segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Comandante máximo

Fidel Castro, ditador perpétuo dos cubanos, deve ter ficado louco de inveja dos promotores do Ministério Público Federal. Como podem eles ter tido a ousadia de lhe roubar o nome que tanto preza? Diria ele: comandante máximo não pode ter outro igual a mim! Posso ser amicíssimo de Lula, porém tudo tem limites!

Para Lula, parece que não. Não contente de ter sido eleito e reeleito presidente, acreditou seu poder ter sido ungido por algum tipo de beneplácito absoluto, que lhe autorizava tudo fazer. Regras, leis e instituições deveriam estar simplesmente a seu serviço.

Intitulou-se um redentor dos pobres. Até esboçou a origem de um novo calendário, uma espécie de ano zero da história nacional, que deveria começar a ser contada de outra maneira. Seu adágio foi: “Nunca dantes em nosso país!”.

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E assim foi. O Estado tornou-se um mero instrumento de sua política, com o seu partido introduzindo-se em todos os poros de sua máquina. Nada deveria ficar imune à sua influência, nenhuma instância deveria ficar a salvo desta sua nova crença. O que para uns seria crime, para ele tornou-se uma mera forma de exercício do poder.

Desobedecer às leis tornou-se um jogo semântico, como se palavras não pudessem mais expressar o certo e o errado, o justo e o injusto, o bom e o mau. A partir desse novo momento inaugural da história deste país, a linguagem política e — por via de consequência — a moral e a jurídica deveriam ser incorporadas a uma nova metalinguagem, a petista. Novos significados seriam atribuídos a nosso linguajar corrente.

Note-se que as defesas de Lula e da ex-presidente Dilma, assim como, de resto, o PT e os seus movimentos sociais, atribuem a conceitos como “prova”, “democracia” e “golpe” outros significados, para eles, evidentemente, os únicos verdadeiros. Todos os que discordem desta sua nova atribuição de significado são imediatamente rotulados de “conservadores”, “representantes da direita”, “golpistas”, heréticos, em suma.

Para os detentores desta ideologia, não há “provas”, isto é, qualquer prova produzida contra eles não possui esse significado. É uma mera falsificação de “golpistas” e “reacionários”, a saber, os jornais, a mídia, o Ministério Público, o Judiciário e assim por diante. Ou seja, todos os que defendem o estado democrático de direito!

Dilma foi afastada da Presidência da República em ausência completa de “provas”. Lula está sendo denunciado, com falta de “provas”. Apesar de nada ter sido provado contra eles, os tesoureiros do PT e líderes do partido estão presos. Outros foram condenados também sem provas. Nada para eles é probatório, pois, por definição, nada poderia atingi-los. Estariam imunes à lei, que a eles não se aplicaria.

Golpe, aliás, para quem? Só se for para intelectuais e artistas que vivem nos desvarios ideológicos e que se acostumaram à subserviência de guardiães do novo linguajar. Tornaram-se servos deste novo poder, traindo a razão que deveriam representar. Só se for para incautos e militantes que, desbussolados, procuram um repouso dogmático para se eximirem da tarefa de pensar.

Enchem a boca para falar de democracia, quando nada mais fizeram do que a sua instrumentalização, com o intuito de dar uma vestimenta politicamente correta aos crimes cometidos. As instituições democráticas foram sendo enfraquecidas enquanto se diziam os seus defensores. Seguiram, de outra maneira, a máxima bolivariana de subverter a democracia por meios democráticos. Estão, agora, indignados pelo fato de o seu estratagema ter sido descoberto.

Peguem a Petrobras. Um dos maiores patrimônios brasileiros foi literalmente saqueado. Tornou-se a fonte de um imenso propinoduto, que envolvia empreiteiros inescrupulosos, funcionários ávidos de enriquecimento e todo um sistema criminoso voltado para preservar o poder petista. E, no entanto, na curiosa linguagem partidária, eles estão atualmente a defendendo contra a privatização! Ocultam o fato real: ela foi privatizada partidariamente!

Lula e os petistas não são muito originais. Adotaram o critério da discriminação da política entre amigos e inimigos, tão teorizado por um intelectual nazista, Carl Schmitt. Em sua versão tupiniquim, adotou a versão do “nós” contra “eles”.

O “nós” expressaria os representantes da verdade que salvariam os pobres, mostrando-lhes o seu verdadeiro caminho, conforme o qual os crimes seriam meros instrumentos redentores, um detalhe menor e insignificante.

O “eles”, por sua vez, designaria todos os que se opõem a essa tarefa religiosa de transformação social, ocupando-se de detalhes sem nenhum valor como crime, responsabilidade e estado de direito. Ficariam presos a minúcias conservadoras e reacionárias.

Em seu discurso desta última quinta-feira, Lula mostrou-se, novamente, um excelente ator, sabendo muito bem representar o seu personagem de “líder máximo”, embora em sua versão de vítima. Em todo momento, eximiu-se de qualquer responsabilidade, não tendo cometido crime algum.

Se algo está sendo feito contra ele, é porque, no ano zero da história brasileira, empreendeu a redenção dos pobres, que estaria sendo, agora, desmantelada. Lula pretende se colocar de vítima, quando, na verdade, esta posição é de toda a sociedade brasileira. A vítima mudou de nome.

Graças à política petista, aliás, os pobres estão ainda mais pobres após o populismo socialista ter sido implementado. O desemprego alcança aproximadamente 12 milhões de pessoas, ou seja, atingindo em torno de, no mínimo, 44 milhões de indivíduos, considerando quatro pessoas por família. O número pode ser maior. O céu foi prometido, porém o que se abriu foi o caminho do inferno.

Triste destino do PT. Escolheu, ademais, atrelar o seu futuro ao “comandante máximo”, a essa estrela cadente, assumindo toda a sua defesa e apegando-se a esta pantomina. Se assim continuar, sucumbirá com ele. Talvez não lhe reste outro caminho.

Denis Lerrer Rosenfield

Boca do Inferno

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Detalhe de O Juízo Final,
de Hans Memling (c. 1430-1494)
Convém a gente sempre se despedir. Mudar sem dizer adeus ao passado não é saudável. Para abraçar o futuro, fechar a porta do passado é preciso. Simples assim.

No festival de mentiras e deprimente sequencia de chicanas que vivemos nos últimos anos, é sempre bom a gente lembrar, mas sempre sabendo deixar para trás. Se possível, com poesia. Ninguém merece sofrimento sem beleza.

Vale a pena lembrar-se do que passamos. E, quem sabe, parar de cometer os mesmos erros. Gregório de Mattos, séculos atrás, explicou tudo:

“A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.”


E isso não é pouco. Mas não é tudo. Difícil explicar como chegarmos lá, e, especialmente, como lá permanecemos em estado catatônico por mais de uma década. Mas ainda bem que passou. Por isso, aqueles que já caíram ou já se foram, já foram homenageados pela sabedoria do Boca do Inferno:

“Quem sobe ao alto lugar, que não merece,
Homem sobe, asno vai, burro parece,
Que o subir é desgraça muitas vezes.
A fortunilha, autora de entremezes
Transpõe em burro o herói, que indigno cresce:
Desanda a roda, e logo homem parece,
Que é discreta a fortuna em seus reveses.
Homem sei eu que foi Vossenhoria,
Quando o pisava da fortuna a roda,
Burro foi ao subir tão alto clima.
Pois vá descendo do alto onde jazia,
Verá quanto melhor se lhe acomoda
Ser home em baixo, do que burro em cima.”

Dai que agora que o antigo este finalmente velho, vale a pena olhar para trás uma ultima vez. Lembrar pelo que passamos, e torcer para não cometer erros repetidos. Ficar com o novo, por mais imprevisível que seja. E apostar na mudança e evolução continua e incremental. Sabendo que nada mudara de repente. Tudo toma tempo. E que existe boa chance de que os beneficiários das mudanças positivas de hoje ainda estão por nascer. Mas a alternativa é pior.

Mérito na Olimpíada, cotas nas universidades?

O magnífico visual da cerimônia de abertura, preparada pelos talentosos Andrucha Waddington, Daniela Thomas, Fernando Meirelles e Débora Colker, teve até uma apresentação sóbria e cientificamente correta sobre os problemas do aquecimento global e suas consequências, preparada por cientistas brasileiros, como Paulo Artaxo. O Brasil, que era um vilão nessa área por causa do desmatamento da Amazônia, apareceu para uma plateia de 3 bilhões de pessoas como um país sério e responsável que está fazendo sua parte para tentar resolver o problema.

Quando somente a meritocracia não funciona nas circunstâncias atuais - exemplo aplicável, também, em outras situações.:
Mas a lição fundamental da Olimpíada, a nosso ver, é que ela abre espaço para confrontos em que só o talento e a competência têm valor. A meritocracia é o fator determinante em todos os eventos, não há favorecimentos de espécie alguma e os melhores vencem, levando suas medalhas de ouro, prata ou bronze.

Na Olimpíada não há distinções entre ricos e pobres, classes sociais, religiões e cor da pele, mas premiação dos melhores; não importa de onde venham, Etiópia, França ou Brasil: vencem os melhores. A riqueza de países como EUA ou Inglaterra permite preparar mais atletas, mas não é uma garantia de sucesso.

São comoventes as histórias contadas por atletas de famílias humildes ao receber as medalhas sobre como superaram seus problemas com o esforço próprio e dedicação. Competir numa escala mundial e vencer nas provas é a melhor forma de se autoafirmar como ser humano e cidadão. Curiosamente, esses mesmos critérios são abandonados sistematicamente no Brasil com a introdução de sistemas de cotas para assegurar vantagens a corporações, alguns grupos sociais e até étnicos.

Corporações foram muito poderosas no passado, mas o avanço da democracia como forma de governo nos séculos 19 e 20 abriu horizontes mais amplos em muitos países. As bandeiras da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade criaram a figura da cidadania, em que todos são iguais perante a lei e têm as mesmas oportunidades.

A introdução de cotas para proteger certos grupos pode se justificar em casos muitos especiais, como o das pessoas com deficiências físicas, mas pode levar a distorções e discriminações intoleráveis, como ocorreu no século 20 com os sistemas totalitários, particularmente na Alemanha nazista, que levou ao holocausto dos judeus. Assistimos hoje à tentativa do mesmo tipo de tentar criminalizar o islamismo, que deve ser energeticamente repelida.

No caso brasileiro, em que distinções raciais não fazem sentido, com a enorme miscigenação que caracteriza nosso país, a introdução de cotas adquiriu características particularmente negativas no acesso às universidades públicas, que são gratuitas e só conseguem atender cerca de 25% dos estudantes que nelas desejam ingressar. Os restantes 75% pagam por seus estudos em universidades privadas. Os estudantes que concluem o ensino médio competem por esses 25% de vagas em exames vestibulares que selecionam os mais capacitados.

Essa é uma situação parecida com uma competição olímpica, em que os mais talentosos são escolhidos.

Poder-se-ia argumentar que o desejável seria que todos os que concluíssem o ensino médio pudessem cursar uma universidade pública, como é na França ou na Itália, mas simplesmente não existem recursos públicos para tanto. Em contrapartida, em muitos países do mundo as universidades públicas cobram anuidades, como as privadas.

No caso das universidades federais, seu custo representa mais de 70% dos recursos do Ministério da Educação, que tem um dos maiores orçamentos do governo federal. Se atendesse a todos os que desejam matricular-se em universidades públicas, seu orçamento teria de quadruplicar. Nessas condições, cabe aqui perguntar para que servem as universidades públicas. Pelo artigo 207 da Constituição federal, elas têm por finalidade o ensino, a pesquisa e a prestação de serviços à comunidade, e não apenas o ensino, como a grande maioria das universidades privadas.

A primeira universidade pública no País, a Universidade de São Paulo (USP), criada em 1934, introduziu a ideia de promover a investigação científica e cultural e, portanto, a criação de um grande mercado de profissionais capazes de identificar as tecnologias modernas e aplicá-las para o desenvolvimento do Brasil. Essas atividades têm alto custo, mas o retorno desses investimentos se vê hoje com a modernização do País.

Se essa é a finalidade das universidades públicas, é evidente que é preciso escolher os estudantes mais adequados para fazê-lo e o único critério para tal é o mérito.

Resolver problemas sociais e dar oportunidades aos mais pobres são objetivos importantíssimos, mas não é nas universidades, e sim no ensino fundamental e médio, que isso deve ser feito. Tentar resolver esses problemas facilitando o ingresso em universidades públicas pode ser mais fácil, mas não é o método adequado.

Universalizar o ensino público de boa qualidade no nível fundamental e médio foi uma das bandeiras da Revolução Francesa de 1789, mas esse objetivo só foi atingido cerca de 80 anos depois, com o magnífico sistema de liceus franceses, apesar da riqueza de um país como a França.

Introduzir cotas nas universidades públicas brasileiras como instrumento para compensar/corrigir discriminação racial ou social é muito mais fácil e menos oneroso do que corrigir o problema fundamental, que é melhorar a qualidade e a equidade do ensino fundamental e médio para que todos tenham as mesmas oportunidades no acesso ao ensino superior.

Pura mitologia

João Santana captou de forma certeira a essência de Luiz Inácio da Silva quando contou como explorou para efeito de propaganda política a dupla personalidade do personagem: o fortão e o fraquinho. Ambos viventes do mesmo corpo entram em cena de acordo com a necessidade.

O forte atua para intimidar e se vangloriar; o fraco para fazer-se de mártir. O primeiro encarna o humilde que virou poderoso contra tudo e contra todos e o segundo faz o papel de vítima das elites, alvo de preconceito de classe, um injustiçado, mas resistente benfeitor dos pobres. Santana revelou o truque ao público há dez anos e até hoje ainda há quem se deixe iludir por essa artimanha.

E não se fala aqui do fiel depositário dos benefícios sociais, que não os vê como direito, mas como concessão paternal. Fala-se das camadas mais informadas, cientes de todos os fatos e atos que revelaram a mentira da bandeira do PT pela ética na política. Caíram no conto quando da condução coercitiva de Lula para depor na Polícia Federal e voltaram a morder a isca quando da denúncia apresentada pela força-tarefa da Lava Jato, na semana passada.


Por ocasião da coercitiva, ato que já havia sido aplicado a vários investigados na operação, Lula encenou o fortão: agressivo, avisou que haviam tentado abater “jararaca”, mas não conseguiram matá-la.

Atingiu o objetivo de inocular desconfiança na atitude dos investigadores que, por essa versão, teriam cometido abusos, exagerado, montado um “circo”. Pois de lá para cá surgiram novos indícios, novas revelações contidas nos depoimentos das delações premiadas, que justificavam o ato. Lula deveria sim ser tratado como vários outros investigados também conduzidos da mesma forma a prestar esclarecimento sem que houvesse reação contra o “absurdo”.

A diferença é que o ex-presidente é o que resta ao PT e, nessa condição, precisa alimentar o mito do intocável. Naquela ocasião, recorreu ao fortão que mete medo. Nessa recente, subiu ao palco o fraquinho que produz necessidade de expiação de culpa e resgate da “dívida social”. Ambos cultivam terreno fértil à semeadura da enganação.

A contundente, adjetivada e detalhada exposição das razões pelas quais foi apresentada a denúncia contra Lula propiciou a propagação da ideia de que os procuradores extrapolaram, produziram um show e nada comprovaram que pudesse corroborar a convicção de que o ex-presidente esteve no topo do esquema de corrupção que sem seu conhecimento não teria como funcionar naquela dimensão.

Fizeram isso de maneira transparente, apresentando as evidências até agora recolhidas, respondendo depois às perguntas dos jornalistas. Obviamente não revelaram tudo. Quando o Ministério Público divulga resultados de investigações é porque detém muito mais informações para respaldar as afirmações.

Já Lula fez as coisas de forma nebulosa. Pronunciou-se sem abordar o mérito das acusações, protegido pelos aplausos da militância reunida no Diretório Nacional do PT. Deu a satisfação que quis, fugindo daquelas que seria instado a dar caso tivesse aberto espaço aos questionamentos da imprensa.

O ex-presidente acusou o golpe recebido com a denúncia. Disse que não estava “entendendo” o que se passava, mas compreendia perfeitamente o que daqui em diante pode lhe acontecer. Fosse de fato inexistente a substância do material na posse do MP, ele teria rebatido ponto a ponto sem o auxílio de recursos histriônicos nem teria precisado sustentar sua diatribe aos procuradores numa mentira: “Não temos provas, mas temos convicção”, a frase de impacto que nunca foi dita.

Lula zombou do Ministério Público sem que isso sirva para ajudá-lo na Justiça. Mas deu motivos aos interessados em atrapalhar as investigações que, não por acaso, lhe deram toda razão.

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O ataque previsível de Lula

Ninguém imaginaria que Lula receberia em silêncio uma denúncia tão avassaladora quanto a que a força-tarefa da Lava Jato apresentou na quarta-feira. E ninguém se surpreende ao ver que, mais uma vez, o ex-presidente recorre à mentira e às bravatas. Como quando citou o já famoso “não temos provas, mas temos convicções”, uma frase inexistente atribuída ao procurador Deltan Dallagnol, criada e espalhada pela blogosfera de esquerda para tentar desmoralizar a Lava Jato. Ou quando disse que “irá a pé” para a prisão caso fique comprovado que ele é culpado de corrupção.

O discurso juntou todos os elementos já tradicionais no palavrório lulista, suficientes para montar uma cartela de bingo que o público pode preencher a cada evento desses. A infância pobre, o “ódio das elites”, o choro, a “entrega do pré-sal”, o “golpe”, o “fortalecimento das instituições”, as comparações com Jesus Cristo, o desconforto dos ricos com o “pobre andando de avião”. Novidade, no discurso de quinta-feira, foi o insulto aos funcionários públicos concursados, que segundo o ex-presidente são menos honestos que os políticos. Afinal, o político, “por mais ladrão que ele seja, tem que ir para a rua encarar o povo e pedir voto”, enquanto o servidor público “se forma na universidade, faz um concurso e está com emprego garantido o resto da vida”. Lula, o líder máximo do Partido dos Trabalhadores, zomba sem dó dos trabalhadores – e, indiretamente, das instituições que esses servidores ajudam a fazer funcionar –, ao classificá-los como inferiores a um político demagogo que se elege enganando o povo.

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E o voto popular, no discurso do pai da “propinocracia”, tem um poder mágico que vai muito além do mandato popular para se exercer um cargo eletivo. O voto, para Lula, é ao mesmo tempo uma absolvição e uma carta branca. O político “é chamado de ladrão, é chamado de filho da mãe, é chamado de filho do pai, é chamado de tudo, mas ele tá lá, encarando, pedindo outra vez o seu emprego” e, se o povo atende esse pedido, estaria perdoando as roubalheiras passadas e autorizando as roubalheiras futuras. Afinal, quem critica esquemas como o mensalão e o petrolão “não tem noção do que é um governo de coalizão”. Sujar-se, e sujar-se muito, é condição sine qua non para governar, nesse raciocínio. Não havia escolha: Lula teve de assumir a condição de “maestro”, “general”, “comandante máximo” do saque ao Estado, para usar as expressões da força-tarefa da Lava Jato. Foi o povo que lhe deu essa missão nas urnas, quando fez dele o presidente da República.

Acontece que só na mente de Lula e da claque presente a seu discurso isso serve de defesa contra a denúncia concreta oferecida pela força-tarefa. No mundo real, valem as evidências colhidas e apresentadas nas centenas de páginas que o juiz Sergio Moro terá de analisar. Nem a história de vida, nem as vitórias eleitorais, nem as eventuais realizações de Lula na Presidência fazem dele um homem inimputável. E, se o melhor que a defesa consegue alegar diante das quase 150 páginas da denúncia, é que ele nunca passou nem uma noite sequer no triplex, que a papelada do imóvel não tem o seu nome – quando a acusação é justamente a de que o ex-presidente tramou para ocultar a real propriedade do apartamento –, é bem possível que Lula tenha de escolher um bom par de tênis para cumprir sua promessa.

Para onde corre o Brasil?

Tudo que está em questão no Brasil, sem entrar no mérito de para onde o país caminha, é obra do despertar de uma sociedade mais crítica, convencida de seus direitos de uma forma como nunca havia estado no passado.

É uma sociedade consciente de que está sendo observada e levada em conta pelo poder. E até de que é temida por ele. Em seu discurso de posse, Cármen Lúcia, a nova presidente do Supremo Tribunal Federal, apresentou a sociedade como a primeira autoridade do Estado. Chamou-a de “Sua Excelência, o povo do Brasil”.

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A maior parte da inquietação que vive o país se deve à nova tomada de consciência de uma sociedade que recuperou sua voz e não está disposta a se calar. As instituições do Estado sabem disso, tanto que hoje os três poderes se movem, em grande parte, ao ritmo dos humores e das reivindicações dessa sociedade. Todos os políticos estão atentos ao que pensa a opinião pública antes de tomarem uma decisão, com medo de perder seu apoio.

Um exemplo vivo foi a votação em massa dos deputados contra Eduardo Cunha, o envolvido em corrupção que havia sido o todo-poderoso presidente da Câmara, aquele a quem se temia ou se reverenciava. Até seus amigos do coração votaram contra ele para cassar seu mandato, temendo uma represália de suas bases eleitorais. Tudo para não se indispor com uma sociedade que está hoje em carne viva e vê negativamente os políticos.

Para saber se essa nova força de uma sociedade que parecia adormecida e hoje está consciente de seu poder de influência caminha para uma maior democracia ou, ao contrário, em direção a uma involução autoritária, é necessário observar o que ela está exigindo do poder.

A julgar pela atitude da grande maioria da sociedade, pode-se dizer que essa nova opinião pública brasileira exige valores mais democráticos, formas alternativas à velha política, assim como uma maior intransigência contra a corrupção.

Gregos e troianos, que chegam a entrar em confronto por causa de alguns temas político-partidários, acabam concordando quando se trata de exigir maior limpeza moral de seus governantes, maior justiça social, uma luta mais dura contra todas as discriminações e maior liberdade de expressão.

A própria polêmica em torno do impeachment de Dilma Rousseff, que dividiu o país, foi alimentada, pelos dois lados, por razões de defesa dos direitos democráticos. Ninguém saiu às ruas para pedir a volta da ditadura militar ou para restringir liberdades, e tem sido significativo o apoio em massa ao trabalho dos juízes que, embora criticados em seus possíveis excessos, estão levando ao banco dos réus e à prisão políticos e empresários milionários, e não só, como ocorria até pouco tempo atrás, negros e pobres.

Apesar das polêmicas que às vezes envolvem velhos amigos em uma discussão nas redes sociais, no fim das contas a grande maioria dos brasileiros reivindica maior compreensão quanto às diferenças de gênero ou de cor da pele, e uma vida política realizada à luz do sol e não nos esgotos sombrios de manobras inconfessáveis.

É uma sociedade que vai descobrindo a cada dia que sem sua pressão não haverá uma reforma política séria nem mudanças profundas nas velhas estruturas do poder.

Se tudo isso é verdade, é preciso concluir que aquilo que “Sua Excelência, a sociedade brasileira”, ainda dividida pela crise econômica e política, exige hoje é um Brasil no mínimo mais decente e mais de todos.

As forças reacionárias ou os nostálgicos do autoritarismo, se existem, foram ofuscados por uma opinião pública amplamente a favor das liberdades, da defesa das conquistas democráticas e contra os privilégios de alguns poucos, que ofendem as classes trabalhadoras que lutam para sobreviver à crise. O que não é pouco, embora ainda haja um longo caminho a percorrer.

Metamorfoses verbais

Os estudiosos de assuntos semânticos, examinando variações de sentido das palavras no tempo, costumam se defrontar com coisas curiosas.

Para dar um exemplo, invertemos os sentidos originais das palavras “aquário” e “piscina”. Aquário deveria ser denominação para um receptáculo cheio de água. Piscina seria espaço aquático com peixes (pisces) dentro.

Palavras podem também praticamente perder uma de suas dimensões semânticas. “Esclarecer”, por exemplo, hoje só é usada em sentido figurado, como sinônimo de explicar. Ninguém mais diz “o sol nasceu esclarecendo a praia”, ou “a noite já caiu, vamos esclarecer a varanda”. Acho que sou um dos poucos que ainda usa “esclarecer” em seu sentido mais literal.

Mas vamos adiante. Hoje, na miséria moral (financeira, jamais) da política profissional brasileira, o que temos visto são palavras e expressões que ou perderem qualquer sentido ou são acionadas para mascarar o seu exato oposto. Por um procedimento de corrupção política intencional dos sintagmas verbais.

Quando candidatos e partidos dizem que fizeram tudo rigorosamente dentro da lei, que as doações de campanha que receberam foram todas legais, meu primeiro impulso é defender que sejam agraciados com o Nobel da Cara de Pau.

Pouca gente consegue ficar séria quando Dilma Rousseff proclama aos quatro ventos: sou uma mulher honesta! Quem andava cercada de ladrões, deixando-os roubar à vontade, não tem o direito de dizer uma coisa dessas. Menos ainda – muito menos – tem Lula da Silva o direito de se proclamar “a alma mais honesta desse país”.

Aliás, o ex-tudo Jaques Wagner – também conhecido como “o Compositor” e “o Passivo” nos anais da honestidade nacional – fez uma afirmação no mínimo interessante para demonstrar que Lula não é e nunca foi corrupto: “Eu conheço Lula há décadas. Ele vive há anos na mesma casa”.

Bem, se o critério for esse e o aplicarmos ao próprio Jaques Wagner, ele estará em maus, péssimos lençóis. Sim. Conheço Wagner há décadas. E se tem uma coisa que ele não fez na vida foi permanecer há anos na mesma casa.

Muito pelo contrário. Trocou a quitinete dos tempos de sindicalista por um apartamento caríssimo no Corredor da Vitória, o ponto mais luxuoso de Salvador. Só o que ele paga de condomínio dá para uma família de classe média viver confortavelmente.

E como foi mesmo que essa mudança se deu? Não sei. Mas vai ver que Lula é quem está certo: a profissão de político é a mais honesta de todas, mesmo se o sujeito for ladrão.

Oposição é direito dos partidos, mas é preciso que haja respeito a adversário

Está estabelecido no regime democrático que o partido derrotado nas eleições terá o direito de fazer oposição ao vencedor, tornado governo. Por isso mesmo, após perder a Presidência da República e tornar-se oposição, o pronunciamento de Dilma Rousseff, prometendo, ela e seu partido, oporem-se implacavelmente ao governo de Michel Temer, foi, sem dúvida, legítimo.

Pois, ao ouvi-la, lembrei-me da reação dela e do PT aos questionamentos feitos, após a eleições de 2014, pelo PSDB, alegando que Dilma Rousseff mentira durante a campanha eleitoral ao dizer que a situação econômica do país era ótima.

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A reação dela e do PT, naquele momento, foi afirmar que o adversário queria um terceiro turno, ou seja, pretendia dar um golpe, muito embora fosse verdade o que alegara. O impeachment também foi considerado golpe, ainda que previsto na Constituição.

E, embora tenha obedecido às normas legais, continua sendo chamado de golpe por eles. A conclusão inevitável é que só o PT tem direito a exercer oposição; os adversários, não, estes são golpistas.

Agora mesmo isso se repetiu durante todo o processo do impeachment que, em sua etapa final, foi comandado pelo então presidente do STF, Ricardo Lewandowski.

A certa altura, um dos adversários de Dilma a interpelou: "A senhora está chamando de golpe um processo comandado pelo presidente do Supremo?" Tomada de surpresa, ela respondeu: "Até aqui não é golpe, mas se aprovarem o impeachment, será golpe".

Difícil de entender, não? De fato, ela acabara de admitir que o processo era legal, pois não é a sentença final, contra ou a favor, que tira a legitimidade de um processo.

Mas o PT é assim mesmo. Só vale o que lhe favorece; o contrário é coisa de gente safada ou vendida, de quem está a serviço dos exploradores do povo pobre.

Aí você pergunta: e Marcelo Odebrecht e Léo Pinheiro, amigos de Lula, são por acaso defensores dos pobres? Disso os defensores do populismo não falam.

Nas ruas, o pessoal da CUT, do MST, entre outros, clama pela expulsão de Temer e pela volta de Dilma. Ninguém fala do desastre que foi seu governo. Voltar Dilma, para quê, se ela já não governava, enquanto o desemprego atingia a casa dos 12 milhões, a inflação crescia, a indústria e o comércio fechavam as portas. Foi Dilma cair, as coisas começaram a melhorar. Ainda pouco e lentamente, pois o desastre que ela provocou está entre os piores de nossa história. E ainda assim, há quem grite: "Volta Dilma". Parece piada, porque a verdade é que nem o PT deseja isso; aliás, nem ela mesma, já que, antes do impeachment, propunha um plebiscito e novas eleições.

Como dissemos no começo desta crônica, oposição a qualquer governo é um direito dos partidos. No entanto, esse direito está essencialmente vinculado ao respeito ao direito do adversário e submetido a um fator decisivo, que é o interesse nacional.

Os partidos existem para zelar por ele, para cuidar dele, para preservá-lo e ampliá-lo. Nisso está compreendido o crescimento econômico e cultural, a preservação e melhoria das condições de vida dos cidadãos, o que implica no aumento qualitativo da renda familiar mas também no respeito à liberdade de opinião e de ação política.

Logo, tanto esteja o partido no governo ou na oposição, a sua função é cuidar do interesse de todos, não apenas do interesse partidário.

Digo isso porque está se criando uma situação preocupante, que leva as pessoas a temerem por sua segurança pessoal, particularmente aqueles que, pela atuação profissional, manifestaram opinião a favor do impeachment.

Nas universidades, nas reuniões culturais e esportivas, essas pessoas se sentem ameaçadas. Por outro lado, ao que tudo indica, os petistas se dispõem a inviabilizar o governo Temer, o que seria de fato impedir a superação da crise econômica criada por Dilma, que levou o país à situação em que está.

Não se trata, no entanto, de não fazer oposição, mas sim de fazê-la, visando o interesse nacional.

Ferreira Gullar

Trilha sonora

"Meu tio" (1958), de Jacques Tati, um clássico de crítica social e lirismo

Ou 'Nova República'

Imperfeita bem-intencionada:
Em vez de ditaduras, temos democracias imperfeitas
Mario Vargas Llosa

'O mais honesto' presidente do mais corrupto governo

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"Não tem neste país uma viva alma mais honesta do que eu. Nem mesmo na Polícia Federal. Nem mesmo no Ministério Público. Nem dentro da Igreja Católica, nem dentro da Igreja Evangélica, nem dentro dos sindicatos, nem no meio de vocês. Pode ter igual. Mais, eu duvido".

Com essas palavras, há alguns meses, conversando com blogueiros da mídia amiga, Lula escalou por conta própria o topo do pódio da honestidade. Entregou medalha de ouro para si mesmo. Não duvido que enquanto mentalmente mordia o disco dourado soassem em seus ouvidos os acordes do Hino Nacional. Está ficando difícil ser petista. Semana passada caiu Luis Fernando Veríssimo, imaginem só! Em entrevista para Sônia Racy, do Estadão, LFV confessou ser um esquerdista desiludido com o PT. E a Velhinha de Taubaté desertou com ele.

Os desiludidos formam dispersa e contraditória multidão. Uns poucos caem atirando nos companheiros, como aconteceu há bom tempo como Hélio Bicudo e Eduardo Jorge. Outros tombam de joelhos, penitentes, como certamente aconteceu com a Velhinha de Taubaté. Outros, por fim, caem atirando nos adversários. Têm a nostalgia de quando podiam atacar tudo que ficasse à sua direita com a mais imaculada, tantas vezes beata e benta, demagogia. Chegaram ao poder para deixar o país desse jeito.

De algum lugar, senhores da CNBB, Deus está vendo tudo isso. O esforço dos remanescentes no sentido de desacreditar as denúncias do Ministério Público Federal tromba contra os fatos. Praticamente todos os corruptos e corruptores já confessaram e houve mais de uma centena de condenações. Bilhões já foram reavidos. Todos os participantes da Orcrim contam as mesmas histórias e relatam os mesmos esquemas. Há testemunhas e evidências para as acusações que incidem sobre os dois governos petistas. Não há compatibilidade entre o discurso do medalhista de ouro em honestidade e os bilhões drenados pelos esquemas do PT, PMDB e PP. Os agentes da força-tarefa da Lava Jato produziram dezenas de milhares de páginas de documentos. Boa parte delas, por envolverem personagens com prerrogativa de foro, estão sob sigilo naquela trincheira da morosidade e da impunidade que atende pela sigla STF.

Atribuir excelsas virtudes a Lula, reconhecer-lhe a medalha (e transferi-la depois a Dilma), significa colocar a ideologia e o partido no topo da escala dos valores morais tornando bom tudo que a eles convém e mau tudo que os confronta. Quem quiser conduzir-se assim que o faça, mas não há como o mais honesto dos homens presidir o mais corrupto dos governos.

Percival Puggina

O império da mentira

A onda de populismo que arrasta as democracias ocidentais está relacionada às transformações tecnológicas, que têm relegado a fatias importantes da sociedade trabalhos de pior qualidade, como é o caso no deslocamento do setor industrial para o de serviços. Nos países desenvolvidos, pela primeira vez desde a 2.ª Guerra, pais não se sentem reconfortados com o fato de que seus filhos terão uma vida melhor que a deles. Pelo contrário. Assim como ocorre dentro de sua própria geração, têm a sensação de que as coisas vão piorar, de que será mais difícil encontrar um bom trabalho.

No caso dos EUA, em que a renda familiar corrigida da classe média é a mesma dos anos 60, a simples estagnação já é percebida como retrocesso, já que as necessidades de hoje, com saúde, educação e o consumo em geral são infinitamente maiores que as de meio século atrás.

Tudo isso, por si, não seria suficiente para engendrar a onda de populismo. Se houvesse espaço para uma troca efetiva de informações e argumentos, os políticos apoiados por dados, diagnósticos e propostas coerentes venceriam com relativa facilidade os que oferecem soluções fantasiosas com base em descrições falsas da realidade. O problema é que esse espaço se estreitou nos últimos anos. E isso é resultado de outra transformação tecnológica, na comunicação. 

María Corte
Como argumenta a revista The Economist no editorial de capa da semana passada, intitulado “A arte da mentira”, as pessoas estão acreditando menos nas informações produzidas pelo jornalismo independente do que naquelas compartilhadas por seus amigos nas redes sociais. E, nesse ambiente, a “informação” que chega às pessoas é aquela que confirma e reforça as posições que elas já têm. 

Quando alguma incômoda “verdade” escapar ao controle do algoritmo, que distribui os compartilhamentos segundo os gostos de cada um, com um clique o usuário exclui o intruso, para se manter, assim, protegido em sua bolha cognitiva.

Impacto. Vivemos, então, no mundo da “pós-verdade”, no qual fatos e invenções adquirem o mesmo peso e são escolhidos de acordo com a preferência ideológica. É uma inversão da ordem do conhecimento: em vez de tirarmos conclusões sobre o que observamos, criamos um material apropriado, uma verdade customizada, para sustentar nossas conclusões.

Essa abordagem do mundo é tão sedutora que até o jornalismo independente, observa a Economist, tem embarcado nisso, dando, em nome de um falso pluralismo, o mesmo espaço para fatos e invenções, como se tudo fosse uma questão de “opinião”.

Saímos de um extremo, no qual o jornalismo profissional tinha o monopólio sobre a informação, e nem sempre fazia o melhor uso dele, e caímos noutro extremo, em que as fontes de informação se dispersaram de tal maneira que se torna um desafio investigativo rastrear suas origens e intenções.

Quando trocou de guarda, recentemente, o Ministério do Planejamento divulgou as planilhas dos pagamentos que o governo anterior fazia a sites e blogs para disseminar suas versões com a embalagem de notícias, de produtos jornalísticos, avidamente consumidos por quem precisava dessa matéria-prima para provar suas teses. Isso é um retrocesso de um século e meio, quando os grandes jornais surgiram como panfletos sustentados por grupos econômicos e políticos para apoiar suas bandeiras, muitas delas meritórias.

Com o passar das décadas, eles avançaram para o modelo de negócios que agora está ameaçado: o de ampliar sua audiência, abraçar o pluralismo, conquistar credibilidade e vender espaços publicitários para empresas que queriam ter suas marcas associadas ao prestígio dessas publicações.

Enquanto o jornalismo independente luta para encontrar um novo modelo de negócios, a maioria dos cidadãos vive numa espécie de embriaguez informativa, sem fronteiras entre real e imaginário, tornando-se muito facilmente manipulável.

Quem se dá bem são mestres da prestidigitação, como Donald Trump, que é capaz de emparedar Hillary Clinton por não ser “transparente” sobre seu estado de saúde, quando ele é menos ainda. E substitui a apresentação de um relatório médico sério pela aparição em um programa de TV, o Dr. Oz Show, no qual entrega um pedaço de papel com algumas linhas falando de sua saúde, o que, no mundo midiático, vale muito mais do que páginas e páginas de informação verdadeira.

Esse é apenas um pequeno exemplo das inúmeras enganações de Trump, cuja plataforma está repleta de promessas irrealizáveis, por serem contra a Constituição e os tratados, porque jamais passariam pelo Congresso e pela Suprema Corte, e porque destruiriam a economia, como cancelar acordos comerciais, expulsar todos os imigrantes ilegais e assim por diante.

No Reino Unido, um pouco mais da metade dos eleitores aprovou a saída da União Europeia com base em dados falsos a respeito dos custos da participação no bloco, das regras comerciais e migratórias – mentiras disseminadas, entre outros, pelo ex-prefeito de Londres Boris Johnson, hoje chanceler.

Nesta semana, no Brasil, vimos como é fácil, divertido e proveitoso inventar uma mentira, como a frase “não temos provas, mas temos convicção”, que nunca foi dita pelos procuradores da Lava Jato. Quem mostrou que nunca foi dita? O jornalismo independente. Quem continua acreditando que foi? A massa que prefere acreditar nos “amigos”. Esse é um enorme desafio para a democracia, porque ela dá poder para o povo escolher com base na crença de que ele terá acesso à informação e optará pelo que é melhor para ele. Esse alicerce está profundamente abalado.

Aposta macabra

Há uma aposta contra o Brasil que sempre se ganha. Aposta macabra. Basta jogar as fichas contra nosso desempenho na educação. Vitória assegurada. Entra e sai governo, o mesmo resultado perverso nos persegue. Se nunca atingimos as metas – pouco ousadas, por sinal – com frequência retornamos a patamares inferiores, antes atingidos.

Foi o que aconteceu na semana passada, quando se divulgaram os dados do IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, referentes a 2015. No ensino médio, a proficiência em matemática piorou. Sim, piorou. A de português ficou praticamente estagnada. De duas, uma: ou nossos homens públicos são incompetentes, geração após geração, ou a educação não é prioridade para eles. Em geral, fico com esta hipótese. População mal formada e informada, sem senso crítico, não contesta, não perturba, não reage, acredita em mentira, é mais fácil de manipular. Lição maquiavélica tupiniquim.

Para ensinar, não é necessário reprovar, reprovar e reprovar. Ilustração: Benett:

Na semana passada, também li uma matéria em que o articulista contesta a universalização da leitura. Diz que sempre foram poucos os leitores assíduos, menos de 1% da população, que o ideal de devorar livros vem da elite, é valor pequeno-burguês. Ler Machado de Assis, por exemplo, não fará falta na vida de ninguém. Saber que a Terra gira em torno do Sol também não altera a vida de ninguém, ainda mais quando todos testemunhamos, da manhã à tarde, o giro do Sol em torno do nosso planeta… O articulista termina questionando o investimento público feito em livros. Esta aposta também é macabra. Ela joga a toalha na luta pela democracia. Em vez de generalizar o bem “pequeno-burguês”, prefere deixá-lo reservado aos poucos de sempre.

Esta conclusão me remete a outra, que sempre acontece quando saem os resultados do Pisa, programa da Unesco que afere conhecimentos básicos de matemática e qualidade de leitura e interpretação de textos em mais ou menos 60 países. Aqui também se pode fazer a aposta macabra e ganhá-la. Com certeza, o Brasil ficará na lanterna do certame, entre os 15 piores leitores e matemáticos. Os responsáveis pela educação já têm a resposta pronta para o insucesso, desgastada de tanto ser repetida: o Pisa não segue os nossos critérios de avaliação, portanto não afere nossa performance como deveria. Por que os demais países mal classificados não escapam por essa tangente? Por que, em vista da reprovação, tantos procuram melhorar o desempenho? A China nos dá um belo exemplo. Saiu da rabeira para assumir, em Xangai, a liderança do teste. Viraram os melhores leitores do mundo. E, com a população que tem, sete vezes maior que a nossa, o desafio deve ter sido difícil. Eles acreditam, cada vez mais, na educação. A liderança mundial que buscam depende dela.

Enquanto isso, a aposta macabra continua rendendo outros frutos. Dos candidatos ao ENEM, aproximadamente dois terços são analfabetos funcionais, isto é, passaram pelo menos 12 anos na escola e não aprenderam a ler e escrever com fluência. Pior ainda: quando se formam nos cursos superiores, um terço ainda continua nessa situação macabra. Que país sustenta seu desenvolvimento diante desse descalabro? Ou a educação, entre nós, também deixou de ser importante para o crescimento pessoal?

Luís Giffoni

O exemplo do velho Graça

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Nunca fui literato, até pouco tempo vivia na roça e negociava. Por infelicidade, virei prefeito no interior de Alagoas e escrevi uns relatórios que me desgraçaram. Veja o senhor como coisas aparentemente inofensivas inutilizam um cidadão
Graciliano Ramos

Em 1929, o prefeito de Palmeira dos Índios enviou o seu relatório de prestação de contas para o governador das Alagoas. Os trabalhos realizados "não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o município se achava, muito me custaram".

"Dos funcionários que encontrei...restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles. Não sei se a administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior".

O relato surpreende pelo detalhamento da prestação de contas, pela escrita e pela indignação quando a coisa pública é tratada como subserviente a interesses indevidos.

"Certos indivíduos... imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos." "Não me entendi com esses."

"Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca." "Perdi vários amigos...Não me fizeram falta."

No relatório seguinte, comentou o ajuste das contas públicas: "E não empreguei rigores excessivos". Apenas "extingui favores largamente concedidos" a quem não precisava. Foram "indispensáveis alguns meses para corrigir irregularidades, muito sérias, prejudiciais à arrecadação".

Prestar contas é o que se espera de todo governo. As políticas devem ser avaliadas, discriminando custos e resultados, sem descuidar de esclarecer a quem beneficiam.

Na crise atual, seria útil saber das obrigações já assumidas para os próximos anos, como as decorrentes de subsídios e benefícios tributários, além do risco de inadimplência nos empréstimos com recursos públicos.

Preocupa que o descontrole fiscal tenha se iniciado sem que os dados oficiais refletissem a sua degradação. Como prevenir a reincidência do problema?

Contas precisas e transparentes colaboram com o debate sobre como enfrentar os problemas.

Gasta-se em demasia com servidores e aposentados públicos? Serão extintos favores como as desonerações ou as proteções setoriais?

Alguns preservam os seus amigos. Outros preferem a coisa pública.

Reza a lenda que, impressionado com os relatórios do prefeito, Augusto Frederico Schmidt pediu-lhe o romance que devia ter na gaveta. A lenda parece apenas tangenciar a verdade, mas é certo que a repercussão dos relatórios antecipou o escritor. Em 1933, Schmidt publicou "Caetés", de Graciliano Ramos.