segunda-feira, 3 de junho de 2019

Brasil nas cataratas


O drama da pobreza

Os mais pobres geralmente percebem melhor os custos de algo. Alguém com menos dinheiro é mais propenso a ir a uma loja mais distante se puder economizar R$ 100 na compra de um celular ou uma TV, enquanto as pessoas com mais dinheiro em geral preferem pagar mais caro a se deslocar. As dificuldades financeiras aumentam nosso foco no valor material das coisas, ajudando a extrair o máximo do gasto.

Mas isso se inverte quando as decisões são de longo prazo. Os mais pobres geralmente ignoram os juros mais altos nos empréstimos e preferem parcelar uma compra, muitas vezes pagando mais pelo produto, a economizar o dinheiro e obter um desconto à vista. E, além disso, guardam menos dinheiro, ficando mais expostos a imprevistos. O dano às finanças acaba sendo muito maior.


Existem explicações comportamentais para isso, segundo três psicólogos e professores, Mitchell J. Callan (Essex, Inglaterra), Will Shead (Mount Saint Vincent, Canadá) e James Olson (Ontário, Canadá). Em um artigo publicado em 2011 no Journal of Personality and Social Psychology, eles demonstram que os mais pobres tendem a ser mais imediatistas.

Em um experimento, 71 estudantes informavam sobre suas finanças. Alguns foram convencidos de que seu crédito havia sido mal avaliado em comparação com os demais participantes. Todos, então, tinham de escolher entre aceitar 500 dólares canadenses (C$) naquele momento ou C$ 1 mil depois de um certo prazo, de uma semana a dois anos.

Os pesquisadores ainda apresentaram seis cenários a cada participante. Uma opção, por exemplo, era entre receber C$ 250 naquele dia ou C$ 500 em uma semana. Outra, C$ 500 no dia ou C$ 750 em um mês. O normal seria escolher o que pagasse mais. Mas, entre os que achavam ter uma nota de crédito pior, o percentual de quem preferia o pagamento imediato era 15% maior que no outro grupo, mesmo quando esperar uma semana significava receber o dobro.

Quando é preciso se preocupar com o que se vai comer ou como pagar o aluguel, as outras necessidades são menos urgentes. O foco na sobrevivência, explica o estudo, cria uma sobrecarga mental e dificulta planejar o futuro. Os mais pobres não conseguem dar atenção a outras decisões, que poderiam tirá-los da pobreza.

É como se eles decidissem depois de uma noite sem dormir, explica outro artigo, publicado pelos economistas Anuj K. Shah, Eldar Shafir e Sendhil Mullainathan na revista Science em 2013. Em um experimento, 101 frequentadores de um shopping center foram separados por faixa de renda e responderam a questões como “Seu carro está com um barulho estranho e o conserto custará US$ xxx. Você pode pagar ou tentar a sorte e não pagar nada. O que decide?”.

Os preços variavam da condição “fácil”, um custo de US$ 1,50 pelo conserto, a “difícil”, US$ 1,5 mil. Essa diferença se refletiu no desempenho nos testes de pessoas com renda mais alta ou mais baixa. Ricos e pobres deram respostas iguais quando decidiam sobre um gasto mais baixo, mas o valor mais alto derrubou a performance dos mais pobres. Quase todo o foco estava no dilema de fazer ou não o gasto.

Algumas pessoas atribuem a pobreza às más decisões financeiras dos pobres. Os estudos mostram que não é verdade. A pobreza muitas vezes é resultado da dificuldade maior de fazer um planejamento. Algo que os programas de assistência deviam considerar.

Grande trunfo da gestão Bolsonaro é Ele: 'Deus'

Com o desemprego a pino, a recessão na espreita, a Educação em frangalhos, o Congresso convulsionado, o país dividido, com tudo isso, Jair Bolsonaro conserva o otimismo. Numa entrevista para argentino ver, o capitão disse para o jornal "La Nación" algo que vem repetindo com uma insistência própria dos que têm fé: "Eu tenho uma missão de Deus, vejo dessa maneira. Foi um milagre estar vivo e outro milagre ter ganho as eleições. Deus também tem me ajudado muito na escolha dos meus ministros."

A qualidade do ministério indica que Deus, embora ainda seja onipresente e onipotente, já não é full time. Mas o que importa é que Ele está no meio de nós. E Bolsonaro se dispõe a ajudá-lo. No momento, está empenhado em pacificar o país: "Sim, estou fazendo esforços. Não estou atacando nem buscando a divisão." A coisa poderia estar melhor. "Mas há gente que não gosta de mim mesmo sem me conhecer."

Bolsonaro convive em casa com um exemplo de que nada é impossível. A primeira-dama Michelle permanece rendida às qualidades do marido. Não se imagine que foi fácil convertê-la, pois muita gente perguntava na fase de namoro por que ela estava saindo com "esse monstro". Numa evidência da influência divina, o capitão se enche de júbilo: "Ela ainda está apaixonada por mim até hoje." Deus seja louvado!

Às claras, apenas o PSL e o Partido Novo apoiam o governo. Mas Bolsonaro, guiado por forças celestiais, enxerga uma maioria que os olhos não vêem: "Fui 28 anos deputado e nunca pedi cargos em troca de nada. Eu acompanhei tudo o que se passou, sem me envolver. Mudamos a maneira que o Executivo se relacionava com o Legislativo. E a maioria dos parlamentares apoia isso." Aleluia!

Por mal dos pecados, os entrevistadores argentinos não suprimiram de sua pauta perguntas sobre Flávio Bolsonaro, o primogênito do ungido. "Se fez algo mau, tem que pagar", disse o comissionado de Deus, antes de renovar sua crença: "Tenho confiança que ele não fez nada de mau." E quanto ao Fabrício Queiroz? "Pelas coisas que tenho ouvido dele. Ele tem que se explicar. Tem que ser ouvido."

Em verdade, Queiroz já foi ouvido. Ou lido, pois só concordou em "falar" com o Ministério Público por escrito. Não disse coisas edificantes. Admitiu que se apropriou de nacos dos contracheques dos assessores do gabinete de Flávio Bolsonaro. Mas teve pelo Zero Um uma consideração inaudita. Declarou que o filho do seu velho amigo não sabia de nada.

Embora já não confie em Queiroz, Bolsonaro acredita 100% no pedaço da versão dele que se refere à inapetência do filho para controlar o que se passava no seu próprio gabinete de deputado estadual. "Agora, por que interessa atacar meu filho?", pergunta o presidente. "Porque me desgasta", ele mesmo responde. "Não há dúvidas de que me desgasta."

Bem verdade que há outros deputados sob investigação. Mas o capitão atribui o interesse dos investigadores por Flávio à sua filiação. Com fé em Deus, não há de ser nada. "Meu filho responde por seus atos e está pronto para dar explicações. Até hoje não foi convocado a fazer."

Mesmo não sendo mais full time, o Todo-Poderoso sabe que o Ministério Público do Rio de Janeiro já convidou Flávio Bolsonaro para prestar esclarecimento. O senador preferiu entrar com três recursos judiciais para tentar bloquear as investigações. O risco que Bolsonaro corre é o de Deus pedir para ser convocado a prestar esclarecimentos.

O procurador selecionado para ouvir Deus adotaria um comportamento cerimonioso. "Há pecadores entre nós, Senhor. Mas não há ateus. Ninguém ousará duvidar da sua palavra." E Deus: "Mesmo que quisessem, não teriam como duvidar". O promotor, meio sem jeito: "Por que, Altíssimo?" O Pai Celeste, já um tanto impaciente: "Porque não tenho conta para ser rastreada pelo Coaf. E não trabalho com assessores. Ouvindo-me, conhecereis a verdade que vos libertará".

A ética na política

“A política como vocação”, clássico da ciência política, é o texto de uma conferência realizada por Max Weber em 1918, e publicado em 1919 na Alemanha. O sábio economista e jurista alemão trata a política como “o conjunto de esforços feitos visando à participação do poder ou a influenciar a decisão do poder, seja entre Estados, seja no interior de um único Estado”. Segundo ele, quem se mete com a política quer poder, seja para fins ideais, por interesses econômico-financeiros ou em busca de prestígio. Para que o poder exista, porém, é preciso que a sociedade aceite a dominação do Estado.

Há três formas de dominação no Estado moderno: a tradicional, que se fundamenta e se legitima no passado, pela tradição; o domínio exercido pelo carisma e se fundamenta em dons pessoais e intransferíveis do líder; e a exercida pela legalidade, com base em regras racionalmente criadas e fundamentado na competência. Nas democracias do Ocidente, essas formas de dominação aparecem simultaneamente, mas o carisma é o fator decisivo para a chegada ao poder. O líder carismático, porém, necessita de meios materiais e conhecimento administrativo para exercer seu domínio.


É nesse contexto que surge o “político profissional”, que Weber classifica entre os que “vivem para a política” e aqueles que “vivem da política”. Todo cidadão pode e deve participar da vida política, mas nem todos têm tempo disponível e recursos para isso. Por isso, “todo homem sério, que vive para uma causa, vive também dela”, mas isso não impede a diferenciação entre os que têm a política como “bem comum”e os que a veem como negócio.

Paralelamente à existência dos políticos, existe uma burocracia formada por funcionários e técnicos encarregados de operar a máquina do Estado. Por essa razão, além dos objetivos programáticos, se estabelece entre os políticos uma disputa pela ocupação de cargos e a distribuição de recursos do governo. Nessa dinâmica, surge ainda uma camada de dirigentes partidários formada a partir de critérios plutocráticos e que vão ocupar posições no governo ou na máquina partidária. Para Weber, essas são as bases potenciais de “uma tendência que leva à criação de uma casta de filisteus corruptos”.

No Brasil, onde não existe regulamentação do lobby, como nos Estados Unidos e alguns países da Europa, todos os políticos defendem o “bem comum”, ninguém assume a política como negócio, com exceção, talvez, da bancada ruralista, embora o patrimonialismo, o cartorialismo e o fisiologismo sejam marcas registradas da nossa cultura ibérica. Mesmo assim, no Estado brasileiro, foi possível constituir uma burocracia formada por “trabalhadores especializados, altamente qualificados e que se preparam, durante muito tempo, para o desempenho de sua tarefa profissional, sendo animados por um sentimento muito desenvolvido de honra corporativa, em que se realça o sentimento da integridade”.

A Operação lava-Jato é um tremendo choque entre os políticos profissionais e essa burocracia, que desnudou o lado escuro da nossa política como negócios. Disso resultou a crise ética dos grandes partidos e o tsunami eleitoral de 2018. Em parte, a eleição do presidente Jair Bolsonaro é resultado desse fenômeno. Entretanto, não existe democracia sem partidos nem políticos, o país não pode ser paralisado pela crise ética. Além disso, a política é a economia concentrada, ou seja, não existe sem o mundo dos negócios. Há que se reinventar a nossa política, sem jogar a criança fora com a água da bacia, mas está difícil porque predomina a antipolítica como sentimento popular.

É aí que entra a discussão sobre a ética das convicções e a ética da responsabilidade proposta por Weber, ao examinar a relação entre o protestantismo e o capitalismo. A ética utilizada para culpar o passado pelos próprios fracassos é vulgar e limitada, como a do homem que justifica o abandono da esposa porque ela não era digna do seu amor. A relação entre política e religião é apartada: “O cristão cumpre seu dever segundo os mandamentos bíblicos e, “quanto aos resultados, confia em Deus”. Diferentemente, na ética de responsabilidade, “sempre devemos responder pelas consequências previsíveis de nossos atos”. A “política se faz usando a cabeça”, não pode estar desconectada da correlação de forças e das probabilidades.

Weber escreveu, às vésperas da derrocada da República de Weimar, que levou a Alemanha à hiperinflação e Hitler, ao poder. Isso não impediu que o baixo astral com a derrota na I Guerra Mundial e o colapso econômico fomentasse o surgimento de autores “teoconservadores”, que influenciaram o nazifascismo e agora estão sendo relidos nos Estados Unidos e na Europa, por católicos conservadores, protestantes evangélicos e judeus ortodoxos. Com base em valores religiosos anti-iluministas, querem mudar o curso da história com os olhos virados para trás, em busca do “Éden” perdido pela democracia liberal, com a globalização e o multilateralismo.

Paisagem brasileira

Paisagem (1943), Edgar Walter

O planeta versus Bolsonaro

Não me sinto obrigado a escrever sobre meio ambiente nesta semana. Trato do assunto a maior parte do tempo. Este ano, estamos diante de algo histórico para o Brasil e, de uma certa forma, para o planeta.

Pela primeira vez, em todo o período democrático, temos um governo que é cético a respeito do aquecimento global e acha que o Brasil tem muito ainda a desmatar. Os fatos se sucedem em várias frentes. Na mais ampla delas, a do aquecimento, o governo o considera uma invenção do marxismo globalizante.

Essa associação entre o marxismo e o meio ambiente contribui para retardar a tomada de consciência de muita gente. Não consigo entender como se sustenta. Quem conheceu os países do Leste Europeu, onde o marxismo era a ideologia oficial, percebe que comunismo teve um papel devastador.

Não só aconteceu o desastre de Chernobyl: muitas usinas nucleares do período ainda são um dado preocupante para toda a Europa.

Associar o marxismo à luta ambiental é reduzir sua dimensão. Como correspondente na Europa, cobri uma manifestação dos skin heads em Dresden. Eram simpáticos ao nazismo, mas colocavam o meio ambiente como uma de suas bandeiras, ao lado de expulsar os estrangeiros e outras barbaridades.

O tema é tão forte que ultrapassa divisões ideológicas e partidárias. No entanto, o governo parece caminhar para essa tese singular de que meio ambiente é algo da esquerda; logo, é preciso desmontar a política ambiental que o Brasil construiu com seus parceiros como a Noruega e a Alemanha.


Para começar, demitiu a direção do Fundo Amazônia, financiado por aqueles dois países. Agora, quer usar dinheiro do Fundo para indenizar proprietários, alguns deles possivelmente grileiros. Se o Fundo não tivesse resultados positivos, os próprios noruegueses e alemães já teriam reclamado. No entanto, estavam satisfeitos.

Bolsonaro insiste também em acabar com a Estacão Ecológica de Tamoios para transformar a região numa Cancún brasileira. Acha que pode fazer isso por decreto. Vai se dar mal, se tentar. É ilegal e, além disso, pateticamente inadequado. Espero que seus eleitores compreendam isto. Angra não é Cancún, o mar é diferente; a geografia, as condições sociais, a presença de usinas nucleares, tudo desaconselha.

Não temo a destruição do planeta, como nos advertem nos hotéis para evitar troca excessiva de toalhas. O planeta continua, não podemos acabar com ele, mas apenas com as condições para a existência humana.

Ainda não se avaliou o impacto das posições de Bolsonaro em nossa imagem externa. O Brasil está se isolando. Em alguns lugares como Nova York, o prefeito faz campanha contra sua presença.

Em outros, como Dallas, o prefeito, mais ponderado, assim como o presidente do Chile, limita-se a reconhecer que Bolsonaro teve 57 milhões de votos, mas acentua que não concorda com suas ideias.

O próprio “Financial Times”, um veículo conservador, levantou a hipótese de Bolsonaro se tornar uma espécie de pária do liberalismo.

Não seria bom para ele nem para nós. As pessoas se acostumaram a contar com o Brasil no esforço de preservação, a senti-lo como uma parte integrante do planeta, decisiva para o futuro comum.

Nesta semana do meio ambiente, os governos de Goiás e Mato Grosso lançam um grande programa de recuperação do Rio Araguaia. Haverá um ato na divisa dos dois estados.

Bolsonaro parece que vai comparecer, incluindo, pelo menos, a recuperação de um dos mais importantes rios brasileiros na sua agenda. É uma oportunidade que tem de atenuar sua hostilidade contra o meio ambiente, sua admiração por um tipo de progresso empobrecedor.

Ao compreender a importância das águas, que não podem ser substituídas por Coca-Cola, deveria se dar conta também do absurdo de transformar uma estação ecológica em Cancún.

Ajudaria também a romper o isolamento se ele fosse mais discreto no seu humor. A história de dizer que tudo no Japão é pequeno constrange os mais antigos, que ainda se lembram desse tipo de piada.

Ela pode ter alguma graça entre os frequentadores de uma Cancún construída sobre as frágeis ilhotas de Angra, à sombra das usinas nucleares. Apenas confirma sua fixação no órgão genital masculino e aumenta o medo de que a ignorância realmente vai esmagar o conhecimento humano.
Fernando Gabeira

Normalidade da irracionalidade

Nós estamos vivendo a anormalidade como normalidade. (...)
 
Que presidente é esse que não tem noção nenhuma do que é o cargo, não tem compostura
Ignácio de Loyola Brandão

Quem fala demais...

Revigorado pelas manifestações em seu favor e deixando o digladio com os contras para o seu ministro da Educação, Abraham Weintraub, o presidente Jair Bolsonaro se animou. Na semana passada, reuniu-se com os poderes Legislativo e Judiciário, fez visita supresa ao Congresso, elogiou parlamentares. Pregou a cartilha das privatizações, e, no melhor estilo popularesco, foi para a rua, reservando parte da agenda em Goiás para um almoço “improvisado” com caminhoneiros.

Pessoalmente, pode ter marcado gols, com chances até de barrar a queda contínua de sua aprovação no pós-posse. Teria sido ainda melhor para ele, para o seu governo e para o país, se a empolgação não o fizesse falar demais.


Com a língua solta, abriu flancos perigosos como o da exaltação ao presidente do Supremo, Dias Toffoli, que Bolsonaro passou, sem qualquer pudor, a tratar como um aliado: “é muito bom nós termos aqui a Justiça ao nosso lado”. Por ignorância ou oportunismo, o capitão desprezou o fundamental: à Justiça não é dada a opção de ter lado. Ainda que Toffoli, o garoto de ouro do ex Lula e seu novo melhor amigo, e o próprio presidente façam pouco caso disso.

Abandonando os regulares xingamentos à imprensa, Bolsonaro atendeu jornalistas e até falou com exclusividade à revista Veja. Fez pouco do seu partido, o PSL, que para ser formado rapidamente “pegou qualquer um”. Uma desfeita aos deputados “inexperientes”, que só chegaram lá pelo apoio do candidato-presidente. Vinculou o fim da reeleição a uma reforma política que possa diminuir o número de parlamentares de 500 para 400, garantiu que vai vender os Correios. Simpático e por vezes brincalhão, até puxou as orelhas de seu guru por ele ter indicado Ricardo Vélez para a Educação sem conhecer o afilhado. “Pô, Olavo, você namorou pela internet?”

Sobre o filho Flávio, investigado pelo Ministério Público do Rio por suspeita de enriquecimento ilícito, tergiversou. Escolheu se portar como um pai preocupado e perseguido. Não negou a amizade com Fabrício Queiroz, mas, ao dizer que desconhecia os rolos do ex-assessor, usou o mesmo expediente do ex Lula, prorrogando a suada república do “eu não sabia”. Algo pouco digno para alguém que rechaça antecessores e as práticas da “velha política”.

Na sexta-feira, voltou a soltar impropriamente o verbo.

No almoço com os caminhoneiros, vangloriou-se de ter beneficiado a categoria no decreto pró-armas, estimulando-os a mandar bala. “Se tiver arma de fogo é para usar”, disse. Depois, assegurou que daqui a pouco as armas, hoje caras, vão cair de preço. A reivindicação era por mais asfalto e mais policiamento. Mas, sem oferecer qualquer alternativa diante das reclamações pela falta de infraestrutura que destrói pneus, motores, boleias, e pelos roubos de carga, Bolsonaro vaticinou: “quanto mais arma, mais segurança”.

No mesmo dia, durante um evento da Assembleia de Deus em Goiânia, defendeu a assunção de um ministro evangélico ao Supremo. Ciente do espanto que a afirmativa provocaria, o presidente lançou o verme e saiu-se com a vacina: “não me venha a imprensa dizer que quero misturar a Justiça com religião”.

Pode até vir a não fazê-lo, embora pareça querer.

Reincidente no erro, insistiu em comprometer a indicação que fará no ano que vem para o STF. Já meteu os pés pelas mãos ao confessar que barganhara a vaga futura para convencer o ex-juiz Sérgio Moro, que não é evangélico, a integrar o governo. Agora, acenou para os seus amigos de fé. Irresponsabilidade dupla.

Animado com as manifestações em seu favor, Bolsonaro falou muito e mais do que devia sobre tudo. Mas ficou mudo diante das estultices do seu ministro da Educação. Além do desrespeito a professores e alunos, que ele considera frágeis e manipuláveis, a cena patética do vídeo “Singing in the rain”, no qual Weintraub aparece rodando um guarda-chuva com a bandeira nacional ao fundo, tem eloquência própria. Mostrou-se pior ou no mínimo igual a Vélez.

Sobre isso, Bolsonaro nada disse, ficou calado. Um silêncio embalado por outra crença, a ideológica. A mesma chaga que, vinda do outro polo, ele jurava combater.

Reforma na faca

Quando foi questionado pelo apresentador Danilo Gentili a respeito da viabilidade da economia pretendida por Paulo Guedes com a reforma da Previdência, de R$ 1 trilhão em dez anos, Jair Bolsonaro respondeu antes com uma pausa, acompanhada de uma risada irônica. O que quer que dissesse depois, estava dada a resposta.

A proposta de emenda da reforma entrou na reta final de tramitação na comissão especial da Câmara que analisa seu mérito. Depois de virar tema de última hora da manifestação pró-governo do último domingo, a ideia é que seja acelerada para chegar ao plenário ainda neste semestre.

A hora, portanto, é de todo mundo querer arrancar um pedaço do texto, de modo a aliviar o sacrifício para esta ou aquela parcela da população.

A começar pela família presidencial. Com orgulho incontido, Bolsonaro disse nesta sexta-feira que a primeira-dama, Michelle, pediu, e ele levou adiante, que os deficientes leves e moderados sejam tirados da nova regra de pensão por morte, mais restritiva, proposta na reforma.

O impacto fiscal da retirada não é relevante. Mas é simbólico que o presidente dê aval, antes de qualquer avaliação técnica, a um pedido doméstico e o enderece diretamente ao Ministério da Economia, quando a reforma já está nas mãos do Parlamento para ser emendada.

Foram apresentadas mais de 270 emendas ao texto original do governo, aquele cujo impacto foi previsto inicialmente em R$ 1 trilhão, e depois revisto para R$ 1,2 trilhão.

Não se sabe quantas e quais dessas alterações serão incorporadas pelo relator, Samuel Moreira (PSDB-SP), mas já é possível antecipar que itens como o Benefício de Prestação Continuada e a aposentadoria rural devem ser retirados da proposta, com impacto aí, sim, bastante expressivo sobre o cômputo geral do impacto da reforma.

Outro dilema, de ordem mais política que imediatamente fiscal, se coloca diante do relator: o de retirar ou não o artigo que estende automaticamente a Estados e municípios as novas regras para os regimes próprios de Previdência. Embora seja a solução que mais bem equaciona o rombo fiscal dos entes federativos, a ideia é rechaçada por deputados e senadores, que não querem ficar com o desgaste de aprovar medida impopular para os servidores de suas bases eleitorais, poupando governadores, prefeitos, deputados estaduais e vereadores de sua própria cota de sacrifício.

Por fim, há o PL, expoente-raiz do auto-dissolvido Centrão, que apresentou proposta alternativa lipoaspirando pela metade a reforma e também sua economia, para algo como R$ 600 bilhões. É o projeto daqueles que cultivam em privado o postulado tornado público por Paulinho da Força: aprovar uma reforma que não seja robusta o suficiente para garantir a reeleição de Bolsonaro.

Assim, entre pedidos domésticos e cálculos eleitorais, a reforma entra em sua fase decisiva. O secretário especial da Previdência, Rogério Marinho, mantém o discurso otimista. “A maioria da Casa introjetou a necessidade da reforma e de que ela tenha um impacto fiscal relevante. Claro que haverá uma adaptação, até porque este é o papel do Parlamento, mas eventuais concessões serão compensadas de outra forma”, disse ele à coluna.

Se no começo do ano a reforma era vista como o elixir para todos os males do País, a estagnação mostrada pelos números mais recentes da economia mostram que, mesmo com ela, a recuperação não será tão rápida nem tão simples.

Quanto mais ela for desidratada, no entanto, mais esse nó vai se tornando difícil de desatar. Seria bom que, do presidente aos deputados, todos se conscientizassem de que o momento não permite risos irônicos nem cálculos cínicos de resultado eleitoral e se empenhassem em aprovar uma reforma robusta e coerente.
Vera Magalhães