domingo, 29 de junho de 2025

Pensamento do Dia

 


A lógica do me engana que eu gosto

Na doxa platônica (esfera das opiniões e experiências pessoais), Fídias, o cretense, afirma que todos os cretenses são mentirosos. O paradoxo é logicamente insolúvel, nunca poderemos saber se ele fala a verdade ou mente. Agora, trocando Creta por Brasil, topamos com o mesmo impasse angustiante: se a mentira alcança o status de princípio social, mergulhamos no vazio de marcadores existenciais. Não mais um episódio pitoresco da doxa, nem mesmo ficcional do tipo "Black Mirror". A distopia encontrou lugar entre nós.


Ao primeiro olhar, plataformas eletrônicas. Há algo, porém, mais fundo e antigo do que isso. As religiões sempre mentiram para acomodar suas teologias à mente dos fiéis e à hegemonia de Estado. E mentir é engraçado nos relatos do Barão de Münchhausen, aquele que teria saído de um pântano puxando pelos próprios cabelos. Isso sempre teve alguma acolhida na sociabilidade comunitária.

Da infância interiorana vem a lembrança de mentirosos compulsivos, objetos de uma atenção entre resignada e divertida. Havia desde os populares, que narravam embates com lobisomens, até o médico de família, capaz de uma hora inteira sem respirar no fundo do mar, pesquisando corais. Hoje, os ditos antipolíticos, tanto pobres de direita como empreendedores, fazem bolhas nessa lógica do "me engana que eu gosto", a mesma das câmaras de eco das redes. Bolsonaro pode sumir, mas o bolsonarismo cresce na razão direta da enganação.

É que a mentira atrai como uma espécie de heresia, uma sutil desconfiança da realidade por adesão às aparências. Já a crença nos fatos implica "credibilidade total do que se faz e do que se vê, em detrimento do que se pode chamar de aparência, cujo jogo consiste na evidência pragmática das coisas" (Jean Baudrillard, "América"). Só que o fato é factício, isto é, não mente, mas simula. Os americanos acreditam no fato, não na facticidade ou fabricação do simulacro, seu ponto forte civilizatório: a espetacularização, o marketing permanente da vida.

Merece atenção a formalização jurídica do falseamento. No interrogatório da intentona golpista do 8/1, o magistrado certificava os réus de seu direito de mentir. E assim de cada ovo gorado da serpente saía um clone do Barão de Münchhausen, negando as evidências na materialidade das provas. Arquiteto do golpe, o ex-presidente negou ter visto o que de fato viu e falou.

Por que ritualizar mentiras, quando a verdade parece exsudar pelos poros? Para dramatizar a garantia da lei à liberdade daquilo que a teoria da linguagem chama de "discurso performativo" (sem compromisso com prova) em vez do "discurso constatativo", sujeito à prova da verdade. Mas, reiterando que ninguém é obrigado a provar contra si mesmo, o ritual não deixa de destilar uma oblíqua moral da pusilanimidade.

E assim, generalizada pelas big techs, a performance assume todo discurso como mentira sistemática, travestida de "liberdade de expressão", para chegar às redes. Os paradoxos então se multiplicam e, como no absurdo "golpe dentro das quatro linhas", as redes revivem a Creta de Fídias. Trata-se da pressão narcísica de corpos agitados, ávidos por falar qualquer coisa, não de liberdade como ação pública. Uma catástrofe da expressão social.

A Idade do Meio

O que leva uma criança a ler histórias de cavalaria e a disfarçar-se de cavaleiro? Que voz — ancestral, ardente, inelutável — grita dentro do peito ao ver D. Afonso Henriques? Eu digo-vos: é a espada. A espada, senhores! Essa melancolia vertical que é também uma cruz. Há quem diga com tédio pós-moderno: — “E então os futebolistas? Os miúdos adoram futebolistas.” Pois adoram. O que só reforça o argumento. Os futebolistas são cavaleiros dos tempos modernos. Heróis que dão a vida ao serviço de um escudo. Não convencido acrescentar-se-á: “Sim, mas isso é culpa dos pais que influenciam os filhos.”

Bem. Que há pais que alimentam certas fantasias como quem dá de comer a um monstro, é verdade. Sei do que falo. Sou um deles. Mas — e estou muito convencido do que vou dizer a seguir — não haverá um pai ou uma mãe capaz de, no seu perfeito juízo, contrariar o enamoramento de um filho pelo Príncipe Valente, pelas fantasias medievais do Tolkien, por Artur ou pelo nosso primeiro, o nosso D. Afonso Henriques.

Acham que estou a torcer argumentos? Expliquem-me então o êxtase colectivo das Feiras Medievais. Essa alucinação trimestral que se alastra de Norte a Sul. Homens com empréstimos e ácido úrico vestidos de escudeiros. Mulheres com filhos e joanetes a fazer de estalajadeiras. É bizarro. É grotesco. É maravilhoso. E tem espadas! Toda uma pequena economia se organiza à volta daqueles eventos. Até escolas de esgrima histórica existem. É um regresso à infância. À infância da civilização.

Há muito que se impõe uma higiene histórica. Uma limpeza mental que o nosso século XXI continua a adiar.

Tenho-me entregado a um passatempo que é também um vício triste. Recolher recortes, frases, insultos. Gente que usa “medieval” como sinónimo de monstro. Como se dissesse obsoleto. Como sinónimo de buraco. A colecção é vasta. Seria aborrecido enumerar. Mas cito dois exemplos muito recentes que me feriram com particular prazer.

Há dois ou três dias, o Henrique Monteiro, que, apesar de maçon, não é má pessoa, escreveu no Expresso que o regime iraniano, instaurado por Khomeini, era “obscurantista, medieval, sem perdão ou face humana”. Como se o perdão tivesse sido inventado por Rousseau. Como se o amor cristão só tivesse nascido em 1789.

Depois, o Francisco Mendes da Silva. Um amigo. Um homem bondoso. Na sua crónica do Público de 23 de Maio, disse qualquer coisa sobre as ideias do Chega e o sistema penal. Que eram — isso mesmo — “medievais”. Não eram brutais, nem cruéis, nem desajustadas. Eram “medievais”. Que esse tempo seja invocado tantas vezes como metáfora moral por gente que nunca leu uma linha de São Tomás nem sabe distinguir uma catedral gótica de um castelo da Disney já estamos nós habituados. Mas de gente sensata e prudente? Gente que leu Chesterton?

Repare-se na ironia: a própria palavra médio significa, literalmente, aquilo que está entre os extremos. Nem muito, nem pouco. Nem grande, nem pequeno. Nem largo, nem estreito. Nem desumano, nem sentimental. A justa medida. O ponto onde tudo se encontra. O ponto onde se pode respirar. Por isso vos digo: nesse sentido o Henrique e o Francisco são, à sua maneira, medievais. O que é honroso. E triste.

Já vos disse que tenho horror a lugares-comuns. Em todo o caso, repito e acrescento: o mais ordinário dos lugares-comuns modernos é chamar “medieval” a tudo o que se quer odiar sem ter de puxar pela cabeça. O Chega propõe o restabelecimento da guilhotina — medieval. O Irão apedreja mulheres — medieval. Um pai esbofeteia o filho — medieval. Um sacerdote menciona o Inferno — medieval, medieval. É o bingo da cretinice, alimentado por uma única coisa: metáforas preguiçosas.

A Idade Média não foi um tempo de ignorância, mas de uma curiosidade ordenada. Não foi um tempo de medo, mas de coragem. O homem medieval olhava para as estrelas com assombro, não com vontade de as colonizar. E via no céu não apenas corpos celestes, mas sinais de harmonia e sentido.

A Idade Média foi o berço de muitas das ideias que hoje temos por civilizadas. As primeiras universidades, por exemplo, são instituições medievais. O conceito de dignidade da pessoa humana, que se cospe a torto e a direito como se fosse uma pastilha elástica da ONU, foi laboriosamente construído pela Escola de Salamanca, com raízes fundas em Tomás de Aquino. Mas essas raízes não nascem da razão moderna, nascem da fé medieval. Da convicção — terrível, gloriosa — de que o homem é imagem de Deus. É desta certeza que brotam os chamados “direitos humanos”. Já a palavra “obscurantismo”, essa sim, pertence ao léxico do século XVIII, quando os iluministas precisaram de inventar um passado sombrio para se apresentarem como portadores da luz.

Os modernos pensam que o mal foi inventado pela extrema-direita. Que a brutalidade é coisa de bárbaros orientais. Que o pecado é uma questão de contexto. Na Idade Média, meus amigos, o pecado tinha nome e morada. E, graças a Deus, tinha castigo.

Deixem-me dizer uma coisa com a boca cheia de fel: Medieval é a ignorância. Medieval é o desprezo. Medieval é a necessidade de cronologia para justificar a covardia. A Idade Média não foi um tempo de trevas. Foi um tempo de sombras, esse fenómeno nobre que acontece quando há algo sólido diante da luz. Como uma árvore. Como uma catedral.

Hoje vive-se de óculos escuros, debaixo de um Sol assassino. Hoje prefere-se insultar o passado. Rir dos mortos em vez de resistir aos vivos. Mas eu digo-vos isto: toda a mentira há-de arder. E todo o preconceito histórico tem um destino. O Inferno. Como Dante o descreveu, algures no século XIV.

Manuel Fúria

Discurso de ódio é arma

Por todo o mundo, assistimos a uma perturbadora vaga de fundo de xenofobia, racismo e intolerância – incluindo o crescimento do anti-semitismo, anti-muçulmanismo, e perseguição de Cristãos. As redes sociais e outras formas de comunicação estão a ser exploradas como plataformas de intolerância. Movimentos neonazis e de supremacia branca estão a fazer o seu caminho. O discurso público está a ser usado como arma para ganhos políticos através de retóricas que estigmatizam e desumanizam minorias, migrantes, refugiados, mulheres e os chamados "outros".
António Guterres, Secretário Geral da ONU

A ascensão dos caipiras

Os pilotos do fabuloso B-2 Spirit voaram por meio mundo por quase 40 horas, abastecido em pleno ar, atravessaram mares e continentes numa altitude de 45 mil pés. Perto do alvo, baixaram para 30 mil pés, liberaram duas bombas de altíssimo poder destrutivo, de várias toneladas cada uma, que não erram o alvo, em seguida fizeram a volta e retornaram para a base no estado do Missouri, território norte-americano. Puderam jantar em casa com a família, ver filmes na televisão e, depois, dormir. Suas mãos não estão sujas de sangue. As defesas do Irã sequer perceberam a chegada dos atacantes. Só entenderam os ataques depois que as bombas explodiram.

Essa é a guerra moderna. O governo dos Estados Unidos deu um recado direto e fulminante para Rússia, China, Irã, Israel e outros governos que se julguem capazes de desafiar o poderio do grande irmão do norte. A diplomacia de Washington abriu o jogo: seu poder reside na força de seus exércitos. Apenas um porta-aviões norte-americano tem mais poder de fogo que todos os exércitos latino-americanos juntos. E os Estados Unidos mantêm 11 porta-aviões operando em todos os mares do planeta. Sem mencionar as dezenas de submarinos nucleares armados com ogivas atômicas. A guerra é o exercício da política por outros meios, disse Clausewitz, no seu clássico Da guerra. Nos tempos atuais, com a ascensão de Trump, a diplomacia é apenas demonstração de força. Acabou a conversa. O mundo retrocedeu ao faroeste norte-americano.


O Brasil, embora situado na esquina do mundo, sente as consequências do conflito no Oriente Médio. Judeus e árabes não se entendem desde que a ONU decidiu reconhecer a existência do estado de Israel na Palestina, que pertencia ao mandato britânico. As primeiras ações promovidas pelos judeus foram feitas pela instituição chamada Haganah, que funcionou como força terrorista para enfraquecer e derrubar o controle inglês na área. Essa instituição é a base de outra moderna e atual chamada Mossad. O problema é deles, mas as consequências se refletem aqui. O preço do petróleo dispara, eleva a inflação interna e a comunidade de informação norte-americana passa a fiscalizar a região da tríplice fronteira na região de Foz de Iguaçu, no Paraná. Há uma enorme colônia árabe naquela área.

Parlamentares norte-americanos insinuam tomar para seu país o excedente de energia da Hidrelétrica de Itaipu para alimentar sua inteligência artificial (IA). É o mesmo raciocínio que autoriza o presidente dos Estados Unidos a querer dominar a Groenlândia, o canal do Panamá e o Canadá. Fotografia dos tempos atuais. O presidente Lula, infelizmente, vive nas próprias nuvens. Ele mantém um discurso populista, datado, dos anos sessenta. Viaja pelo mundo sem propósitos específicos. Não conseguiu trazer nenhum benefício concreto para o país. O acordo com a União Europeia continua no território das suposições. Os brasileiros estão debruçados na janela vendo o mundo passar.

O mundo viveu um ambiente de relativa acomodação durante o final da Segunda Guerra Mundial e o início do século 21. A globalização estreitou relações comerciais entre países, criou novas cadeias de fornecimento, modificou as relações de emprego, enriqueceu alguns países e reduziu a pobreza. Mas, esse ciclo terminou. Henry Kissinger diz isso no seu formidável Ordem mundial (editora Objetiva). "No mundo da geopolítica, a ordem estabelecida e proclamada como universal pelos países ocidentais se encontra em momento crítico. Os remédios para seus problemas são compreendidos globalmente, porém não existe consenso sobre sua aplicação".

A política provinciana prevaleceu no Brasil nos últimos tempos. O desaparecimento de partidos com algum comprometimento com o desenvolvimento e a democracia nacional, a exemplo do PSDB e PFL, abriu o caminho para maior atuação de lobbies no Congresso Nacional e colocou em posição de mando no governo personagens pouco instrumentados para exercer as responsabilidades que as funções administrativas exigem. A questão não está no tamanho de eventual deficit do Tesouro Nacional. Mas porque e para que esse resultado é construído.

No final da Segunda Guerra Mundial, o endividamento da Inglaterra era de 250% de seu produto interno bruto. O problema foi resolvido com objetividade e trabalho. Os brasileiros souberam acabar com a explosiva dívida externa, nos anos 1980, sem fazer barulho. Apenas com conversa e negociação. A ascensão dos caipiras só se justifica porque o país está no período de festas juninas.

Quando a extrema-direita impera: silêncio e medo

Há algo de profundamente inquietante no fato de estarmos, pouco a pouco, nos acostumando com o avanço da extrema-direita pelo mundo. Não apenas com seus discursos de ódio, seus ataques sistemáticos à cultura, às minorias, às instituições democráticas — mas com a normalização de tudo isso.

Um vídeo recente, que circulou nas redes sociais, expôs de forma crua esse cenário. Mostrava como a extrema-direita, antes tratada como um fenômeno marginal e folclórico, se infiltrou silenciosamente nas estruturas do poder. Ela domina o debate público, não mais à margem, mas no centro. De repente, passamos a ouvir, sem espanto, vozes que relativizam a tortura, que atacam artistas, que reduzem o ensino crítico à “doutrinação”. O absurdo virou argumento. O intolerável virou opinião.


No Brasil, vivemos isso de forma trágica e explícita. A extrema-direita se apropriou dos símbolos nacionais — a bandeira, a camisa da seleção, o hino — como se fossem sua propriedade exclusiva. Usaram a linguagem da fé para justificar a violência, confundiram liberdade de expressão com licença para o ódio. O bolsonarismo, mesmo fora da presidência, segue ditando o tom, ameaçando as instituições, hostilizando jornalistas, artistas, professores.

Em Portugal e na Europa, a ascensão da extrema-direita também não dá trégua. Partidos como o Chega, em Portugal, e o Vox, na Espanha, crescem à sombra do descontentamento e da manipulação. Em países que sofreram com o fascismo, a ultradireita volta a ganhar espaço — e, pior, a parecer aceitável. Vemos o mesmo roteiro: a cultura como inimiga, os imigrantes como bode expiatório, a educação como ameaça, a arte como algo a ser policiado.

Recentemente, em Lisboa, um ator foi agredido durante uma apresentação no tradicional Teatro Barraca. O ataque, embora pontual, carrega o símbolo de algo maior: a hostilidade crescente ao pensamento livre, ao fazer artístico, ao direito de criar. Como disse a fundadora do teatro, Maria do Céu Guerra, “a extrema-direita já não se envergonha. Vem ao teatro, e agride”. Não se esconde mais. Não teme mais.

Mas talvez o mais perigoso não seja o grito dessa força autoritária — é o silêncio que a cerca. O medo de se posicionar. A hesitação disfarçada de neutralidade. A conivência que se esconde sob o argumento do “equilíbrio”. Afinal, quantos se calam para não perder seguidores, contratos, benesses? Quantos preferem não ver para não se incomodar?

Quando a extrema-direita impera, ela não precisa mais gritar. Já gritou o suficiente. Agora, fala manso, com slogans de marketing, com estética limpa, com promessas de ordem.

Disfarça a censura com a palavra “moral”. Troca livros por armas. Troca a liberdade por controle. E quanto mais avança, mais difícil parece resistir. Mas é justamente aí que resistir se torna urgente.

Porque o que está em jogo não é uma diferença de opinião. É um projeto de mundo. E a pergunta que se impõe, a cada dia, é: de que lado da história vamos escolher estar — mesmo quando o preço for alto, mesmo quando o aplauso for escasso?