sábado, 20 de setembro de 2025

Pensamento do Dia

 


Distinção entre esquerda e direita é roupa que não serve mais

Aprendemos nos livros de História que os termos “esquerda” e “direita” nasceram na França, no fim do século XVIII: na Assembleia Nacional, os partidários da monarquia se sentavam do lado direito, e os simpatizantes da Revolução, do lado oposto. Desde então (grosso modo), esquerdistas são associados a democracia, coletivismo, internacionalismo, intervencionismo estatal e desejo de mudança; a direita, a elitismo, individualismo, nacionalismo, livre mercado e apego a que as coisas continuem do jeito em que estão. Hoje, isso virou um balaio de gatos.


A mesma esquerda que investiu contra o dicionário, considerando que o verbo “judiar” perpetuava o preconceito contra os judeus, embarcou de mala e cuia no antissemitismo. A pretexto de defender os palestinos, fez de Israel — única democracia do Oriente Médio — seu inimigo preferencial. E qualquer coisa é pretexto para que o antissemita enrustido saia do armário: bastou o ministro Luiz Fux divergir da condenação aos golpistas do 8 de Janeiro para que os piores epítetos fossem associados à sua origem judaica. Tivesse o voto sido do ex-ministro Joaquim Barbosa, veríamos os antirracistas rasgarem as cartilhas em que exibem suas virtudes igualitárias. Viesse a divergência de Cármen Lúcia, adeus sororidade e feminismo; no mínimo ouviríamos que lugar de mulher é no tanque e no fogão. Flávio Dino que ouse divergir, para ver o que é gordofobia. Parte da esquerda só é progressista até a página 2 — isso se as letras forem grandes, e as margens bem largas.

A direita, que bancou 21 anos de ditadura — com censura, tortura e prisões arbitrárias — tomou para si a defesa da (sua) liberdade de expressão. Faz-se de vítima da “ditadura da toga” — logo ela, que deitou e rolou com a ditadura da farda. Trocou a soberania por uma enorme bandeira americana e, depois de acusar os adversários de defender bandidos, aderiu em massa à blindagem dos delinquentes com assento no Congresso.

A turma da diversidade fez das feiras literárias um feudo de sua panelinha — e sobe nas tamancas quando alguém de seu campo é excluído. Pessoas “de bem” exigem que sejam expurgados das bibliotecas públicas livros que não rezem pelo seu catecismo. E ambos os lados reduzem a arte ao proselitismo – anticapitalista, antiwoke etc. Ninguém ainda ateou fogo, mas os fósforos já estão na mão.

São farinha do mesmo saco quem comemorou o assassinato de Marielle Franco e quem acha que o tiro que matou Charlie Kirk tornou o mundo um lugar melhor. Aliás, Kirk, que fazia turnês para debater com quem discordava dele, era chamado de fascista; Márcia Tiburi se recusou a conversar com quem não pensa da mesma forma que ela; e manteve a aura de antifa.

O pensador Augusto de Franco coloca a questão não em termos de esquerda ou direita, mas de liberais e iliberais. Os primeiros podem ser progressistas ou conservadores, mas defendem democracia, liberdade, pluralidade e preferem as reformas à ruptura. Os segundos são populistas, com um pé no autoritarismo e uma queda pela hegemonia — que é o golpismo por outros meios.

Visto por esse ângulo, Lula, Bolsonaro, Trump, Putin, Orbán, Ortega, Bukele, Maduro estão todos sentados do mesmo lado. Do outro — dos que prezam o diálogo e acham que a sociedade deve controlar o governo, não o contrário —, o que mais tem é cadeira vazia.

Financiadores do fascismo

Com ambição e estratégia, a extrema-direita mundial organiza-se para se estabelecer como um poder incontornável e abalar as estruturas da democracia no Ocidente. Para isso, não hesita em explorar a angústia dos desiludidos e o ódio. Mas, acima de tudo, ergue uma verdadeira rede internacional de apoio capaz de financiar arautos do neofascismo.

As ruas de Londres se transformaram num espelho do que o mundo democrático terá de lidar. Instigada por Elon Musk e organizada por um criminoso, a marcha de 150 mil extremistas contra a imigração foi um verdadeiro terremoto político. Seu líder, Tommy Robinson, já cumpriu cinco mandados de prisão em 20 anos. No Twitter, teve a conta com 400 mil seguidores bloqueada por entoar o racismo e a xenofobia explícita como bandeira. Mas Musk, quando transformou a plataforma em X, restabeleceu o espaço para o britânico. Em poucos meses, ele passou a ter 1,4 milhão de seguidores. O bilionário sul-africano, segundo o US ­Center for Countering Digital Hate, faturou milhões com a volta do ativista britânico às redes sociais. Musk, enquanto isso, passou a pressionar partidos de extrema-direita no Reino Unido a considerar a adesão do ativista em seus quadros.


Dias antes da marcha, as estimativas da polícia local eram de que, no máximo, 40 mil apareceriam para o evento. Pelas ruas de Londres, com uma massa quatro vezes maior, Robinson mostrava-se vingativo. “Eles nos subestimaram”, alertou. Num telão gigante, Musk mandou uma mensagem de confronto. “Ou lutamos ou morremos”. Sua proposta: dissolver o Parlamento britânico.

A demonstração de força não foi um ato isolado. Robinson passou a ser apoiado financeiramente por bilionários norte-americanos. Um deles, Robert Shillman, tem bancado movimentos pela Europa e nos EUA há anos, graças à fortuna amea­lhada no setor de tecnologia. Robinson chegou a receber um salário do bilionário para supostamente aparecer como comentarista de um canal nas redes sociais.

O mesmo Shillman destinou 200 mil euros para o líder da extrema-direita holandesa, Geert Wilders, se defender nas Cortes contra processos que o acusavam de xenofobia e racismo. Em retribuição, o holandês passou a defender o britânico Robinson sempre que ele era detido.

Em 2017, o bilionário recebeu Wilders para uma premiação nos EUA. Num discurso, apontou para a necessidade de uma “luta existencial” para proteger o Ocidente dos ataques de “islamistas e da esquerda, que querem nos destruir”. Naquele instante, ele abriu um cheque e, com uma caneta, anunciou: “Forneço munição para aqueles que estão na linha de frente”.

Em casa, Shillman foi ainda mais generoso. Seu dinheiro financiou a influenciadora Katie Hopkins, que chegou a comparar imigrantes a baratas. Outra beneficiada do dinheiro do bilionário foi Laura ­Loomer, conselheira extra-oficial de Donald Trump e uma das principais disseminadoras de teorias conspiratórias. Seu dinheiro ainda engordou as diferentes campanhas de Trump. Em 2016, ele bancou um cartaz gigante na Times Square, em Nova York, mostrando o republicano como ­Superman. Central ainda no destino do dinheiro de Shillman tem sido o Project ­Veritas, uma operação cuidadosamente desenhada para espalhar desinformação.

Havia, no entanto, uma grande aposta no talão de cheque de Shillman: a turnê de Charlie Kirk pelas universidades norte-americanas e seu programa Turning Point USA. Em 2022, Kirk recebeu o bilionário em seu podcast. O episódio falaria das “lições de vida” de Shillman. O influenciador ainda descreveu o bilionário como um “apoiador incrivelmente generoso do Turning Point USA”.

Não por acaso, quando o cativante arauto da juventude ultraconservadora foi morto, a extrema-direita rapidamente uniu-se com uma mensagem coe­sa: uma declaração de guerra à esquerda e a transformação do ativista numa espécie de mártir global extremista.

Trump, horas depois de confirmada sua morte, afirmou que a esquerda é “diretamente responsável pelo terrorismo que estamos vendo em nosso país hoje”. Prometeu ainda que seu governo encontraria “todos e cada um daqueles que contribuíram para esta atrocidade e para outras violências políticas, incluindo as organizações que as financiam e apoiam”.

“A esquerda é o partido do assassinato”, postou Elon Musk. “A esquerda é terrorista”, escreveu Loomer. “Precisamos calar esses esquerdistas lunáticos. De uma vez por todas. A esquerda é uma ameaça à segurança nacional.” Pelas redes sociais, uma hashtag ganhou força: “Guerra civil”.

Imediatamente, nas ruas de Londres, os organizadores da marcha de Robinson usaram a morte de Kirk para convocar apoiadores para o evento. E funcionou, acendendo todos os alertas entre as democracias sobre a capacidade de atuação em rede da extrema-direita globalizada.

Honramos Deus?

Estamos honrando a ideia da imagem de Deus que existe em todos os seres humanos?
Peter Beinart

Bolsonaro condenado e a dor das vítimas da pandemia

"Fiquei 22 dias em coma. Vi Paulo Gustavo morrer e o desgraçado me imitando com falta de ar! Eu vi isso… estava no pior dia da minha vida! Estava no pico alto da covid! Peguei porque saí para trabalhar para que minha família não ficasse na fila do osso." Esse desabafo foi feito pela profissional de marketing, Swelen Santos, no X, o antigo Twitter, no dia 11 de setembro, logo depois de o ex-presidente Jair Bolsonaro ser condenado a 27 anos de prisão por tentativa de golpe de Estado.

Ela não foi a única. Alguns momentos depois da divulgação da sentença, em meio a comemorações e lamentos de bolsonaristas, a dor das vítimas da pandemia começou a aparecer nas redes sociais em forma de gritos de revolta, de justiça e algum alívio.

Um vídeo onde uma mulher grita da janela: "pai, não foi mimimi! Nós conseguimos, pai. Não era uma gripezinha. Nós vencemos. É para você, pai", viralizou. A imagem é de 2022, gravada depois de Bolsonaro perder as eleições, mas muitos se sentiram representados pela homenagem da moça novamente. O vídeo foi seguido por centenas de declarações parecidas, feitas por pessoas que perderam familiares e amigos durante a pandemia e também se sentiam, de certa forma, vingadas.

"Minha avó morreu por causa da covid. Ela poderia perfeitamente estar conosco. Suas irmãs mais velhas estão todas vivas. É por você, vó", escreveu um jovem médico. Alguns contavam que perderam vários familiares ao mesmo tempo.


Lendo esses depoimentos, é difícil não se emocionar com tanta dor. E também não sentir raiva ao lembrar do descaso, do negacionismo, do atraso na compra de vacinas. Mas o que revolta mesmo é lembrar e rever momentos em que Jair Bolsonaro imitou pessoas com falta de ar (em março e maio de 2021, nos piores momentos da pandemia), respondeu para um repórter a uma pergunta sobre mortes na pandemia com a frase: "Não sou coveiro, tá". E disse: "Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar contando até quando? ", enquanto o Brasil enterrava milhares de pessoas por dia.

É estarrecedor que tenha existido um governante com tanta falta de empatia como Bolsonaro durante a pandemia. É repugnante. Tive amigos que morreram do vírus no Brasil na época, mas não consigo imaginar a dor e a revolta de quem perdeu parentes próximos e como resposta teve o governante do seu país gritando na sua cara "não sou coveiro!". Essas pessoas merecem alguma justiça.

O ex-presidente ainda não pagou pelos seus crimes durante o período. Segundo relatório apresentado pela CPI da Covid, realizada no fim de 2021, o ex-presidente cometeu nove crimes durante a pandemia. Entre eles, estão charlatanismo, crime de responsabilidade e incitação ao crime. Ele não chegou nem a ser julgado. Espero, sem muita esperança, que um dia ele pague por isso também.

Mas ele ser condenado a 27 anos de prisão já é uma lavada de alma para parentes e amigos das quase 700 mil pessoas que morreram de covid no seu governo, e também para todos nós que, de formas variadas, também passamos por esse trauma coletivo.

É tão horrível lembrar do período que às vezes dá vontade de simplesmente esquecer. Mas, como sempre se diz: "é preciso lembrar para que não se repita". E as vítimas da covid e da falta de empatia máxima não podem jamais serem esquecidas.

Bolsonaro foi condenado pelo STF por 4 votos contra 1. Mesmo assim, ainda é preciso que haja pressão para que ele cumpra a pena e pague pelos seus crimes. Depois disso, quem sabe um dia, poderemos torcer para que ele pague pelo que fez (e o que não fez) com as vítimas da pandemia e seus familiares. É pela democracia. Mas é por eles também.

Genocídio de Israel em Gaza: as vidas marrons que não importam

Houve um tempo, anos atrás, em que a imprensa de qualidade esclarecia os leitores com análises ponderadas sobre o que a lei e a moralidade significam, quando aplicadas a situações políticas contemporâneas.

Eles não desapareceram completamente, mas agora são muito menos numerosos no mainstream, como se tivessem sido deliberadamente deslocados para impedir que as pessoas se baseiem em opiniões informadas para pensar por si mesmas. Lembre-se de que a propaganda da "imprensa livre" é muito mais eficaz do que a propaganda estatal. "Grátis para quem?", perguntará o leitor ou telespectador, com razão.

O que cada vez mais vem à tona é a propaganda que reflete os vieses da linha política do veículo de notícias, imersa em pilhas de conversa fiada. Essa é a camisa de força da mídia na qual todos nós fomos amarrados.

Outro aspecto da situação mundial contemporânea é o que parece ser uma dissonância cognitiva generalizada, isto é, o abismo entre a realidade e o que as pessoas escolhem acreditar.

Isso só é crível se estivermos convencidos de que os políticos e os comentaristas da mídia não sabem realmente o que está acontecendo. Porque eles devem saber, mas não é nada crível, especialmente quando fecham os olhos para o genocídio.


Centenas de milhares de civis iraquianos foram assassinados durante a guerra contra seu país, liderada pelos EUA e pelo Reino Unido. Sim, assassinados. Não vamos usar o insípido "morreram" ou "foram mortos", pois este foi um assassinato em massa organizado pelo Estado de um povo indefeso.

O Iraque foi palco de um enocídio, dividido duas vezes, de 1991 a 2003 e, depois, do ataque de 2004.

É claro que não há nada de incomum em genocídios na história da humanidade, e agora temos outro, o genocídio de Gaza, um subconjunto do atual genocídio palestino, algo que é deliberadamente obscurecido com referências incessantes ao falso ponto de partida de 7 de outubro na mídia "ocidental".

Cada genocídio tem características distintas que vão além da característica comum de massacre em massa. Gaza se destaca porque o genocídio foi transmitido ao vivo. Esta é uma estreia pela qual Israel será sempre lembrado, mas Gaza também se destaca porque o Estado se vangloria do que está fazendo, porque a população celebra e pela atenção dada aos detalhes da destruição.

Isso vai desde o bombardeio de precisão de torres residenciais até o tiro certeiro nos testículos de meninos, passando pelo bombardeio preciso de um carro com milhares de balas para matar a jovem escondida lá dentro, sob os corpos de sua família.

Desde outubro de 2023, centenas de milhares de palestinos foram assassinados ou feridos. A perda em massa de membros arrancados dos corpos de crianças e adultos é "transformadora de vidas".

A mídia nos diz quem são os terroristas, não, como poderíamos pensar: os políticos, comandantes militares e soldados rasos responsáveis ​​por esse massacre, mas suas vítimas. Sim, a culpa é toda deles. Eles deveriam ter se deitado para morrer cem anos atrás, em vez de lutar contra o roubo de suas terras.

Charlie Kirk estava do lado de Israel, apesar das dúvidas que começava a ter, já que até mesmo os mais ferrenhos apoiadores de Israel começavam a questionar. Apenas na semana anterior ao assassinato de Kirk, Israel assassinou 500 palestinos em Gaza. Entre as centenas de milhares de mortos ou feridos, outros 500 mereciam apenas uma menção em uma página posterior da mídia "ocidental" saturada com o assassinato de uma única pessoa.

Em homenagem a Kirk, Barack Obama disse: "Esse tipo de violência desprezível não tem lugar em nossa sociedade". A frase foi repetida por Joe Biden ("não há lugar em nossa sociedade para esse tipo de violência") e Kamala Harris ("a violência política não tem lugar na América").

Essas respostas teriam sido melhor expressas, pois a violência política não deveria ter lugar em “nossa sociedade” porque, sem violência, não haveria Estados Unidos da América.

A violência começa com as guerras dos colonos brancos contra as tribos nativas e passa para a violência contra a população negra para garantir a supremacia branca e os valores cristãos, a violência dos colonos uns contra os outros (a guerra civil) e a violência contra presidentes (quatro assassinados, além de outros assassinatos).

Há também a violência jurídica (contra Saccho e Vanzetti e muitos outros), a violência policial/FBI contra inimigos declarados do Estado e a violência corporativa contra trabalhadores. De uma forma ou de outra, a violência sempre foi política.

Respondendo ao assassinato de Kirk, Trump se referiu às "consequências trágicas de demonizar aqueles com quem você discorda" e ao "tipo de retórica que compara americanos maravilhosos a nazistas, assassinos em massa e criminosos" que é "diretamente responsável pelo terrorismo que estamos vendo em nosso país hoje".

Esse "tipo de retórica" ​​é o mesmo tipo de retórica que Trump tem usado, com seus insultos à "Hillary corrupta", ao "Joe Biden corrupto", ao "Bernie maluco" (Sanders) e àquela "degenerada nojenta" Nancy Pelosi. A questão aqui não é a desonestidade ou a falta de decoro de Clinton e Biden, mas a completa falta de decoro.

Não se trata de um falastrão desabafando num bar de esquina. Este é o presidente dos Estados Unidos, mas é isso que acontece quando se elege alguém com um longo histórico de violência verbal para o cargo mais alto do país.

Trump tem seus motivos para se vingar dos democratas e da mídia, mas agora está indo muito além. Os inimigos estão por toda parte e todos precisam ser eliminados. Ele já estava fazendo isso, mas o choque causado pelo assassinato de Kirk permitiu que ele imediatamente ampliasse a caça às bruxas para um ataque em larga escala.

Agora, Trump está perseguindo organizações que "financiam e apoiam a violência política", bem como "aqueles que perseguem nossos juízes e agentes da lei" e "todos os outros que trazem ordem às nossas ruas" (incluindo os agentes mascarados do ICE que mataram alguém nas ruas outro dia).

Esses inimigos do povo e do Estado não são radicais ou organizações terroristas. Nem são os esquerdistas demonizados por Trump, porque não há esquerda na corrente dominante, exceto os mais moderados, e eles são muito poucos em número.

No mundo Trump, os inimigos internos são liderados pelas universidades e seus jovens, as vítimas. Harvard já está sendo desfinanciada. Professores estão perdendo seus empregos e alunos, suas bolsas de estudo, ou estão sendo expulsos do país por se oporem ao genocídio na Palestina, apoiado por Trump e sua comitiva.

"Antissemitismo" é o código para se livrar deles. Nesse sentido, a UC Berkeley acaba de entregar os nomes de 160 professores e alunos suspeitos ao Departamento Federal de Educação, e isso vai continuar acontecendo.

O assassinato de Charlie Kirk está transformando a crescente onda de fascismo populista em uma maré de avalanche em outros lugares. Em Londres, cartazes de Kirk foram erguidos no protesto em massa da supremacia branca anti-imigração "Unite the Kingdom". Kirk é agora uma figura icônica e mártir da extrema direita global.

A figura dominante no protesto em Londres foi o amigo antimuçulmano de Israel e ex-membro assalariado do fascista BNP (Partido Nacional Britânico), Tommy Robinson. Elon Musk enviou um grito de guerra incendiário por vídeo para Londres e o mundo, dizendo aos manifestantes para "revidarem ou morrerem".

Nos EUA, o assassinato de Kirk e o "nacionalismo cristão" de Kirk estão fazendo o sentimento público retornar à retórica do padre populista do rádio dos anos 1930, Padre Coghlan.

Repreendido em suas transmissões semanais para milhões de pessoas, seus inimigos do povo eram comunistas, socialistas, capitalistas, marxistas, banqueiros e judeus, todos se unindo para destruir os Estados Unidos. Sua Frente Cristã era outro veículo para sua bile. Joe McCarthy e o macartismo, voltados para comunistas, marxistas, a ONU e o "unimundialismo", surgiram na década de 1950.

Além do fato de que fazer violência e fazer tortas de maçã são coisas tão americanas quanto as outras, há a longa história de violência americana descarregada em outros países na sede de dominação global e dos recursos de outras pessoas.

"A violência não tem lugar na nossa sociedade", dizem Obama, Biden e Harris, quando claramente tem, mas a violência americana em outras sociedades, infinitamente mais destrutiva do que qualquer coisa em casa, não deveria ter lugar na sociedade americana?

Os democratas são tão violentos quanto seus rivais republicanos armados. Afinal, foi um democrata que ordenou o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, e foram democratas que levaram os EUA a guerras na Coreia e no Sudeste Asiático que mataram milhões de civis.

Na sua época, Barack Obama assinava uma ordem executiva toda terça-feira para "execuções" seletivas em países distantes e empobrecidos (principalmente o Iêmen), que matavam inúmeras mulheres e crianças, além de seus alvos pretendidos.

Obama então elevou o assassinato à destruição de um país inteiro, a Líbia, com base em mentiras contadas na ONU para justificar a imposição de uma zona de exclusão aérea. Milhares foram mortos, Muammar Al-Gaddafi foi assassinado e o país mais desenvolvido da África foi destruído quando Obama e a OTAN libertaram sua vítima. Isso foi verdadeiramente "violência desprezível" cometida pelo homem que agora condena a violência desprezível.

Em suas redes sociais, Megyn Kelly chorou ao saber que Charlie Kirk havia sido assassinado. Isso era compreensível. Elas compartilhavam o mesmo viés ideológico de direita, e Kirk era um amigo pessoal, mas compare as lágrimas dela com sua reação à morte e à fome de crianças em Gaza.

Ela atribuiu isso certa vez aos "palestinos e suas incríveis habilidades de propaganda... eles colocaram tudo isso em cena para garantir que víssemos". Na opinião dela, essas "afirmações" não eram reais, mas sim parte do "compromisso vitalício dos palestinos com a propaganda".

Kelly não pode ser perdoada por não saber nada melhor. Ela é inteligente, articulada, formada em direito e perfeitamente capaz de descobrir a verdade em Gaza, em vez de encobri-la com essas declarações idiotas.

Comparada à torrente de lágrimas por Charlie Kirk, Megyn Kelly não derramou nenhuma pelas vítimas do massacre israelense em Gaza. Só recentemente ela recuou um pouco em seu apoio a Israel, não porque o país esteja cometendo genocídio, mas porque se tornou o vilão do mundo "ao deixar isso continuar por tanto tempo". Então, basicamente, o problema é de relações públicas.

Depois, temos Trump, o assassino de Qasim Suleimani, pedindo repetidamente a Israel que "termine o trabalho" em Gaza, destruindo-a e expulsando seu povo.

Trump ficou tomado de tristeza, raiva e choque com o assassinato de Charlie Kirk, mas não de nada com o massacre em massa de crianças em Gaza. Por que ficaria, se ele é o responsável por isso?

Até George Bush se juntou, lamentando “este jovem assassinado a sangue frio”, enquanto permaneceu indiferente às centenas de milhares de pessoas assassinadas no Iraque durante sua presidência e a de seu pai.

Isso não é dissonância cognitiva. Todos os poderosos sabem exatamente o que está acontecendo em Gaza. Eles não podem deixar de saber. Obama sabe. Megyn Kelly sabe, todos eles sabem. Israel pode ser repugnante para eles, mas eles não vão dizer isso.

Eles têm coisas mais importantes em mente do que genocídio. Seus índices de audiência, seus patrocinadores, seus anunciantes, sua riqueza pessoal, suas conexões políticas e o poder do lobby israelense. Eles não vão se colocar em risco. Nem mesmo o assassinato em massa de crianças os move à ação.

Lágrimas sem fim por Charlie Kirk, mas nenhuma lágrima pelas dezenas de milhares de vidas ceifadas por mísseis israelenses, projéteis de tanques e fogo de franco-atiradores em Gaza. Todos assassinados por Israel com as armas e a cobertura política fornecidas pelos EUA.

Mesmo após séculos de destruição imperialista, algumas coisas não mudam. Vidas negras importam em casa (ou deveriam importar), mas massas de vidas negras e pardas longe de casa não. Mesmo uma vida branca conta mais. As dezenas de milhares de palestinos mortos são apenas mais um atropelamento na estrada da "civilização ocidental" e do posto avançado bárbaro que ela implantou no coração do Oriente Médio.

Martírio de Charlie Kirk dá jeito a Trump

Os fatos. O primeiro de todos: Charlie Kirk, um influentíssimo e bem financiado ativista ultraconservador, um eficaz e proselitista embaixador da nova direita radical e do trumpismo junto da juventude, nas escolas e nas redes sociais, foi assassinado a tiro ao fazer uso da palavra, numa universidade no Utah, no passado dia 10. Foi vítima de um crime repulsivo para quem preza sociedades livres e democráticas, onde se possa dizer o que se pensa, mesmo que se pense disparates. Não devia ser necessário fazer este ponto prévio, mas aqui estamos.

A condenação do assassinato de Kirk não tem de se tornar num exercício hagiográfico. Entre os tais disparates que Kirk tinha direito a pensar e a dizer, dentro da extraordinária latitude de exercício de liberdade de expressão que os Estados Unidos costumavam permitir, estavam várias opiniões criticáveis por muitos.


Para Kirk, e perante a longa sucessão de tiroteios em escolas e outros espaços públicos nos EUA, “algumas mortes todos os anos” eram “o custo” justo do direito à posse de armas. Era crítico do marco legislativo de 1964 que pôs termo à discriminação legal de pessoas afro-americanas, achando que tinha sido sobretudo um “ataque” contra os americanos brancos, e admitia que ficava nervoso de cada vez que apanhava um piloto negro no avião, desconfiando por princípio das suas qualificações.

Os judeus, dizia Kirk, controlavam “tudo” e eram os responsáveis pela “grande substituição” demográfica que denunciava (leia-se: pelo fato de os EUA serem cada vez mais diversos e menos brancos e anglo-saxónicos, uma evolução que considerava nociva; era contudo um apoiante de Benjamin Netanyahu. Dizia-se um feroz defensor da liberdade de expressão, mas a sua organização juvenil, a Turning Point USA, fazia listas de professores conotados com causas sociais ou de esquerda, incentivando boicotes e despedimentos.

Uma coisa não justifica outra. Oferece-lhe contexto, contudo. O presumível autor do crime, Tyler Robinson (e diz-nos sobretudo o governador republicano local, Spencer Cox, figura sóbria ao lado do desvario comunicacional do FBI e da Administração Trump), odiaria Kirk e o que este defendia. Terá passado por um processo recente de radicalização política, que o afastou dos ideais da sua família conservadora, e manteria uma relação com uma pessoa em processo de transição de gênero (que Cox, novamente, faz questão de ressalvar que está “chocada” com o crime e que tem sido “muito cooperante” com as autoridades), colocando-o nos antípodas das posições transfóbicas de Kirk.

Quando ainda falta saber bastante sobre o presumível homicida, que se mantém em silêncio, e sobre os seus motivos, o pouco que se conhece, o tal contexto, é suficiente para traçar um cenário plausível de violência política.

É tentador, e relativamente fácil, colocar Robinson e a sua ação num dos lados do espectro do extremismo político, à esquerda, num pólo aparentemente oposto ao de Kirk. Há, no entanto, uma dimensão sincretista e niilista visível nas inscrições que o atirador desenhou nos cartuchos das balas que foram encontradas na cena do crime, que é semelhante à que se lia nos escritos deixados por Robin Westman, que matou duas crianças numa igreja do Minnesota em agosto, e que encaixa também no pouquíssimo que se sabe da vida de Thomas Matthew Crooks, o jovem que tentou matar Donald Trump em julho de 2024, e que nos exige cautela.

Crooks, que odiaria Trump, tinha escrito mensagens xenófobas e anti-semitas em fóruns online. Westman, que se encontrava num processo de transição de género, tanto escreveu “morte a Trump” como “seis milhões não foi suficiente”, e tinha uma aparente obsessão com extremistas sérvios e o massacre anti-muçulmano de Christchurch. Robinson tanto gravou inscrições anti-fascistas como escreveu uma piada homofóbica nos cartuchos.

No que acreditavam afinal os três? Deixam para trás um puzzle mais complexo para montar do que as pistas claras de outros atiradores. Mesmo que Robinson e Crooks sejam autores de actos de violência contra figuras republicanas, de direita, e que Westman tenha atacado crianças cristãs, a sua motivação exacta é nebulosa e suscita interrogações sobre o papel do tal niilismo que parece reinar nas subcaves da Internet.

Outro exemplo ainda: o de Nikita Casap, de 17 anos, detido em Março no Wisconsin, que assassinou os pais e que queria matar Trump para “acelerar o colapso” da sociedade norte-americana. Seguia a Ordem dos Nove Ângulos, um grupo extremista que funde crenças pagãs e nazis, e que pertence a uma constelação de organizações como a 764, bastante mais recente e violenta.

O que aconteceu no Utah, tal como o que aconteceu no comício de Trump na Pensilvânia, no ano passado, pode por isso ser bastante mais complexo do que é imediatamente aparente, e pode ter mais a ver com aquilo a que Spencer Cox, ele uma vez mais, apontou o dedo no dia seguinte ao assassinato de Kirk: ao “cancro” das redes sociais e à violência extrema das imagens e dos escritos que circulam na internet, os quais “não temos sequer capacidade biológica de processar”, como disse o governador republicano, e que parecem ter um impacto particularmente perigoso em jovens socialmente isolados, psicologicamente fragilizados e com fácil acesso a armas.

Nesse sentido, será Kirk tão diferente das outras vítimas cujas mortes o ativista disse serem o preço a pagar pela liberdade de posse de arma?

Mas mesmo antes de haver um suspeito detido, um rosto e um nome a procurar, Trump já tinha uma narrativa para a morte de Kirk e um guião das consequências. Kirk tinha sido morto por alguém incentivado pelos “radicais lunáticos de esquerda” que equiparam os republicanos aos “nazis”. Dava voz ao que, minutos após o atentado, se dizia nas franjas mais radicais do trumpismo, de Steve Bannon a Laura Loomer, do proscrito Alex Jones ao atual rosto do horário nobre da Fox News, Jesse Waters: que os EUA estão agora em “guerra” e que a direita, com o apoio do aparelho do Estado, tem um pretexto e uma oportunidade para perseguir e punir a esquerda.

A reação de Trump, disse Barack Obama, aproveitando para elogiar Cox, afasta-se dos exemplos passados de moderação presidencial (após o 11 de Setembro, o republicano George W. Bush fez questão de dizer que os EUA não estavam “em guerra contra o islão”). O Presidente é um dos responsáveis pelo atual ambiente de polarização e radicalização ao “chamar adversários políticos de vermes, de inimigos que têm de ser destruídos”, acusou o democrata. Trump, alertou Obama, aproxima agora o país de “uma crise política de um tipo que nunca vimos”. Em resposta, a Casa Branca disse que era Obama precisamente “o arquiteto da divisão política atual”.

O que tem acontecido nos últimos dias, desde despedimentos de professores e jornalistas por comentários (não necessariamente desrespeitosos) sobre a morte de Kirk à elaboração de listas públicas com dezenas de milhares de outros nomes a demitir e ostracizar, ou à primeira emissão póstuma do programa de Charlie Kirk, conduzida pelo vice-presidente J.D. Vance, onde Stephen Miller, conselheiro presidencial, prometeu “usar todos os recursos disponíveis dos departamentos de Justiça e Segurança Interna, e de todo o Governo, para identificar, desarticular, desmantelar e destruir” organizações ditas “terroristas” de esquerda, é mais um exemplo da instrumentalização de crises reais ou imaginárias por parte da Administração Trump para executar um projeto político de tendência autoritária.

Este guião já tinha sido seguido nos últimos meses. O pretexto do combate ao antisemitismo serviu para a Administração Trump tomar controle de parte do ensino superior e para deter ativistas pró-palestinos. A desculpa do combate ao crime colocou militares nas ruas de cidades sob gestão democrata. Supostos excessos esquerdistas e fábulas sobre fraudes financeiras levaram ao despedimento de milhares de funcionários públicos, ao fim de décadas de ajuda externa, da autonomia dos museus e bibliotecas, ou do financiamento da rádio pública. Os alegados abusos dos parceiros internacionais deram azo a um reordenamento geopolítico cujos efeitos ainda são imprevisíveis.

Também são imprevisíveis os efeitos da “purga” que se desenha após a morte de Kirk. Mas são potencialmente mais graves, pelo menos no plano interno. A frequência da palavra “guerra” e os alertas de ex-presidentes e das últimas figuras lúcidas do Partido Republicano deviam alarmar a Casa Branca. Não há, contudo, desta vez, adultos na Sala Oval.