percebido que a modernidade transforma o dinheiro em uma forma pura de mediação, reduzindo as relações humanas a equivalências calculáveis. Essa “abstração monetária” reconfigura as interações sociais, esvaziando o contato direto e concreto que antes havia nas trocas face a face.
A desmaterialização do dinheiro, portanto, não é apenas uma mudança tecnológica, mas uma mutação da experiência social. O dinheiro físico é sensorial, palpável, partilhado já que ele passa de mão em mão, produz vínculo, gesto e confiança imediata. O dinheiro digital, ao contrário, é invisível, automatizado, mediado por sistemas. David Graeber, em Debt: The First 5,000 Years, lembra que as trocas sempre foram também formas de reconhecimento moral, de reciprocidade e de obrigação mútua. O dinheiro físico permite ver e sentir o valor que se transfere, enquanto o dinheiro digital dissolve a materialidade da troca e, com ela, uma parte do vínculo social.
A digitalização integral dos pagamentos transfere também o poder de controle da moeda. O Estado, que sempre foi o emissor e guardião da soberania monetária, passa a dividir ou mesmo ceder esse papel para bancos digitais, empresas de tecnologia e plataformas globais. André Orléan chama esse processo de dessouverainisation monétaire, a perda da soberania monetária diante de atores privados que controlam a infraestrutura digital das transações. Quando o dinheiro deixa de ser uma criação do Estado e passa a ser administrado por sistemas corporativos, a moeda deixa de representar uma nação e passa a representar uma rede, sem rosto, sem território e sem identidade coletiva.
A pesquisa recente do Opinion Box (2025) evidencia o alcance dessa transformação: 83% dos brasileiros afirmam usar cada vez menos dinheiro físico, e 87% utilizam o Pix como principal meio de pagamento. Esse dado não é apenas estatístico, é sociológico. Ele revela uma mudança nas formas de sociabilidade, na temporalidade da vida cotidiana e na percepção de valor. O ato de pagar, que antes implicava um gesto – abrir a carteira, escolher a nota, entregar o troco – torna-se instantâneo e silencioso. As transações se aceleram, mas também se desumanizam. As relações econômicas, antes mediadas pela presença física, tornam-se mediadas por interfaces digitais, e com isso, a própria noção de confiança desloca-se: confiamos menos nas pessoas e mais nos sistemas.
Há também riscos sociais e políticos. Uma sociedade sem dinheiro físico é uma sociedade em que toda transação é rastreável. Isso amplia o controle, mas reduz o anonimato e a autonomia. Para os milhões de brasileiros que ainda vivem à margem do sistema bancário, o dinheiro físico é não apenas um meio de pagamento, mas um meio de existência. Ele permite circular, comprar, vender e participar da vida econômica sem intermediações. Quando o dinheiro físico desaparece, parte da população desaparece com ele, expulsa para fora do sistema digital.
Do ponto de vista sociológico, a questão central é compreender como essa transformação afeta o tecido das relações sociais. O dinheiro, como observa Karl Marx em O Capital, é uma forma de mediação social que transforma as relações humanas em relações entre coisas. Na era digital, essa mediação torna-se ainda mais opaca, pois agora as “coisas” são dados, algoritmos e fluxos invisíveis. A economia torna-se um sistema de signos autorreferenciais, em que o valor já não se ancora no trabalho, mas na informação. A moeda, que antes representava o produto da força humana, passa a representar o produto da codificação tecnológica.
Ao mesmo tempo, Maurizio Lazzarato, em O governo do homem endividado, mostra que a financeirização da vida cria sujeitos permanentemente endividados, dependentes de crédito, cartões e limites. Nessa lógica, o pagamento instantâneo e a ausência de cédulas físicas criam uma ilusão de poder de compra, mas reforçam a submissão às estruturas financeiras. A liberdade de consumir se confunde com a servidão ao crédito.
Essa revolução digital do dinheiro tem, portanto, um duplo rosto: de um lado, traz eficiência, segurança e modernidade; de outro, corrói formas tradicionais de convivência, desmaterializa a experiência social do valor e ameaça a soberania simbólica do Estado. A moeda é um dos pilares da identidade nacional porque traduz em valor comum a confiança coletiva. Quando ela se torna apenas um dado flutuante, essa confiança se desloca para fora das fronteiras, para servidores, plataformas e instituições que não respondem à lógica do interesse público.
O futuro sem dinheiro físico pode ser inevitável, mas ele não precisa ser cego. A sociologia deve olhar para esse fenômeno não como simples progresso técnico, mas como um processo de reconfiguração da vida social. Estudar o dinheiro é estudar o poder, a confiança e o modo como as pessoas se relacionam. O desafio está em garantir que a inovação digital não apague a dimensão simbólica e política da moeda. O dinheiro, afinal, sempre foi, e continuará sendo, um espelho da sociedade que o cria.
Novos surdos
A nossa sociedade corre o risco, devido aos audiovisuais, de emudecer, ou seja, de haver cada vez mais uma minoria com grande capacidade para falar e uma maioria crescente limitada a ouvir, não entendendo sequer muito bem o que escuta.
José Saramago
José Saramago
Gaza: o frágil fim de uma guerra que ainda não acabou
O cessar-fogo entre Israel e o Hamas trouxe um alívio tático, mas não uma solução estratégica. Gaza permanece o epicentro da instabilidade regional — um espelho das contradições do sistema internacional e da fadiga moral de um mundo incapaz de sustentar a paz que proclama. A trégua interrompeu o ciclo imediato de violência, mas não alterou as causas estruturais do conflito: a ausência de confiança, a fragmentação política palestiniana e o impasse entre segurança e soberania.
A chamada “vitória diplomática” resulta, em larga medida, de uma exaustão coletiva. O prolongamento da guerra provocou desgaste interno em Israel, colapso humanitário em Gaza e crescente pressão internacional por uma pausa. A trégua mediada por Washington, Cairo, Doha e Bruxelas foi menos um avanço político do que um travão de emergência — uma suspensão do horror, não o início da paz.
Os desafios do pós-guerra são múltiplos e interdependentes: desmilitarizar o Hamas, retirar as forças israelitas, reconstruir o território e restabelecer uma autoridade política legítima. Cada um desses passos exige coordenação internacional e um compromisso sustentado — algo que, historicamente, tem faltado ao processo de paz no Médio Oriente.
A desmilitarização do Hamas é o ponto mais sensível. O grupo consolidou-se como uma entidade híbrida — simultaneamente militar, religiosa e administrativa —, preenchendo o vazio deixado por um Estado palestiniano inexistente. Um desarmamento total, sem um plano alternativo de governação e apoio social, seria politicamente inviável e socialmente arriscado. A única via possível seria um processo faseado, supervisionado por organismos internacionais, com uma forte componente de apoio humanitário e de reconstrução institucional.
A retirada das forças israelitas representa outro dilema estratégico. Israel argumenta que a permanência militar é necessária para evitar novos ataques, mas essa presença prolongada alimenta a perceção de ocupação e mina qualquer possibilidade de reconciliação. Uma retirada abrupta, por outro lado, criaria um vazio de poder que poderia precipitar o caos. O equilíbrio passa por uma saída gradual, condicionada a garantias multilaterais de segurança — um modelo que exige um bem escasso na região: confiança.
A questão da liderança em Gaza é igualmente crítica. O Hamas, enfraquecido e deslegitimado, perdeu espaço político. A Autoridade Palestiniana, dominada por Mahmoud Abbas, carece de credibilidade e de ligação real à população local. A proposta de uma administração transitória sob tutela da ONU e da Liga Árabe é vista como uma solução de curto prazo, ainda sem consenso. Sem legitimidade política, a reconstrução corre o risco de se tornar uma mera operação logística, sem impacto social duradouro.
No terreno, a devastação é quase total. A infraestrutura civil colapsou: energia, saneamento, hospitais e escolas foram destruídos. Estima-se que a recuperação ultrapasse os 50 mil milhões de dólares e demore décadas. Mas a reconstrução não será apenas um esforço de engenharia; será um teste à capacidade de ação governativa global. A transparência na gestão dos fundos e a coordenação entre doadores internacionais determinarão se Gaza se reerguerá como território viável ou permanecerá dependente da ajuda externa.
O papel dos Estados Unidos nesta nova fase é central. A postura de Donald Trump, que apoiou um acordo baseado nas resoluções da ONU e aceitou mediadores árabes, representa uma inversão tática face ao seu discurso anterior. É um gesto pragmático, talvez calculado, mas que revela o reconhecimento de que mesmo o poder unipolar necessita de alianças regionais para sustentar a estabilidade. Netanyahu, por sua vez, enfrenta um dilema interno: equilibrar as exigências da segurança com a crescente erosão do apoio popular.
Gaza é hoje mais do que uma crise humanitária — é um teste aos limites da diplomacia contemporânea. A guerra revelou a incapacidade das potências de conciliar princípios morais com interesses estratégicos e expôs a fragilidade das instituições internacionais. Mostrou também que a paz, quando reduzida a cálculo político, deixa de ser um ideal e torna-se um expediente.
O futuro do Médio Oriente dependerá menos de tratados e mais de vontade política. Nenhuma reconstrução será sustentável sem um pacto mínimo de justiça — territorial, social e histórica. O verdadeiro desafio não é militar nem financeiro, mas ético: determinar se o século XXI será capaz de produzir uma paz que não seja apenas a pausa entre duas guerras.
Gaza simboliza essa encruzilhada. A forma como o mundo responderá à sua destruição dirá mais sobre a civilização contemporânea do que sobre o próprio conflito. Porque, se voltar a cair, não tombará sozinha — arrastará consigo a ilusão de que a humanidade ainda é capaz de aprender com o sofrimento que semeia.
A chamada “vitória diplomática” resulta, em larga medida, de uma exaustão coletiva. O prolongamento da guerra provocou desgaste interno em Israel, colapso humanitário em Gaza e crescente pressão internacional por uma pausa. A trégua mediada por Washington, Cairo, Doha e Bruxelas foi menos um avanço político do que um travão de emergência — uma suspensão do horror, não o início da paz.
Os desafios do pós-guerra são múltiplos e interdependentes: desmilitarizar o Hamas, retirar as forças israelitas, reconstruir o território e restabelecer uma autoridade política legítima. Cada um desses passos exige coordenação internacional e um compromisso sustentado — algo que, historicamente, tem faltado ao processo de paz no Médio Oriente.
A desmilitarização do Hamas é o ponto mais sensível. O grupo consolidou-se como uma entidade híbrida — simultaneamente militar, religiosa e administrativa —, preenchendo o vazio deixado por um Estado palestiniano inexistente. Um desarmamento total, sem um plano alternativo de governação e apoio social, seria politicamente inviável e socialmente arriscado. A única via possível seria um processo faseado, supervisionado por organismos internacionais, com uma forte componente de apoio humanitário e de reconstrução institucional.
A retirada das forças israelitas representa outro dilema estratégico. Israel argumenta que a permanência militar é necessária para evitar novos ataques, mas essa presença prolongada alimenta a perceção de ocupação e mina qualquer possibilidade de reconciliação. Uma retirada abrupta, por outro lado, criaria um vazio de poder que poderia precipitar o caos. O equilíbrio passa por uma saída gradual, condicionada a garantias multilaterais de segurança — um modelo que exige um bem escasso na região: confiança.
A questão da liderança em Gaza é igualmente crítica. O Hamas, enfraquecido e deslegitimado, perdeu espaço político. A Autoridade Palestiniana, dominada por Mahmoud Abbas, carece de credibilidade e de ligação real à população local. A proposta de uma administração transitória sob tutela da ONU e da Liga Árabe é vista como uma solução de curto prazo, ainda sem consenso. Sem legitimidade política, a reconstrução corre o risco de se tornar uma mera operação logística, sem impacto social duradouro.
No terreno, a devastação é quase total. A infraestrutura civil colapsou: energia, saneamento, hospitais e escolas foram destruídos. Estima-se que a recuperação ultrapasse os 50 mil milhões de dólares e demore décadas. Mas a reconstrução não será apenas um esforço de engenharia; será um teste à capacidade de ação governativa global. A transparência na gestão dos fundos e a coordenação entre doadores internacionais determinarão se Gaza se reerguerá como território viável ou permanecerá dependente da ajuda externa.
O papel dos Estados Unidos nesta nova fase é central. A postura de Donald Trump, que apoiou um acordo baseado nas resoluções da ONU e aceitou mediadores árabes, representa uma inversão tática face ao seu discurso anterior. É um gesto pragmático, talvez calculado, mas que revela o reconhecimento de que mesmo o poder unipolar necessita de alianças regionais para sustentar a estabilidade. Netanyahu, por sua vez, enfrenta um dilema interno: equilibrar as exigências da segurança com a crescente erosão do apoio popular.
Gaza é hoje mais do que uma crise humanitária — é um teste aos limites da diplomacia contemporânea. A guerra revelou a incapacidade das potências de conciliar princípios morais com interesses estratégicos e expôs a fragilidade das instituições internacionais. Mostrou também que a paz, quando reduzida a cálculo político, deixa de ser um ideal e torna-se um expediente.
O futuro do Médio Oriente dependerá menos de tratados e mais de vontade política. Nenhuma reconstrução será sustentável sem um pacto mínimo de justiça — territorial, social e histórica. O verdadeiro desafio não é militar nem financeiro, mas ético: determinar se o século XXI será capaz de produzir uma paz que não seja apenas a pausa entre duas guerras.
Gaza simboliza essa encruzilhada. A forma como o mundo responderá à sua destruição dirá mais sobre a civilização contemporânea do que sobre o próprio conflito. Porque, se voltar a cair, não tombará sozinha — arrastará consigo a ilusão de que a humanidade ainda é capaz de aprender com o sofrimento que semeia.
As coisas desimportantes
O tempo é de grandes manchetes. Uma aposta, ainda controversa, na paz do Oriente Médio. Uma guerra de tarifas entre Estados Unidos e China. A instabilidade política na Europa. Enquanto isso, bem longe das primeiras páginas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai a Roma e fala da fome no mundo. Fora de sintonia ou muito antenado?
O discurso aconteceu na cerimônia de comemoração dos 80 anos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), na capital italiana. Poucas horas antes da assinatura do acordo de cessar-fogo em Gaza, com a presença do presidente americano Donald Trump. Para onde, é claro, se dirigiram todos os holofotes.
Pode ser que acordo abra o caminho a uma paz duradoura no Oriente Médio. O retorno de reféns israelenses a Tel Aviv e a libertação de prisioneiros palestinos, recebidos com festa em Gaza, pelo menos reduziram o alto grau de tensão na região. Embora, é claro, existam pelo caminho ainda muitos pontos de interrogação.
Mais ao leste, a China informou em alto e bom som que estará pronta para reagir a uma nova rodada de elevações de tarifas por parte de Washington. Apenas outro capítulo de uma longa novela que promete fortes emoções na disputa pela hegemonia econômica do mundo.
A Europa, amedrontada, acompanha passo a passo a longeva guerra na Ucrânia. E procura no rearmamento uma resposta ao expansionismo russo.
Guerras sempre houve. Conflitos, econômicos ou militares, são o arroz de festa da História. E as rivalidades atraem mesmo atenções. Seja pela torcida por um dos lados, seja pela ameaça que essas disputas representam à estabilidade do planeta.
Mas as disputas e as guerras não são as únicas ameaças a essa estabilidade. Existem questões que não se limitam a uns contra outros, mas que afetam grandes partes da humanidade – especialmente nas áreas mais pobres do planeta.
Entre essas questões estão a crescente desigualdade global, a persistência da pobreza, a fome, a crise no meio ambiente e a mudança climática. Segundo a velha visão realista, questões sempre menores em relação às disputas pelo poder em um mundo caótico.
Assim será? Como observou Lula em Roma, usando números da própria Organização das Nações Unidas, o mundo gasta atualmente cerca de US$ 2,7 trilhões em armas. E com US$ 315 bilhões seria possível erradicar a fome no planeta. Ou 12% daquele total.
Com esses US$ 315 bilhões, prosseguiu o presidente brasileiro, seria possível garantir três refeições diárias a 673 milhões de pessoas que, segundo a FAO, experimentam a insegurança alimentar. Aproximadamente o dobro da população dos Estados Unidos. Ou quase metade da população da China.
E como conseguir esse dinheiro? Um imposto global de 2% sobre os super-ricos, nos cálculos expostos pelo presidente, seria capaz de arrecadar o montante necessário. Imposto visto por muitos economistas como inviável e ineficaz. Ou não?
“A fome é irmã da guerra, seja ela travada com armas e bombas ou com tarifas e subsídios”, disse Lula durante seu discurso em Roma. “Conflitos armados, além do sofrimento humano e da destruição da infraestrutura, desorganizam cadeias de insumos e alimentos. Barreiras e políticas protecionistas de países ricos desestruturam a produção agrícola no mundo em desenvolvimento”, completou.
Segundo a leitura do presidente brasileiro, favorável a uma reestruturação da ordem global, da “tragédia em Gaza” à paralisia da Organização Mundial do Comércio, em tempos de armas tarifárias, “a fome tornou-se sintoma do abandono das regras e instituições multilaterais”.
Instituições que estarão novamente à prova em Belém, dentro de um mês, durante a realização da COP 30, onde mais uma vez estará em debate a crise climática. Crise, é bom lembrar, que tem como principais responsáveis históricos os países mais ricos do planeta – e não aqueles que sentirão mais de perto os efeitos da mudança do clima.
Ao longo da última semana, em Brasília, no Festival Curicaca de inovação e tecnologia, promovido pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, empresários, especialistas, acadêmicos e agentes governamentais detalharam planos sobre como o Brasil pode, ao mesmo tempo, combater os desafios da pobreza e da mudança climática.
Se o evento de Roma terá sido eclipsado por outros temas, o festival tampouco recebeu muita atenção. Ali, de fato, não se esboçaram grandes soluções para o planeta. Mas se relataram pequenos passos para garantir maior dignidade às pessoas mais pobres e mais segurança ao meio ambiente, além de uma aposta na economia verde.
Pequenos exemplos como os de grupos de produtores de açaí, cupuaçu e castanha, na Amazônia, que começam a operar mini refinarias do tamanho de um contêiner capazes de processar antigos resíduos e transformá-los em combustíveis, fertilizantes ou plástico.
“O Brasil tem o potencial de ser um dos grandes líderes da agenda da economia verde no mundo”, observou, durante o evento, a economista Laura Carvalho, diretora de Prosperidade Econômica e Climática da Fundação Open Society.
“Outros países estão fazendo suas políticas industriais verdes”, recordou Laura. “Se a gente não fizer o mesmo rapidamente, vai perder muitas oportunidades”.
Talvez soe demasiadamente ingênuo falar de fome, pobreza, florestas e clima quando estão sobre a mesa grandes e perigosas disputas globais, capazes de levar o planeta a um pouco mais perto do precipício.
A busca de uma solução para as guerras pode e deve, naturalmente, permanecer no centro das atenções globais, pelo seu próprio potencial de desestabilização e destruição. Mas não sozinha. Os grandes desafios sociais e ambientais precisam forjar seu caminho em direção ao topo da agenda global.
Como lembrava o poeta mato-grossense Manoel de Barros, às vezes é preciso trocar as nossas lentes, para melhor enxergar o mundo.
“Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes”, escreveu Barros. “Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis”.
O discurso aconteceu na cerimônia de comemoração dos 80 anos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), na capital italiana. Poucas horas antes da assinatura do acordo de cessar-fogo em Gaza, com a presença do presidente americano Donald Trump. Para onde, é claro, se dirigiram todos os holofotes.
Pode ser que acordo abra o caminho a uma paz duradoura no Oriente Médio. O retorno de reféns israelenses a Tel Aviv e a libertação de prisioneiros palestinos, recebidos com festa em Gaza, pelo menos reduziram o alto grau de tensão na região. Embora, é claro, existam pelo caminho ainda muitos pontos de interrogação.
Mais ao leste, a China informou em alto e bom som que estará pronta para reagir a uma nova rodada de elevações de tarifas por parte de Washington. Apenas outro capítulo de uma longa novela que promete fortes emoções na disputa pela hegemonia econômica do mundo.
A Europa, amedrontada, acompanha passo a passo a longeva guerra na Ucrânia. E procura no rearmamento uma resposta ao expansionismo russo.
Guerras sempre houve. Conflitos, econômicos ou militares, são o arroz de festa da História. E as rivalidades atraem mesmo atenções. Seja pela torcida por um dos lados, seja pela ameaça que essas disputas representam à estabilidade do planeta.
Mas as disputas e as guerras não são as únicas ameaças a essa estabilidade. Existem questões que não se limitam a uns contra outros, mas que afetam grandes partes da humanidade – especialmente nas áreas mais pobres do planeta.
Entre essas questões estão a crescente desigualdade global, a persistência da pobreza, a fome, a crise no meio ambiente e a mudança climática. Segundo a velha visão realista, questões sempre menores em relação às disputas pelo poder em um mundo caótico.
Assim será? Como observou Lula em Roma, usando números da própria Organização das Nações Unidas, o mundo gasta atualmente cerca de US$ 2,7 trilhões em armas. E com US$ 315 bilhões seria possível erradicar a fome no planeta. Ou 12% daquele total.
Com esses US$ 315 bilhões, prosseguiu o presidente brasileiro, seria possível garantir três refeições diárias a 673 milhões de pessoas que, segundo a FAO, experimentam a insegurança alimentar. Aproximadamente o dobro da população dos Estados Unidos. Ou quase metade da população da China.
E como conseguir esse dinheiro? Um imposto global de 2% sobre os super-ricos, nos cálculos expostos pelo presidente, seria capaz de arrecadar o montante necessário. Imposto visto por muitos economistas como inviável e ineficaz. Ou não?
“A fome é irmã da guerra, seja ela travada com armas e bombas ou com tarifas e subsídios”, disse Lula durante seu discurso em Roma. “Conflitos armados, além do sofrimento humano e da destruição da infraestrutura, desorganizam cadeias de insumos e alimentos. Barreiras e políticas protecionistas de países ricos desestruturam a produção agrícola no mundo em desenvolvimento”, completou.
Segundo a leitura do presidente brasileiro, favorável a uma reestruturação da ordem global, da “tragédia em Gaza” à paralisia da Organização Mundial do Comércio, em tempos de armas tarifárias, “a fome tornou-se sintoma do abandono das regras e instituições multilaterais”.
Instituições que estarão novamente à prova em Belém, dentro de um mês, durante a realização da COP 30, onde mais uma vez estará em debate a crise climática. Crise, é bom lembrar, que tem como principais responsáveis históricos os países mais ricos do planeta – e não aqueles que sentirão mais de perto os efeitos da mudança do clima.
Ao longo da última semana, em Brasília, no Festival Curicaca de inovação e tecnologia, promovido pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, empresários, especialistas, acadêmicos e agentes governamentais detalharam planos sobre como o Brasil pode, ao mesmo tempo, combater os desafios da pobreza e da mudança climática.
Se o evento de Roma terá sido eclipsado por outros temas, o festival tampouco recebeu muita atenção. Ali, de fato, não se esboçaram grandes soluções para o planeta. Mas se relataram pequenos passos para garantir maior dignidade às pessoas mais pobres e mais segurança ao meio ambiente, além de uma aposta na economia verde.
Pequenos exemplos como os de grupos de produtores de açaí, cupuaçu e castanha, na Amazônia, que começam a operar mini refinarias do tamanho de um contêiner capazes de processar antigos resíduos e transformá-los em combustíveis, fertilizantes ou plástico.
“O Brasil tem o potencial de ser um dos grandes líderes da agenda da economia verde no mundo”, observou, durante o evento, a economista Laura Carvalho, diretora de Prosperidade Econômica e Climática da Fundação Open Society.
“Outros países estão fazendo suas políticas industriais verdes”, recordou Laura. “Se a gente não fizer o mesmo rapidamente, vai perder muitas oportunidades”.
Talvez soe demasiadamente ingênuo falar de fome, pobreza, florestas e clima quando estão sobre a mesa grandes e perigosas disputas globais, capazes de levar o planeta a um pouco mais perto do precipício.
A busca de uma solução para as guerras pode e deve, naturalmente, permanecer no centro das atenções globais, pelo seu próprio potencial de desestabilização e destruição. Mas não sozinha. Os grandes desafios sociais e ambientais precisam forjar seu caminho em direção ao topo da agenda global.
Como lembrava o poeta mato-grossense Manoel de Barros, às vezes é preciso trocar as nossas lentes, para melhor enxergar o mundo.
“Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes”, escreveu Barros. “Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis”.
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