segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

O que deve e o que não pode

Certamente, não há humanidade. Tem sempre um grupo pequeno (ou, neste caso, muito pequeno) que vê diferente. Mas existe certamente consenso. A esmagadora maioria já concorda. Até onde a vista alcança. Até o limite do audível. No mundo real ou virtual. Em toda parte. Já faz muito tempo, alias. Todos concordam que a vida piorou muito nos últimos anos.

As razoes são muitas, variadas, diferentes. Inflação, corrupção, incompetência, qualidade de vida, desemprego, segurança... Enfim, seria possível encher paginas e (provavelmente a paciência do leitor) com o rosário de reclamações (ou constatações) que levam a conclusão coletiva de que a vida esta ruim para todos.

Não chega a ser um diagnostico. Isto exigiria determinar as causas e, em etapa seguinte, fazer o prognostico. E provavelmente, ai sim, não haveria consenso. Não surpreende. Principalmente diante da quantidade de saídas e propostas simplistas, quase primitivas que circulam por ai.

Talvez seja a ausência de surpresas a mais clara denuncia da baixa qualidade dos resultados dos nossos esforços coletivos em construir um país melhor. Enfim, não é a existência dos comportamentos indesejáveis que surpreende. É o fato de se repetirem. De serem generalizados. De serem resilientes ao extremo.

É tudo tão espalhado, generalizado, resistente ao combate, que já da para chamar de epidemia (ou, talvez mesmo de pandemia). Basta ver que são os mesmo crimes. Praticados pelos mesmos motivos. Envolvendo personagens comuns. E em um enredo cada vez mais abrangente, onde, já no meio de historia desinteressante, sobram culpados, faltam heróis.

Claro que é importante cumprir as leis a fazer justiça. Este é outro consenso. Mas talvez o mais importante (ou no mínimo tão importante quanto) fosse descobrir o que todos estamos coletivamente fazendo de errado para colhe reste resultado tenebroso.

O triste desfile diário nas noticias é também culpa e responsabilidade de cada um. É falha coletiva aproveitada por gente que, sendo incapazes de tudo, são capazes de qualquer coisa. E impedir que a história seja escrita pela tinta do cinismo é obrigação de cada um. Sem precisar de consenso sobre o que se deve fazer, mas necessariamente concordando sobre o que não pode ser feito.

A inflação castiga os mais pobres

Aquela história de que os governos dos últimos 12 anos tiraram da miséria extrema milhões de brasileiros e fizeram outros milhões ascenderem à classe média começa a se esvair como uma bolha de sabão. A política econômica populista empreendida nos períodos de Lula e Dilma cobra agora o seu preço. Preço alto principalmente para aqueles segmentos que o PT dizia querer proteger – e deles, naturalmente, obter votos e mais votos.

Enquanto a inflação oficial, o IPCA, ficou em 10,67%, e o IPC (medido pela Fundação Getulio Vargas e referente a famílias com renda entre um e 33 salários mínimos) foi de 10,53%, no ano passado os mais pobres amargaram uma inflação de 11,52%. O dado é do IPC-C1, índice também medido pela FGV e que se refere às famílias com renda mensal entre um e 2,5 salários mínimos.

A maior diferença entre os índices está no peso de cada produto e serviço nas respectivas cestas. Por exemplo, o transporte coletivo tem peso três vezes maior na inflação dos mais pobres que na inflação geral medida pela FGV.

E os grandes vilões da inflação da baixa renda em 2015 foram três grupos: transportes (com alta de 13,2%), alimentos (13%) e habitação (14,6%). Note-se que, desses três grupos, dois incluem preços diretamente controlados pelo poder público, como transporte coletivo, energia e combustíveis – e esses itens ainda têm impacto decisivo sobre outros preços, como os dos alimentos.

O represamento dos preços controlados praticado nos anos anteriores estava entre os fatores que permitiram melhorar por algum tempo o poder aquisitivo da população de baixa renda. Este era um dos quesitos que fizeram o “sucesso” da matriz econômica posta em prática pelos governos petistas e serviram para propaganda eleitoral, para manter a inflação “controlada” e para obter altos índices de popularidade.

Viu-se, porém, que se tratava de uma prática insustentável. Economistas principiantes aprendem logo os resultados de uma política que consiste em vender produtos abaixo do custo. A Petrobras é um bom exemplo, com as perdas que acumulou com a manutenção artificial dos preços dos combustíveis, até que chegou a hora da verdade – assim como chegou também para o setor de energia elétrica, que ainda não se recuperou totalmente da canetada de Dilma que desorganizou o setor em 2013.

Se a inflação é ruim para todos, para os pobres ela é ainda mais cruel. A classe média tem alguma chance de equilibrar o orçamento doméstico se consumir menos gasolina, se gastar menos energia elétrica, se cortar supérfluos. Não é este o caso dos mais pobres, que já não têm supérfluos para eliminar e nem sempre conseguem economizar – e, quando sobra algum salário no fim do mês, os mais pobres têm menos acesso ao tipo de aplicação que poderia proteger suas economias da inflação, seja por falta de informação, seja por exigências de investimento mínimo. Sobram opções como a caderneta de poupança, que perdeu para o IPCA em 2015.

Diante da constatação básica de que a inflação torna os pobres ainda mais pobres, é estarrecedor que haja entre assessores do Planalto, como informou no fim de dezembro o jornalista Fernando Rodrigues, da Folha de S.Paulo, gente tão tolerante com a inflação que queira elevar o centro da meta, dos atuais 4,5% para 5,5% – uma ideia que, felizmente, parece engavetada.

O lulopetismo vendeu uma ilusão ao povo brasileiro e todos, especialmente os mais pobres, estão descobrindo isso da pior maneira.

Falou o Papa!


A corrupção é o pecado que em vez de ser reconhecido como tal e de nos tornar humildes, se tornou sistema, torna-se um hábito mental, uma forma de vida
Papa Francisco, em "O Nome de Deus é Misericórdia", que será lançado amanhã

Gilmar denunciou cooptação do Supremo mas mídia silenciou

Circulam incessantemente na internet as importantes declarações do ministro Gilmar Mendes à Rádio Jovem Pan, em entrevista concedida a 18 de dezembro, no dia seguinte à última sessão do Supremo Tribunal Federal antes do recesso, quando houve o julgamento acerca do rito do impeachment de Dilma Rousseff, com rejeição do parecer do relator Edson Fachin, devido ao voto do ministro Luís Roberto Barroso, que usou informações ardilosas e fraudadas para conseguir maioria no plenário.

“Lembra que eu tinha falado do risco de cooptação da Corte? Eu acho que nesse caso isso ocorreu… Diante desse quadro de grave crise de corrupção, nós vamos ficar fazendo artificialismos jurídicos para tentar salvar, colocar um balão de oxigênio em alguém que já tem morte cerebral”, disse Mendes, referindo-se à presidente Dilma Rousseff, em entrevista à rádio Jovem Pan. E prosseguiu:


“É claro que há todo um projeto de bolivarização da Corte. É evidente que, assim como se opera em outros ramos do Estado, também se pretende fazer isso no tribunal e, infelizmente, ontem (quinta) nós demos mostras disso… o tribunal acabou chancelando uma política fisiológica. Estamos a caminho de virar ou mesmo já viramos uma Venezuela? Um dos ministros do STF acredita que sim”.

Estas foram as palavras duríssimas do Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, acerca do julgamento do rito do impeachment pela Corte. Não há qualquer outra leitura que não seja essa: ele apontou um golpe contra a democracia brasileira em favor de um governo.

Quando se ouve a entrevista de Mendes à Rádio Jovem Pan, fica claro que ele considera ter havido cooptação de ministros pelo governo Dilma. E é verdadeiramente inacreditável que suas declarações não tenham conseguido a repercussão merecida. Quase todos os grandes veículos ignoraram a entrevista ou deram como “nota de coluna”, como se fosse apenas uma “curiosidade”.

Mas acontece que a cooptação da corte máxima de um país, denunciada por um de seus integrantes, não é algo corriqueiro. Não é algo que deva ser deixado para lá. Não é algo sobre o que se possa fazer esse retumbante silêncio obsequioso de boa parte dos formadores de opinião “oficializados”. O silêncio da mídia é inquietante, indica que também está havendo cooptação da grande imprensa. Até agora, apenas a Veja tem se preocupado em esmiuçar o que realmente houve no Supremo, na surpreendente sessão de 17 de dezembro.

Que mundo é esse?

Junto com o Congresso Nacional, o Judiciário e as escolas, também cessaram as discussões sobre o impeachment de Dilma Rousseff, o processo de cassação de Eduardo Cunha e a renovação da liderança do PMDB. Entraram em férias também as oportunidades de trabalho e a abertura de novas vagas de emprego, os investimentos públicos e privados, a indústria, o comércio, a construção civil e os serviços.

Continuaram em férias (ou adormecidas) todas as propostas de políticas públicas que pudessem promover, dentro de um processo de composição e ajustes das forças que têm voz e deveriam ter responsabilidades no combate à inércia que nos sufoca, pelo menos com a devolução da esperança.

Tudo está vagando ou em férias, inclusive a imaginação, a criatividade, a capacidade de indignação de todos nós. Tudo depende da solução desse enigma que fez o Brasil e o amanhã dependentes do que seremos se o deputado Eduardo Cunha for ou não preso, deposto do cargo que ocupa ou até mesmo do país, ou se assumirá como técnico do Bangu no campeonato carioca. Bangu II, talvez, dependendo de como enquadra o Código Penal a tipicidade de suas estratégias, ao longo de uma vida. Aquela que ele e seus apoiadores chamam de vida pública. Bacana.

Dependemos ainda de quantos ministérios, diretorias e mutretas serão criados para que a presidente Dilma se equilibre no cargo que ela insiste em ocupar, ainda que para isso o Brasil siga desgovernado, precipitando-se num abismo geral.

Sumiram ainda o japonês da Federal e o juiz Sérgio Moro, este sentado sobre o que revelam com fatos, endereços e números, os delatores que já entregaram ex-amigos, como partícipes de histórias há décadas sabidas, incorporadas no cotidiano dos fornecedores dos governos e empreiteiros de obras públicas. Não fossem os institutos da prescrição e da preclusão, dentro de uma legislação processual e penal superada e desatualizada, como a que temos, o Mineirão seria pequeno para acolher tanta gente. Bastaria a polícia judiciária, o Ministério Público e o Judiciário, autorizados pela legislação reformada, atuarem.

Tudo parou, exceto os problemas que crescem com a inflação, com a criminosa cobrança de juros bancários que nossa política econômica sustenta e louva. Não dorme também um sistema tributário que penaliza, escraviza e engessa a iniciativa privada, a produção e a força de trabalho.

Não pararam a criminalidade sempre crescente, os cortes dos recursos para a saúde, para a educação e tudo que o Estado insiste em se manter como provedor e agente de sua oferta, mas se revela incapaz para produzir resultados melhores, seja pela sua ausência ou pelo equívoco na priorização e gestão dos bens públicos.

Seguimos mal, mas que ninguém se desespere: em fevereiro teremos Carnaval.

As vacas magras chegaram

Dilma Rousseff teria que ter sido deposta antes do Ano Novo, mas o PT tem força e conseguiu procrastinar a decisão, que já está tomada no âmbito das Casas legislativas. Como o STF refez as decisões rituais de Eduardo Cunha o parto para expelir Dilma Rousseff se prolongou por, pelo menos, seis meses. Será um tempo trágico para o Brasil, que precisa se reorganizar politicamente e tomar tirocínio administrativo, impossível sob um governo do PT.

A crise econômica é profunda e vai perdurar, em face da indefinição da política. O caos se aproxima na forma de desemprego em massa, de arrocho salarial, de desamparo de grande parte da população. A desordem econômica determina a desordem política. O ano que entrou agora será de desânimo e sofrimento.

Quão mais longeva Dilma Rousseff for no poder mais a economia ficará deteriorada e maior o sofrimento do povo. A nação está em um impasse, pois as condições materiais de sobrevivência dos muitos estão ameaçadas. À classe política não cabe outra coisa que não decretar o impeachment. A sociedade organizada, empresários e trabalhadores, já tiraram seu apoio a ela, que nesse momento representa apenas a si mesma e aos movimentos sociais pagos pelo PT.

Não se pode minimizar o que está por vir. O pior dos cenários se desenha, com o PIB caindo a taxas de economias de países em guerra. A destruição que se verifica aqui é determinada pela imperícia, incompetência e irresponsabilidade da governante. Um desastre colossal se avizinha por conta disso.

Não é mais tempo de autoengano. Não é mais tempo de procrastinação. Enquanto a população aguarda as grandes decisões da classe governante, cabe a cada indivíduo se preparar para a difícil travessia. Vale o que já tenho escrito: gastar menos do que ganhar, poupar, manter vida sóbria e procurar não depender exclusivamente de rendas derivadas do governo, como aposentadoria e salários. O tempo das vacas magras é chegado.

Quem viver verá.

Saúde para inglês ver

Dia desses, lendo o jornal “Mail Online”, lá do Reino Unido, encontrei uma longa e contundente reportagem sobre o suplício imposto aos pacientes dos hospitais daquele país. Transcreverei, a seguir, em tradução livre, os trechos mais importantes.

Começo pela chamada de capa: “Estado chocante da saúde: meio milhão de pacientes foram forçados a aguardar 30 minutos em macas até serem admitidos”. Estas macas, segundo constatou a reportagem, ficaram nas ambulâncias ou até mesmo pelos corredores.

E prossegue a notícia: “Centenas tiveram que esperar mais de duas horas. Pelo regulamento, os pacientes devem ser admitidos dentro de 15 minutos a contar da chegada ao hospital”.

Seria este quadro algo restrito às áreas mais pobres do país? Não: “Em Londres, uma das áreas mais afetadas, o serviço de ambulâncias revelou que 42.248 pacientes esperaram do lado de fora dos hospitais por mais de 30 minutos durante o ano de 2011, e 10.053 tiveram que aguardar mais de 45 minutos”.

Em seguida o jornal denuncia o caso de Reg Storer, um ancião conduzido ao setor de emergências de um hospital público: “Um idoso foi deixado em uma ambulância ao longo de três horas porque a equipe médica estava muito ocupada para dar-lhe tratamento. Reg Storer foi levado ao Hospital Morriston por conta de complicações seguidas a um derrame. Lá, porém, os médicos não puderam conduzir M. Storer para dentro porque não havia leitos disponíveis e nem espaço nos corredores para as macas. O filho de Mr. Storer, Allan, declarou que “aparentemente havia uma longa fila de ambulâncias esperando”. Seu pai foi mantido do lado de fora entre 16:30 e 19:30, quando então foi admitido no hospital”.

Diante de tal descalabro - uma espera de três horas - chamou-me a atenção o comportamento da administração pública: “Pedimos desculpas. Nossa equipe trabalhará de forma excepcionalmente dedicada a fim de que fatos assim não voltem a acontecer”.

Os jornalistas ingleses decidiram ouvir a Associação dos Pacientes. Seguem as declarações de Katherine Murphy: “Isto é chocante - quando as pessoas precisam de assistência médica hospitalar, esta tem que ser imediata”.

O governo daquele país foi chamado às falas. Assim, um representante do Departamento de Saúde declarou, de forma absolutamente humilde, que “toda pessoa tem que ser prontamente atendida quando chegar a um hospital, principalmente se lá chegar conduzida por uma ambulância. É inaceitável que pacientes sejam deixados esperando do lado de fora”.

Seria este quadro dramático decorrente de algum eventual aumento no número de doentes? Não: “Houve uma elevação de apenas 6% no número de atendimentos feitos por ambulâncias, o que indica que o problema não pode ser atribuído simploriamente ao fato de existirem mais pacientes”.

Quanto ao mais, a reportagem traz uma séria advertência: “As longas esperas são ruins para os pacientes e para as equipes das ambulâncias, que ficam retidas nas portas dos hospitais e, portanto, indisponíveis para novos atendimentos”.

Logo abaixo desta notícia havia um espaço para comentários dos leitores. Chamou-me a atenção uma manifestação em especial, de um cidadão que se identificou como “Kenny”, morador da cidade de Kent: “bem-vindo ao Terceiro Mundo, Reino Unido”. Que tal pensarmos sobre esta reportagem, enquanto habitantes de um país infinitamente mais rico? Afinal, como exclamou Francisco Carlos de Holanda, “cego é aquele que olha e não vê o cego na sarjeta”.

Pedro Valls Feu Rosa

Por que o fogo antecipado sobre Jaques Wagner

Calcula-se que em política não há coincidências, valendo prospectar porque, de duas semanas para cá, o couro vem cantando no lombo do chefe da Casa Civil, Jaques Wagner. Afinal, seus dois mandatos no governo na Bahia, sua escolha para primeiro-ministro da presidente Dilma e sua performance no palácio do Planalto vinham sendo saudados como dos raros aspectos louváveis do PT e do governo.

De repente, desaba a tempestade sobre o personagem, com suposições de sua participação em maracutaias eleitorais e até referências na Operação Lava Jato.
Abrolhos

Há que atentar para a evidência de que tudo acontece depois de o Lula perder altura como obvio candidato natural do PT à sucessão de 2018. No PT, registrou-se muita ebulição, com o próprio ex-presidente reagindo à crise econômica e sugerindo propostas que a presidente Dilma ignora. Ainda mais depois de referências ao seu filho mais novo em atividades pouco claras. Apesar de continuarem se encontrando com periodicidade, antecessor e sucessora divergem cada vez mais, com Jaques Wagner chefiando a resistência de Madame, peça fundamental para a queda de Joaquim Levy do ministério da Fazenda. A bolha estourou quando, entre parte dos companheiros, o principal auxiliar começou a ter seu nome lembrado como alternativa para a indicação presidencial. Muitos entendem tratar-se de um sacrilégio, além de uma hipótese quase impossível o afastamento do Lula. Mesmo assim, incomoda. Eis a coincidência, em especial quando Wagner colocou em campo um exército de coelhos. De seu próprio partido foram disparados petardos, claro que também acionados de trincheiras variadas. Existem ministros felizes com a blitz. Da mesma forma, gente no PMDB, para não falar das oposições.

Não tivesse o ex-governador sido mencionado como alternativa sucessória e não estaria sendo alvo antecipado.

O passado costuma sempre apontar o que devemos evitar, mais do que o que fazer. Há exceções, no entanto. Will Durant, na sua magistral “História da Civilização”, conta que nos séculos de Augusto a Marco Aurélio, na maioria das municipalidades da península, assembleias escolhiam os governantes, magistrados e demais autoridades. Só que eles se obrigavam a dar às cidades apreciável quantidade de dinheiro em troca do privilégio de servi-las. O costume determinava que fizessem donativos para o bem público. Os cargos não tinham remuneração, e além de obras públicas como estradas, pontes, aquedutos e bibliotecas, também teatros, jogos, templos, e banhos eram por conta da municipalidade. É claro que a aristocracia unia-se à oligarquia, em detrimento da imensa maioria de pobres, mas nunca o rico fez tanto pelo pobre, até fornecendo viveres grátis em tempos de carestia. Em retribuição as cidades votavam aos doadores estátuas e inscrições. Os pobres não se entusiasmavam muito, pois acusavam os ricos de haver enriquecido às custas deles e pediam menos edifícios belamente ornados e mais trigo em conta.

A diferença é de que dois mil anos depois dos romanos assistimos autoridades, magistrados e governantes não apenas muito bem remunerados, mas continuando a prática do enriquecimento às custas do conluio entre aristocratas e oligarcas. Só que o rico, agora, faz muito menos pelo pobre...

O país da África que se tornou 'cemitério de eletrônicos'

(Foto: BBC)

Em um vasto lixão no oeste da capital de Gana, Acra, pequenas fogueiras queimam pilhas de velhos computadores, telas de TVs e laptops, lançando uma negra e espessa fumaça.

Ao redor delas, catadores recolhem placas-mãe, metais valiosos e fios de cobre, queimando pelo caminho as capas de plástico – e, assim, enchendo o ar de substâncias tóxicas.

Trata-se de um dos maiores “cemitérios de eletrônicos” do mundo, e um dos locais mais poluídos do planeta.

A cada ano centenas de milhares de toneladas de lixo eletrônico vindos da Europa e da América do Norte encontram neste espaço seu destino final, no qual têm seus metais valiosos extirpados em uma forma rudimentar de reciclagem.

Para muitos, é um negócio lucrativo em um país onde perto de um quarto da população vive abaixo da linha da pobreza.

“É algo instantâneo”, diz Sam Sandu, um sucateiro que trabalha no local. “Você trabalha nisso hoje e consegue seu dinheiro no mesmo dia.”

Especialistas alertam, porém, que as toxinas do lixão estão lentamente envenenando os trabalhadores locais, ao mesmo tempo em que poluem o solo e atmosfera.

“Mercúrio, chumbo, cádmio, arsênico – estas são as quatro substâncias mais tóxicas [no mundo], e são encontradas em grandes quantidades em lixões de eletrônicos”, explica Atiemo Smapson, um pesquisador da Comissão de Energia Atômica de Gana, que conduziu vários estudos sobre a área de Agbogbloshie, usada para o despejo.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, ainda não foram realizados estudos de longo prazo sobre a saúde daqueles que tiram seu sustento desses lixões. Ou seja, há poucas informações sobre o número de pessoas que ficaram doentes ou morreram como resultado desse tipo de atividade.

No entanto, a exposição a essas toxinas é causa conhecida de uma gama de males, que vão desde a uma série de tipos de câncer a doenças no coração e respiratórias.

“As consequências já são, de certa forma, evidentes”, afirma Sampson. “Nós não precisamos esperar 10 ou 20 anos, os efeitos já são visíveis entre a comunidade ganense.”

Analistas estimam que o mundo vai produzir 93 milhões de toneladas de lixo eletrônico apenas neste ano – um volume cada vez maior é resultado da obsolescência de produtos de alta tecnologia.

Boa parte desses eletrônicos vai terminar em diversos lixões na África e na Ásia, em vez de serem reciclados no país em que foram vendidos.

Democracia ateniense online?

Talvez a maior grande ideia a ganhar força durante o último milênio tenha sido a de que nós mesmos, humanos, deveríamos nos governar. Mas ninguém pretendia realmente isso.

O que se pretendia, na maioria dos lugares, era que elegêssemos pessoas para nos governar e esporadicamente renovássemos ou revogássemos seu contrato. Isso bastava. Não havia maneira prática de envolver todos, o tempo todo.

As atuais manchetes de Washington apregoam salvamentos financeiros, estímulos, carros velhos, Afeganistão-Paquistão, seguro-saúde. Mas é possível que historiadores futuros, olhando para o passado, se fixem num projeto menos ruidoso do presidente Barack Obama: a exploração de como o governo deve estar aberto a uma maior participação pública na era digital, de como fazer do autogoverno mais que uma metáfora.

Durante sua campanha, Obama disse que “somos aqueles por quem estivemos esperando”. Essa frase messiânica encerrava a promessa de um novo estilo de política nesta época de tweets e pokes. Mas isso era vago, um paradigma tratado casualmente em nossos drinques. Até aqui, o gosto tem sido amargo.

Agências federais foram orientadas a liberar online informações antes sigilosas; repórteres de publicações exclusivas da internet foram chamados a coletivas de imprensa; o novo portal Data.gov permite que cidadãos criem aplicativos para analisar dados do governo. Mas os esforços mais reveladores estão na crowdsourcing: a solicitação via internet aos cidadãos para que deem ideias políticas e a permissão para que votem nas propostas uns dos outros.

Durante a transição, a administração criou o Citizen’s Briefing Book (um resumo de sugestões dos cidadãos) online para as pessoas enviarem ideias ao presidente. “As mais bem classificadas chegarão ao topo e, após a posse, nós as imprimiremos e reuniremos numa pasta como as que o presidente recebe todos os dias de especialistas e consultores”, escreveu Valerie Jarrett, consultora de Obama, a correligionários.

Foram recebidas 44 mil propostas e 1,4 milhão de pessoas votaram nelas. Os resultados foram publicados discretamente, mas eram embaraçosos – não tanto para a administração quanto para nós, que estávamos esperando por eles.

Em meio a duas guerras e ao derretimento da economia, a ideia mais votada foi a legalização da maconha – proposta quase duas vezes mais popular que repelir os cortes de impostos de Bush para os ricos. A legalização do pôquer online despertou duas vezes mais interesse que uma rede Wi-Fi de alcance nacional. Revogar a isenção de impostos da Igreja da Cientologia recebeu três vezes mais votos que levantar fundos para o tratamento de câncer infantil

Uma vez no poder, a Casa Branca fez nova consulta via internet. Em março, seu Departamento de Política de Ciência e Tecnologia abrigou um esforço coletivo online sobre tornar o governo mais transparente. Chegaram boas ideias, mas um número espantoso delas não tinha a menor relação com transparência. Muitas eram ainda sobre a legalização da maconha. Travou-se também um debate furioso (e sem fundamento) sobre a autenticidade da certidão de nascimento de Obama.

Se a internet precisava de uma sacudida extra para cair do pedestal, esta foi dada pelo debate sobre o sistema de saúde. Do ponto de vista da administração, a web provou ser melhor em espalhar mentiras sobre “painéis da morte” que em divulgar a verdade, e mais eficaz em provocar brigas em câmaras municipais que em fomentar a discussão sem restrições que muitos imaginam ser o ponto alto da internet.

Há um vigoroso debate em curso sobre o que alguns chamam de Gov 2.0. Um campo vê na internet uma oportunidade sem precedente para trazer de volta a democracia direta no estilo ateniense. Essa visão foi capturada num recente documentário britânico, Us Now, que pinta um futuro no qual cada cidadão estará conectado ao Estado tão facilmente quanto ao Facebook, escolhendo políticas, questionando políticos, colaborando com vizinhos. “Será que podemos todos governar?”, pergunta o filme. (Evidentemente, o filme pode ser visto na web.)

As pessoas desse campo apontam para o auxílio que a tecnologia da informação prestou a movimentos populares, da Moldávia ao Irã. Citam a Índia, onde os eleitores agora podem acessar, via mensagem de texto, informações sobre os registros criminais de candidatos ao Parlamento, e a África, onde telefones celulares estão melhorando a fiscalização eleitoral. Assinalam a facilidade de repassar conhecimentos científicos e culturais a um público amplo. Observam como a internet, ao democratizar o acesso a fatos e números, encoraja tanto políticos como cidadãos a basearem suas decisões em mais que intuição.

Mas sua visão de democracia da internet é parte de uma evolução cultural maior rumo à expectativa de que sejamos consultados sobre tudo, o tempo todo. Cada vez mais, os melhores artigos para se ler são os mais enviados por e-mail, as músicas que merecem ser compradas são dos cantores que acabamos de eleger para o estrelato por mensagem de texto, o próximo livro a ler é aquele comprado por outras pessoas que compraram o mesmo livro que você, e a mídia, que antes noticiava para nós, agora publica tudo que pomos no Tweeter. Nessa nova era, nosso consentimento é colhido a cada poucos minutos, e não a cada poucos anos.

Um outro campo vê a internet de maneira menos rósea. Seus membros tendem a ser entusiastas da web e da participação cívica, mas são céticos sobre a internet como panaceia para a política. Temem que isso crie uma ilusão falsamente tranquilizadora de igualdade, transparência, universalidade.

“Vivemos numa era de experimentação democrática – tanto em nossas instituições oficiais como nas muitas maneiras informais de que o público é consultado”, escreve James Fishkin, cientista político de Stanford, em seu novo livro When the People Speak (Quando o Povo Fala). “Muitos métodos e tecnologias podem ser usados para dar voz à vontade pública. Mas alguns dão um quadro da opinião pública como se vista numa casa de espelhos.”

Uma vez que é tão fácil filtrar online o próprio ponto de vista, as opiniões extremadas dominam a discussão. Os moderados ficam sub-representados, de modo que os cidadãos que buscam um sistema de saúde melhor parecem menos numerosos que os fãs de pôquer. A imagem de abertura e igualdade da internet camufla suas desigualdades de raça, geografia e idade.

As mentiras se espalham como fogo na web. Eric Schmidt, presidente executivo do Google, advertiu em outubro passado que se os grandes veículos do jornalismo confiável morrerem, a internet se tornará uma “cloaca” de informações ruins. A Wikipedia pretende dar um toque de edição – lembram-se da edição? – em artigos sobre pessoas vivas.

O mais ameaçador talvez seja que a abertura da internet permite a grupos bem organizados simularem ter apoio para “capturar e personificar a voz pública”, como escreveu Fishkin numa troca de e-mails.

Não é possível voltar no tempo. Temos hoje mais opinião pública exercendo pressão na política do que nunca. A questão é como ela pode ser canalizada e filtrada para criar sociedades mais livres e bem-sucedidas, porque simplesmente colocar coisas online não é uma panaceia. “Neste momento, a discussão não é mais se a internet é importante e se vai se espalhar ainda mais”, disse Clay Shirky, teórico da internet e autor de Here Comes Everybody: The Power of Organizing Without Organizations (Aí vêm todos: o poder de organizar sem organizações). Ele acrescentou, numa entrevista telefônica: “Na verdade, ela é importante demais para ser deixada de lado nas questões constitucionais e de governança”.

Há uma busca pela metáfora correta. Qual é o novo papel do governo – uma plataforma? Uma máquina de vender na qual colocamos dinheiro para tirar serviços? Um facilitador? E qual é, de fato, o novo papel para nós – os que estão esperando?

Anand Giridharadas (Estado de S. Paulo, 19/09/2009)