terça-feira, 21 de junho de 2016

Não há fichas limpas

Não, não sei mais analisar a situação brasileira. Os fatos estão muito à frente de qualquer interpretação, que é sempre fugaz, com uma lógica que se perde em poucos instantes.

A sensação que tenho – estamos reduzidos a sensações – é que os hábitos tradicionais do velho patrimonialismo brasileiro, com suas teias ocultas de escândalos, estão arrebentando juntos e irrompendo da lama escondida por séculos.

Uma das razões é que nossa corrupção deslavada, nosso secular desgoverno, se fragilizaram nesse mundo contemporâneo global e digital. Nosso atraso ficou atrasado. As informações na velocidade da luz fizeram a opinião pública acordar sem saber bem para quê ainda, mas já é um avanço.

Aquele estranho país, oscilando desde sempre entre o público e o privado, está se deparando com um perigo: a própria ideia de “país” está ameaçada, se esgarçando com ilhas de civilização cercadas de miséria por todos os lados. Instituições continuariam existindo, mas sem poder para regular a vida social.

A consciência do desastre é grande, mas ninguém sabe o que colocar no lugar da merda que está aí. Não sabe porque talvez não haja. Como traçar um plano político onde a política se desintegrou? O Brasil é uma quadrilha. Todos estão implicados de algum modo. Nunca existiu vida sem o caixa 2. Nisso, o Lula acertou. Esse era o método de funcionamento “normal”. Era impossível um político ignorar isso. Era normal. Agora, estão abertos os intestinos da pátria que nos pariu. E surge mais uma verdade óbvia: não há inocentes para ocupar cargos públicos. Todos são cúmplices. Não há fichas limpas. O Temer sabe disso e, inteligentemente, nomeou a melhor equipe econômica que já tivemos, sem contar líderes como Meirelles, Serra, Maria Silvia Bastos, Pedro Parente etc. Eles partiram para impor o óbvio na economia destroçada pelos ladrões e pelos imbecis. Conseguirão?


A Lava Jato está matando o velho país vira-lata, graças a Deus, mas como salvá-lo, como organizar um país melhor? Tudo funcionava mal, mas funcionava pelas regras da velha roubalheira analógica. Havia até certa doçura nos ladrões de galinha. Depois do PT, tudo enguiçou. Sempre achei que o PT no poder seria uma previsível ladainha de slogans comunas, de voluntarismo, de gastos públicos malucos, mas nunca supus que eles pudessem causar um estrago desse porte, com 170 bilhões de buracos negros no Estado. Isso foi o resultado da estupidez ideológica aliada à direita mais feudal do país, de Lenin a Sarney. O PT não me decepcionou apenas por seus erros; ele me fez descrente da raça humana.

E vamos combinar: já há uma catástrofe. Queremos não ver, mas a evidência é perturbadora. O país foi metodicamente danificado econômica e socialmente. Eu e provavelmente muitos de vocês, leitores, não vamos sofrer tanto com a estagflação que vivemos. Agora, os que não lerão esta coluna, milhões de desvalidos, vão sentir na carne o novo estilo para a miséria. Vem aí a nova miséria – um “arrière goût”, um toque de... África e Índia. Sim.

A miséria era o grande capital do governo Lula. O PT sempre teve ciúmes da miséria. Sempre que o FHC tentou cuidar da miséria, o PT reagiu como um marido enganado.

Antes, havia uma miséria “boa”, controlável. Tínhamos pena, ela aplacava nossa consciência, desde que ficasse no seu lugar. A miséria tinha uma “função social”. Achávamos que nosso escândalo ajudava os pobres de alguma forma. Para nós, pequenos burgueses, a miséria era bandeira abstrata, a miséria dos outros era nosso problema existencial. O fim das ilusões gerou um desalento que dá lugar a um alívio quase feliz.

A situação é gravíssima, e ninguém sabe como revertê-la. Como imaginar esse congresso sujo aprovando reformas e ajustes contra o atraso, justamente eles, que desejam o atraso, tão propício a roubalheiras mais tradicionais? O escândalo foi desmoralizado – estamos sendo arrasados pela “normalidade”. Isso. Estamos nos acostumando a essa anomalia e vamos aceitando a crescente desgraça com fatalismo ou cinismo: tinha que ser assim, ou dane-se....

E aí, surge a turma do “precisamos”, da qual eu faço parte, tristemente. Precisamos disso, daquilo, mas ninguém sabe como resolver. Não temos agentes executores da política do “precisamos”.

Precisamos resolver o problema da administração nos Estados e nos municípios, que já estão sem verbas para pagar os funcionários públicos, os hospitais sem remédio, os limpa-fossas, sei lá. Precisamos combater a violência, mas nada funciona para impedir o crime crescente. A polícia não tem dinheiro. Os criminosos têm grana para comprar até canhões antiaéreos no Paraguai. Não é que a violência vai apenas crescer; não há como impedi-la, com traficantes vagando de metralhadora no centro da cidade, estuprando e matando.

Como imaginar um plano possível para salvar e melhorar as favelas no Rio ou em Recife ou em Alagoas, em todas as cidades principais, para além das UPPs? O que fazer? Cartas para a redação. Esta crise é especial, talvez invencível.

Em geral, as crises surgem, acontecem e, quase sempre, somem. Acabam. Até a terrível ditadura tinha um fim previsível, mas, depois de 12 anos de absurdos do PT, esta crise agora é de areia fina, de areias movediças; ela talvez não acabe, pois não tem um defeito único a ser combatido – é uma miscelânea de crimes históricos. A crise não tem um inimigo só – é um ramalhete de equívocos.

A miséria é a ponta suja de uma miséria maior. Nós fazemos parte dela. O Brasil está contaminado de misérias. Não existe um mundo limpo e outro sujo. Um infecta o outro.

A burocracia é miséria, a corrupção é miséria, a estupidez brasileira é miséria. A miséria não está nas periferias e nas favelas; está no centro da vida brasileira. Somos uns miseráveis, cercados de miseráveis por todos os lados.

Atrapalham visual urbano


O corpo de rua é um corpo que perturba
Padre Júlio Lancelloti, Pastoral do Povo de Rua

A Prefeitura de São Paulo publicou um decreto estabelecendo o que a Guarda Civil Metropolitana pode e o que não pode levar dos moradores de rua da cidade. Constam na lista de permissões camas, sofás e barracas. Artigos como documentos, sacolas, medicamentos, mochilas, roupas e sapatos, assim como papelões, cobertores, colchões, colchonetes, cobertores, mantas, travesseiros e barracas desmontáveis estão proibidos de serem levados.

O decreto ainda informa que as ações devem ocorrer "preferencialmente" de segunda a sexta-feira, das 7 da manhã às seis da tarde. Ações ocorridas fora desse horário terão de ser previamente justificadas.

O anúncio do decreto ocorreu na sexta-feira, depois de uma semana tensa entre a Prefeitura e a população de rua. Muitos moradores denunciaram que a Guarda Civil Metropolitana estava levando documentos e objetos pessoais, além de cobertores.

A anticampanha eleitoral

Serão só 45 dias, entre uma Olimpíada em casa, uma crise política interminável e uma recessão econômica inesquecível. Ainda pior para os candidatos: sem dinheiro oficial de empreiteiras. Como será, então, a campanha eleitoral de prefeitos e vereadores? Dissimulada, negativa e móvel.

Pesquisa inédita do Ibope revela que, pela primeira vez, a maioria absoluta dos eleitores brasileiros (51%) recebeu informações sobre política pelo Facebook, Twitter ou pelo WhatsApp. O recorde foi batido nos últimos 12 meses.

Mais jovem e escolarizado o eleitor, maior a probabilidade de ele ter recebido mensagens políticas pelas redes sociais nesse período: 184% mais chance de ter lido do que de não ter entre eleitores até 24 anos, e 258% mais chance entre quem cursou faculdade. A tendência também é mais forte entre os mais ricos, nos moradores do Sudeste e entre quem mora em capitais.

Para confirmar a tendência de que as redes terão papel decisivo na eleição, em apenas um ano triplicou a proporção daqueles que pretendem usar mensagens de redes sociais para decidir seu voto - mostra o Ibope.

Isso significa que os candidatos a prefeito mais atentos deverão dedicar um esforço inédito para a campanha via telefone celular. É na tela desses aparelhos que o eleitorado mais conectado se informa via Facebook e Twitter, além, obviamente, do WhatsApp. Na disputa pelo tempo do público, os iPhone e Galaxy da vida são a única tecnologia que absorve uma fatia crescente da atenção das pessoas. É natural que os candidatos se aproveitem disso.

Se não bastasse, eles têm outro motivo para investir em uma plataforma de campanha móvel: é muito mais difícil de monitorar. Ao contrário do horário eleitoral na TV, as mensagens via redes sociais são individuais e customizadas, muito mais frequentes do que os spots televisivos e tendem a se misturar ao ruído da comunicação digital. O que os olhos não veem a Justiça Eleitoral não fiscaliza. Os candidatos podem gastar fortunas nesse tipo de comunicação com muito menos risco de exagerar na ostentação.

Por que eles teriam tal preocupação? Com a proibição das doações empresariais, a arrecadação oficial deverá ser bem menor do que no passado. Sem dinheiro no caixa 1, os candidatos não poderão justificar despesas ostensivas com propaganda. Daí o estímulo à propaganda disfarçada na forma e com sujeito oculto.

Isso nos leva ao segundo motivo para os partidos camuflarem suas campanhas no Facebook, no Twitter e no WhatsApp. O tipo de propaganda que funciona nessas redes é a negativa: contra alguém ou contra uma ideia, muito mais do que a favor de um candidato.

Na campanha ao governo de Minas Gerais em 2014, mensagens anônimas via WhatsApp colaram no candidato do PSDB o apelido “Turista da Veiga”, reforçando o fato de Pimenta morar em outro Estado. Esse tipo de guerrilha virtual ajudou a derrotá-lo.

A pesquisa Ibope confirma o que a experiência dos marqueteiros lhes ensinara. Ao longo dos últimos 12 meses, apenas 27% do eleitorado diz ter mudado para melhor a imagem que tinha de um político ou partido graças a mensagens que recebeu via redes sociais. Ao mesmo tempo, o dobro de pessoas - 56% dos eleitores - afirma que mudou para pior a imagem que faz de políticos e partidos por causa do que leu no Facebook, Twitter e WhatsApp.

Isso mesmo: mais da metade dos brasileiros tem hoje uma opinião mais negativa do que tinha um ano atrás dos atores da política por causa do que leu sobre eles nas redes sociais. É demolidor.

Esse poder destrutivo provoca oscilações cada vez mais abruptas das intenções de voto, retardando para a última hora a definição das eleições. Mas não só. O efeito acumulado dessa propaganda negativa é uma ressaca e uma desilusão com a política que ainda vai dar muita dor de cabeça, e não só para os políticos.

Irresponsabilidade fiscal é uma festa rave

Estados quebrados, alquebrados e ainda encontro quem diga: "Fulano não é o governador? Então ele que resolva". Resolver, aqui, significa que o governante deve encontrar uma fórmula de manter ou ampliar o gasto público, porque os abusos da festa não podem parar. Nosso modelo institucional terceiriza responsabilidades e irresponsabilidades. O que faz a maior parte dos governos e o que fazem os parlamentos diante dessa mentalidade senão determinar que siga o embalo, que role a droga da gastança, que se mantenham os vícios do sistema, que se atendam todas as demandas?

No nosso sistema político, com escassas exceções, parlamentares e governantes funcionam como organismos que metabolizam recursos públicos e os transformam em votos. Os ambicionados sufrágios não provêm da dedicação ao bem da comunidade ou de uma convicção sobre como alcançar o desenvolvimento econômico e social. Não, não. Os votos são moeda de troca num balcão onde, de algum modo, a contribuição fiscal de todos pode ser canalizada para atender demandas de alguns. Quem o fizer com maior eficiência, mais futuro terá, ainda que tais conquistas representem freio puxado no futuro dos demais.

Observe o que ocorre quando, num parlamento brasileiro, em plena crise econômica e fiscal, está em deliberação projeto que eleva vencimentos dos poderes ou de determinadas categorias de servidores. As galerias estão tomadas por interessados na aprovação. A cada pronunciamento favorável, chovem elogios e aplausos. A cada fala em contrário, trovejam insultos e vaias. Sentado em sua cadeira, o parlamentar-padrão a tudo assiste e se indaga: "Quantos eleitores meus estão aí? Quantos votos posso ganhar junto a essa categoria se me posicionar favoRavelmente ao que pretendem? Quantos perderei se o fizer?". É uma contabilidade inequivocamente favorável à festa Rave porque, em nosso sistema, os parlamentares não sabem quem são ou podem vir a ser seus eleitores. Ademais, deputados eleitos obtêm, em média, votos de 1/3 do eleitorado apto (e a maior parte de seus eleitores não lembra seu nome). Os 2/3 restantes correspondem a votos nulos, brancos, abstenções ou foram concedidos a candidatos não eleitos.

No voto distrital, o território do Estado ou do município é dividido em distritos eleitorais e cada distrito escolhe seu parlamentar numa eleição majoritária (como a eleição de prefeito). Ora, assim como dificilmente alguém esquece o nome do prefeito, dificilmente alguém esquece o nome do representante de seu distrito. Sua atividade e seu voto são acompanhados de perto. Ele é uma pessoa "criada ali na volta", como se costuma dizer no interior. Na hora de uma votação como a descrita acima, em que o parlamentar tem que escolher entre a responsabilidade e a irresponsabilidade, ele ponderará: "Quantos eleitores desse grupo de interesse existem em meu distrito? (E verá que são poucos). Quantos eleitores do meu distrito não estão dispostos a pagar essa conta? (E verá que são muitos). É uma contabilidade inequivocamente contra a festa Rave da irresponsabilidade fiscal.

Numa eleição pelo sistema distrital, ninguém consegue mandato com votos de uma camada da sociedade ou de um grupo organizado, como esses que hoje viabilizam eleições de inúmeros parlamentares. Para eleger-se num distrito, o candidato precisa colher votos, como numa fatia de torta, em todas as camadas sociais do distrito que deseja representar. Também isso é fortemente determinante de sua conduta.

A festa Rave da irresponsabilidade fiscal consome duas drogas fornecidas pelo nosso sistema político: o presidencialismo e a eleição proporcional para os parlamentos.

Percival Puggina

Brasil, um bebê molhado

O americano Roger von Oech, escritor e fundador da Creative Think — empresa da Califórnia especializada em inovação —, costuma dizer que “só quem gosta de mudança é bebê molhado”. A frase curiosa enfatiza o espírito de resistência à mudança, que aumenta quando existem interesses pessoais, políticos e corporativos envolvidos.

O Brasil é um bom exemplo. Todos achavam absurda a esdrúxula quantidade de 39 ministérios que existia até maio. No entanto, quando a administração paquidérmica foi reduzida para 23 pastas, surgiram reclamações de vários segmentos. A Cultura, no grito, retomou o status ministerial, mas grupos relacionados à Reforma Agrária e à Ciência e Tecnologia continuam a protestar. Na verdade, a “reforma” foi realizada na marra, sem maiores estudos e explicações. A berraria, contudo, tem origem na ideia distorcida de que é imprescindível o status ministerial para a eficiência e prestígio do setor, o que é uma falácia. A Polícia Federal, por exemplo, está no terceiro escalão, mas é reconhecida como um órgão de Estado, o que não acontece com vários ministérios. No Judiciário, o juiz de primeira instância Sérgio Moro é mais respeitado do que dezenas de juízes e ministros que vagam por tribunais superiores ou pela Suprema Corte. Afinal, respeito não se impõe, se conquista...

Quanto às despesas públicas, era consenso que o governo precisava reduzi-las. De 2008 a 2015, a despesa cresceu 51% acima da inflação, enquanto a receita evoluiu apenas 14,5%. Dias antes de o governo encaminhar ao Congresso proposta de limitar o crescimento das despesas à inflação, porém, o que vimos foi um festival de aumentos salariais que irá elevar os gastos com pessoal em cerca de R$ 97 bilhões até 2019. O presidente Michel Temer, caminhando devagar com o andor porque o mandato ainda é de barro, embarcou no trem, mas recuou quando percebeu a péssima repercussão. Vale lembrar que o defensor do aumento do Judiciário junto ao Executivo foi o próprio ministro-presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, que comanda o processo de impeachment de Dilma no Senado.


Em resumo, apesar do rombo de R$ 170 bilhões em 2016, dos 11 milhões de desempregados e do sufoco por que passa a maioria dos trabalhadores brasileiros, os funcionários públicos terão aumentos, com reflexos nas folhas de pagamento dos estados e municípios que já estão quebrados. O “pacote barnabé” incluiu ainda a criação de 14 mil cargos, que irão compor uma “reserva” e, segundo o governo, não serão preenchidos. Então, precisavam criá-los em pleno ajuste fiscal?

As empresas estatais são a Disneylândia dos corruptos, graças a muito dinheiro, muita ingerência política e pouquíssima transparência. As mais de cem empresas e sociedades de economia mista brasileiras movimentam por ano cerca de R$ 1,4 trilhão — aproximadamente um PIB da Argentina — e estão no olho do furacão da Lava-Jato. No entanto, quando surge a intenção de moralizar a gestão, suas excelências, na Câmara dos Deputados, inserem no texto a possibilidade de dirigentes partidários ocuparem diretorias. É como colocar rato para tomar conta de queijo.

O pior, no entanto, está vindo devagarinho. Para 65% dos brasileiros, a corrupção é o principal problema do país (CNI/Ibope). Assim, é natural que 70,4% da população apoie a Lava Jato (Instituto Paraná). Apesar das estatísticas favoráveis à limpeza ética, conversas indecorosas de políticos e autoridades versam, exatamente, sobre como esvaziar a operação. Descaradamente, corruptos e prepostos discutem nas fitas gravadas como frear delações, nomear paus-mandados para barrar as investigações, soltar condenados, salvar empreiteiras corruptas via acordos de leniência e influenciar decisões de tribunais superiores. Se não bastasse, o presidente do Senado — com oito inquéritos no STF — ameaça acatar pedido de impeachment contra o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que formula denúncias sobre os investigados com foro privilegiado.

Além disso, 14 senadores — alguns citados nas delações — assinaram documento pedindo ao CNJ abertura de processo disciplinar contra o juiz Sérgio Moro. Lula, por sua vez, quer puni-lo por “abuso de autoridade”. Na terra de Macunaíma, os investigados tentam julgar os que os estão investigando. Para culminar, o STF pode suspender a decisão que determinou a prisão dos condenados em segunda instância, o que será lamentável.

O Brasil anseia por mudanças. E não é só por estar molhado. Muito ainda irá surgir até a Lava-Jato trocar as fraldas deste país.

Gil Castello Branco

O genocídio da roubalheira

Quem se lembra do punguista, essa figura barnabé sobrevivendo em pontos de ônibus lotados de carteiras tão pobres quanto o ladrão? Ou o folclórico ladrão de galinhas não assim tão folclórico quando nos subúrbios as casas abrigavam galinheiros em seus quintais, que também não existem mais com as hortinhas limitadas por garrafa e os pés de fruta?

O Brasil era tão subdesenvolvido como seus ladrões, inclusive os políticos do "rouba mas faz". Tudo era roubo fichinha comparado à indústria do assalto institucionalizado, a grande conquista do PT, que só faz aparecer como o partido que tirou a fome do país mas cobrou uma comissão que levou todos para o buraco. Basta ver o noticiário dos assaltos políticos aos fundos públicos.


São anos de roubalheira desenfreada embora reneguem que são ladrões. Pedem até atestado de idoneidade a ex-chefes de Estado de outros países, que estão entrando de gaiatos, porque nenhum estrangeiro lá de fora imagina que o assalto petista tenha tamanha dimensão. Quando souberem, babarão de inveja de não terem a inventiva brasileira.

O inventário das falcatruas, por enquanto, mesmo ainda não completo, se já assusta, é bom lembrar que as somas são só de nível federal. O que foi para bolsos alheios estaduais? E o que tornou os "chinelinhos" dos municípios hoje nouveau riche, verdadeiros cabides de marcas estrangeiras famosas ? O legado maldito do PT será a institucionalização do roubo governamental como norma de governança.

Ainda não se calculou, mas cada dia fica maior o tamanho do assalto perpetrado pelas inúmeras gangues políticas instaladas em governos, do federal ao municipal, do Senado às Câmaras municipais, em todas as secretarias, e para cúmulo da senvergonhice, nos Executivos. Como na velha musiquinha: "Se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão..."

Os nomes e as cifras dos assaltos diariamente ocupam as páginas. As escancaradas delações e denúncias deprimem uma população, que se vê vestida de palhaço. O contribuinte se vê como mera engrenagem de acumulação de dinheiro para sustentar a bandidagem política.

Nunca antes na história um só partido roubou tanto junto com sua base aliada como ainda institucionalizou a roubalheira. Não é pouco o maldito fruto da esculhambação que fez apodrecer instituições. Não há supercomputador capaz de calcular o genocídio social. Os bilhões roubados em dinheiro não pagam o prejuízo do país. Nem recuperados, o rastro social de destruição seria recompensado. Ficaram muitos pelo caminho sem assistência, sem segurança, sem trabalho, sem comida, alimentados pelo maná das mentiras. E estrago tamanho é impagável

O golpe e os golpeados

É imperativo perguntar, para evitar o risco das simplificações que podem servir para o pragmatismo de agora, mas cobrar um preço elevado depois: onde está o golpe? E quem são os golpeados neste país?
Sheila Cristina Nogueira da Silva chora a morte do filho Carlos Eduardo, 20 anos, com seu sangue no rosto, no dia 10 de junho, no Rio de Janeiro.
Sheila Cristina Nogueira da Silva chora a morte do filho Carlos Eduardo,
20 anos, com seu sangue no rosto, no dia 10 de junho, no Rio de Janeiro. 
 Basta seguir o sangue. Basta seguir o rastro de indignidades dos que têm suas casas violadas por agentes da lei nas periferias, dos que têm seus lares destruídos pelas obras primeiro da Copa, depois das Olimpíadas, dos que têm suas vidas roubadas pelos grandes empreendimentos na Amazônia, dos que abarrotam as prisões por causa da sua cor, dos que têm menos tudo por causa de sua raça, dos que o Estado apenas finge ensinar em escolas caindo aos pedaços, negando-lhe todas as possibilidades, dos que são expulsos de suas terras ancestrais e empurrados para as favelas das grandes cidades, dos que têm seus cobertores arrancados no frio para não “refavelizar” o espaço público. Basta seguir os que morrem e os que são mortos para saber onde está o golpe e quem são os golpeados. Como nos lembrou Sheila da Silva, a pietà negra do Brasil, o sangue diz o que as palavras já não são capazes de dizer.
Esta crise não é apenas política e econômica. É uma crise de identidade – e é uma crise da palavra. São as palavras que nos arrancam da barbárie. Se as palavras não voltarem a encarnar, se as palavras não voltarem a dizer no Brasil, o passado não passará. E só nos restará pintar o rosto com sangue.
Eliane Brum, "O golpe e os golpeados"

Lavanderia de propina

Políticos apanhados com a boca na botija adoram dizer que são vítimas das circunstâncias: do “sistema”, do modelo falido de governabilidade, das regras partidário-eleitorais defeituosas. Também gostam muito de pontificar sobre a urgência de uma reforma política como se fosse uma tarefa a ser cumprida pelo alheio, dado que não se mexem para tal.

Assim vão tocando a vida sem reformar coisa alguma – não obstante sejam por delegação popular os donos das ferramentas e do dever de observar o decoro –, desfrutando das benesses do dito sistema e do modelo em colapso que de maneira cruel obriga tão puras criaturas a recorrer a práticas ilícitas de financiamento eleitoral e, não raro, pessoal.

As acusações de que são alvo partem sempre de alguém desqualificado, mentiroso e irresponsável. Quando resultado de investigações, as denúncias são inconsistentes, “notícia velha” ou produto de manipulação política. Se os fatos produzem condenações, eram os julgadores mal intencionados, partícipes da conspiração que, evidentemente, representa uma ameaça à democracia, cujo arcabouço legal está sendo solapado.

A política é cheia de versões como essas, convenientes aos narradores. Se o que os delatores estão dizendo à força-tarefa for produto de imaginação ou de vingança, estão cientes de que poderão amargar um par (ou dezenas) de anos na cadeia. Sérgio Machado, por exemplo, não poderia cumprir sua sentença à beira da piscina de casa, em Fortaleza.

Mas, se estiveram dizendo a verdade, como a dinheirama circulante nas campanhas eleitorais indica, outras versões recorrentes cairão por terra. Aliás, já estão sendo reescritas à luz do sol e a poder de um jato que atingiu como raio a rotina de desfaçatez de suas excelências.

A mais notória dessas histórias para boi dormir é aquela das doações eleitorais “devidamente registradas na Justiça Eleitoral”. Um álibi para o crime que se afigurava perfeito até que as delações começassem a narrar o caso de outra maneira, mostrando que dinheiro legalmente contabilizado junto ao TSE não era necessariamente de origem limpa.

Era fruto de desvio de recursos públicos por intermédio de contratos superfaturados entre governos e empresas, na maioria empreiteiras. Os políticos faziam suas indicações – entre eles mesmos ou mediante a escolha de um técnico de conduta flexível – para determinados postos a fim de assegurar a execução da negociata garantida pelo dever de obediência dos indicados àqueles a quem deviam os cargos.

No sobrepreço do serviço estava incluída a propina que, então, poderia ir para o bolso dos mandantes ou para o cofre dos partidos que faziam o devido registro legal no TSE. Em outras palavras, além do crime de peculato os que andam caindo na malha da Lava Jato ainda davam-se ao desfrute de usar a Justiça Eleitoral como lavanderia das respectivas “roupas” sujas.

Sabe-se lá há quanto tempo vem sendo usado o estratagema que, se não se enquadra na modalidade criminal de lavagem de dinheiro, ao menos mereceria alguma forma de punição mais pesada que a simples vedação de doações por parte de pessoas jurídicas. É um escândalo paralelo. Filhote do que vem sendo desvendado como o maior assalto aos cofres públicos de que se tem notícia.

Sociedade ilimitada - Certas coisas só o tempo explica. No início do primeiro governo Lula, Marcelo Odebrecht estava para assumir a presidência da empresa. Durante um almoço, em São Paulo, falou do então presidente como quem se refere a uma divindade.

O homem perfeito, no lugar certo, na hora exata. Faria um governo irrepreensível. Na ocasião não ficou claro o motivo de amor tão incondicional. Hoje está explicado: era condicionado.

Calamidade

INJUSTIÇA, INJUSTIÇA! Também quero poder decretar estado de calamidade particular. Existe? Pedir por aí um dinheirinho para pagar umas contas, poder honrar as dívidas no banco, me embelezar e ainda sobrar algum para eu receber bem uns amigos, com certo conforto, e eles já estão chegando…

Por que eles podem e a gente não? Virou tudo mesmo uma casa da Mãe Joana, né? Não vai parar. A capacidade nacional de nos surpreenderem diariamente não se esgota, embora nos deem imenso desgosto. Expõem, sim, mas o esgoto das veias políticas que drenam o desenvolvimento de um tudo que queremos, de um lema que seria, creio, só mais ou menos assim: cresça e deixe crescer.
Mas não. Agora essa última novidade. Que vergonha. Além de arrasar o país com medidas alucinadas, foram lá fora e gastaram uns tubos, buscar um evento do porte das Olimpíadas, e para acontecer logo depois de uma Copa que foi totalmente esquecível, deprimente mesmo. A vantagem que Maria levaria, ou que possivelmente Maria levaria (vai levar?), seria mostrar mais o país, atrair investimentos, gente, turismo, que falassem de nós.
E dar o que falar é nossa especialidade. Conseguimos, sim, que falassem de nós – e muito – até antes de começar o tal grande evento e sua tocha andante: estupro coletivo, tiroteios, balas perdidas, briga de facções, ciclovias de geleia, resgastes cinematográficos, piratas, zikas & Cia, caxumba, gripe. Falta só invasão de ETs. Mais: corrupas de todas as cores e tamanhos, dois governos, líderes de cabelos tingidos de asas da graúna e outros com esposas que arregalam tanto os olhos para grifes que os olhos ficaram assim – arregalados de vez.

Aí um governador (provisório, diga-se de passagem) acorda de manhã, abre a janela, olha para o Cristo Redentor e é iluminado pela ideia de decretar calamidade pública, assim sem mais nem menos, vapt-vupt. Teve preguiça de pensar em outro nome, vai calamidade pública mesmo, que é bem intenso, dramático, deve ter pensado. Imagine vocês se ele ia notar que há um protocolo internacional e que calamidade pública se decreta em casos de desastres, em geral naturais, de muito grande porte. É mais que Estado de Emergência – é desastre de nível 4, gigante.
Devia ao menos ter pensado outro nome, para carioca gostar, com algum “S” ou algum “R” para musicar na fala. Mas não. Calamidade pública. Sem “s”. Sem “r”. Podia ter decretado: “sujou geral”, “parada sinistra”, “orçamento bolado”, “acabou o Caô”, “ajuda aí mermão”.
É ou não é loucura? É tipo jogar a toalha, desencanar, entregar o jogo, sair andando e dando de ombros, abrir a porta do avião e jogar o pacote, roleta russa, ligar o foderaiser no máximo. Do céu choverá os recursos que disfarçarão a má gestão de tudo o que fizeram até agora, durante um tempo até com guardanapos de linho na cabeça e sorrisos bêbados para selfies mundo afora.
Entendo que muitos de nós, eu inclusa, temos passado por dias meio assim, com nossa calamidade particular de cada dia. Vontade de fazer picadinho de boletos, fritar tarifas e impostos numa panelinha, botar uma gravação debochada para atender aos cobradores. Decretar falência, bolso furado, mandar tudo pro ar!

Mas temos nomes a zelar, uma tal reputação que precisamos respeitar, e uma cidadania a considerar.
Eles não têm nada disso.

O gesto que mata e a palavra que não salva

Não parece fácil chegar ao fim do ano abaixo dos 14% de desemprego. Pelo contrário, é o mais provável. Fazer o quê? Nem o governo Temer tem solução, sequer a iniciativa privada. Do exterior nem se fala. Sem desatar esse nó, nada feito. Porque vivemos o período da explosão de desejos mal satisfeitos. O consumo ultrapassou a produção, e agora exportar deixou de ser a saída mais simples. O resultado é que nos voltamos para o mais complicado.

Traduzindo essa aparente contradição: falta emprego na indústria, como falta na agricultura, assim como nos serviços.

Nos Estados Unidos, quando da grande queda dos anos Trinta, o remédio foi abrir frentes públicas de trabalho. E mais, de forma matreira, a preparação para uma nova guerra. Aqui, não temos a quem invadir. Muito menos, só consumir o supérfluo.

Inverter o pêndulo das necessidades exigiria antes de tudo altos investimentos na educação pública, mas se menos podemos pensar na saúde…

Acresce que investir na indústria privada de transportes aumenta o vazio, tanto quanto o desperdício de recursos públicos.

Em suma, vivemos numa situação de queda livre, à espera do gesto que mata e da palavra que não salva.

O Grillo da Itália

Roma terá sua primeira prefeita, Virgínia Raggi, advogada de 37 anos, eleita com 67% dos votos dados ao M5S ou MoVimento 5 Stelle, autodefinido como um “não partido”, que, no domingo, elegeu 19 de seus 20 candidatos.

Além de Roma, entre as grandes cidades, levou também Turim, que será governada por Chiara Appendino, de 31 anos, eleita com 54% dos votos. (Mais duas jovens “representantes do mundo feminino” dirá o presidente interino do Brasil).

O M5S não para de crescer. Nasceu em 2009, liderado por Beppe Grillo, famoso e controverso comediante, estrela da televisão e da Internet. Tem o combate à corrupção como principal bandeira e o propósito de apear partidos tradicionais para colocar cidadãos comuns no poder e, no futuro, estabelecer uma democracia direta, via da Internet. No gogó faz oposição a tudo.

Ainda que assentado no campo da nova centro-direita, o M5S é ambientalista, defensor das energias renováveis, da Internet livre e contrário à União Europeia. Engole votos, defendendo:
- combate permanente a evasão fiscal e aos crimes de colarinho branco

- criação de programa de ajuda financeira internacional

- fim das privatizações

- redução de impostos para pequenas empresas

Qualquer semelhança ...

Nas eleições nacionais de 2013, para o Parlamento Italiano, obteve 26% da câmara de deputados (a maior bancada em termos de partidos isolados) e 24% do senado. Neste ano, foi às urnas com o grito de guerra: OratoccaAnoi! E panfletava: A Máfia vota PD, e você?

PD é o Partido Democrático, dito de centro-esquerda, do primeiro ministro Matteo Ranzi – cada vez mais, numa saia justíssima político eleitoral.

Pesquisa diz que os italianos votam no M5S motivados por:

- 43% descrença na classe política tradicional

- 30% do desejo de transparência na gestão pública

- 27% o fim das políticas neoliberais

Qualquer semelhança temática é mera coincidência.


A prefeita eleita de Roma simplificou a vitória: vai tornar Roma uma cidade normal. Seja lá o que isso signifique.

A cidade de Roma deve 12 bilhões de euros. Seja lá o que isso signifique.

O estado do Rio de Janeiro, que o governador disse estar falido e declarou estado de calamidade publica, tem déficit de 19 bilhões de reais. “Fez dívida de 22 bilhões, pagou 44 e ainda deve 70”, lamenta o governador.

O povo do Rio sabe o que isso significa.

Dizem os doutores economista que a Itália, terceira economia da zona do Euro, respira melhor, mas não tirou o pé da cova da crise. O desemprego ainda passa dos 11% e chega aos 39% entre os jovens. Em 2015, a dívida pública batia em 129% do PIB. Mas a inflação em março/2016 foi de – 0,2%. Seja lá o que isso signifique.

O IPCA brasileiro de maio/2016 fechou com alta de 0,78%, o mais alto para maio desde 2008. A dívida total dos Estados e do Distrito Federal com a União soma R$ 427 bilhões, a pagar em prestações mensais. O povo brasileiro sabe o que isso significa.

Num rol de muitos processos, o genovês Beppe, comandante em chefe do M5S, até já respondeu por desobediência ao Estado, quando pregou que a polícia não deveria mais escoltar políticos. “Não se pode proteger essa classe política que levou a Itália a entrar em colapso.”

Língua solta, o Beppe Grillo também acredita que a Itália será um dominó, um contágio europeu, destinado a devolver aos cidadãos a soberania nacional subtraída pelo sistema financeiro. Oi?

O respeitado jornal La República avalia que as vitórias do Movimento deixarão marca na política italiana, uma marca de descontinuidade e possível ruptura do sistema. Seja lá o que isso signifique.

O Brasil tem crise econômica e caos político, onde cabem uma presidenta afastada, outro interino. Os dois com mais de 60% de desconfiança da população. Também tem uma classe política, injusta ou justamente, sobre suspeição.

Em outubro, Itália e Brasil vão às urnas. Lá haverá referendo para, inclusive, alterar o equilíbrio bicameral do Congresso. Aqui, vamos eleger prefeitos e vereadores de 5.570 municípios. Lá, os partidários do Grillo serão os fieis (ou infiéis) da balança. Aqui, ainda nem sabemos que grilo vai dar.

PS.: Na noite de sexta-feira, 17, um grupo de 15 fascistas botou terror no Campus da UNB. Hoje, muitas dezenas de alunos reagiram no mesmo Campus: Aqui não tem espaço pra fascista!

Sabem as vítimas

Ferdinand Hodler
Discutimos a opressão, a crueldade, o crime, a devoção, o sacrifício, a virtude e nada conhecemos além destas palavras. Saberá alguém o que significam a dor, o sacrifício? Talvez o saibam as vítimas do misterioso sentido daquelas ilusões
Joseph Conrad, Uma guarda avançada do progresso

Ousar e vencer

Passei uma semana nos lugares onde nasci e cresci. Dormi em camas antigas que me acolheram em meus primeiros dias de vidas e nos gélidos invernos da década de 50. A primeira neve, os banhos em “vasca” (banheira) de carvalho, os sufocos de uma época que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Essa casa era de meu bisavô. Mesmos armários, mesmas paredes, nunca se renovou. Erguida com pedras, entre 1906 e 1908, que foram trazidas de carroça do vizinho rio Taro.

Meu bisavô tinha uma frota movida por cavalos que atendia a coleta de trigo e a distribuição de farinha e que, na volta, trazia pedras. Decidiu construir essa casa e abandonar a residência dentro do moinho em que morava com a família ocupando um andar acima dos escritórios.

Em seguida, meu avô Francesco herdou a casa, sendo o mais velho dos oito filhos de Vincenzo. Por herança coube a meu pai, um dos seis filhos de Francesco com Maddalena Lualdi, uma linda jovem de uma tradicional família de Milão. “Lena” faleceu nessa casa em 15 de abril de 1910 ao dar à luz, com apenas 26 anos, sua sexta criatura, Olga Medioli, que dela herdou os traços.

Os retratos de meus antepassados ainda estão nas paredes, algumas fotos ainda emolduradas e enfeitadas com trancinhas dos cabelos das personagens retratadas como era moda no início de 1900. Peças delicadas e lembranças que se desbotam com o tempo e na memória dos sucessores das gerações que se seguiram.

Minha mãe, com 93 anos, mais lúcida do que eu, ainda guarda centenas de histórias que com ela desaparecerão. Como os corpos daquelas figuras perderam vida, também as imagens ficarão sem lembranças que sobram em minha mãe. Dados anagráficos apenas e mais sonhos, guerras. Trajetórias que se escoaram e estão descendo, como um Titanic, às profundezas de um repositório perdido.

Van Gogh
Minha família sempre foi de “mugnai”, donos de moinhos de trigos. E, desde um tal de Domenico Medioli, está documentada nos arquivos da “paróquia”, em línguas que se alternaram como no “ducato” de Parma. Iniciaram-se em latim, por via do Vaticano controlador do patrimônio eclesiástico, e passaram para o francês, quando Napoleão conquistou o “ducato” e aí instalou sua esposa, Maria Luisa d’Áustria, sobrinha de Maria Antonieta, rainha da França. E aí perto da nossa casa construiu uma “Petit Versailles”, que usava de residência de verão, nos domínios do Ferlaro dos Príncipes Carrega.

Em Parma, Maria Luisa, deu à luz o único filho de Napoleão, Romulo Bonaparte, nascido com o título de rei da Itália, falecido ainda imberbe ao ser exilado num lúgubre castelo da Áustria.

O tempo corre, encobre com cortinas, sepulta. A 600 metros dessa casa, apareceram numa escavação restos de 5000 a.C. e uma estatueta de uma deusa que marcaria o início da religiosidade de um povo itálico não identificado e primitivo.

No cemitério da paróquia estão enterrados, numa capela que meu bisavó construiu, há mais de cem anos, dezenas de descendentes e mais ainda nas capelas que se seguiram para abrigar inúmeras proles que pararam de crescer e estão quase a se extinguir.

Minha mãe me pergunta: “Quem continuará a trocar as flores e limpar as capelas?” Naquelas lápides de mármore de Carrara, jazem os sonhos, as alegrias, os entusiasmos, e as decepções confessadas ou não. Lembranças em extinção.

Depois de Vincenzo, figura extraordinária, poucos foram aqueles que se jogaram em grandes desafios. Aí jazem mais vidas de quem procurou a paz e o anonimato.

Confesso o natural nó na garganta que me aperta passando pelo local. Provavelmente minha presença sacode algumas dessas almas, ainda inquietas, quando me defronto com o nome e a imagem delas: “... faça o que eu não fiz...”. Apague arrependimentos.

Meu bisavô Vincenzo foi uma figura corajosa que, em 1888, era dono de uma cadeia de sete moinhos tocados com as pás movidas pela água do mesmo canal. Construído em épocas imemoráveis, certamente com mais de mil anos, aproveitando o declive dos vales do rio Taro, onde toma as águas perenes do córrego Parma. E foi aí que ele decidiu montar uma usina hidrelétrica e introduzir na província de Parma a eletricidade que ainda não existia. Jornais da época reportam a façanha e as viagens de charrete, no verão de 1888, de multidões ansiosas para ver a lâmpada iluminando a noite. E foi lá também que tocou o primeiro telefone da região.

A ele também se deve a primeira fábrica de extrato de tomate, que deu partida ao modo de envasar esse fruto concentrado. E a região continua como polo de produção de alimentos concentrados em um centro tecnológico de industrialização.

No corredor da casa de pedra, no primeiro andar, tem uma foto de 1913, uma festa no pátio do moinho de Vicofertile que unia todos os filhos, netos e funcionários, alguns erguendo copos cheios de vinho que rolou abundantemente numa tarde de festiva de verão.

Meu pai aparece franzino, com 5 anos. Difícil, sem ajuda de minha mãe, reconhecer e lembrar os nomes daqueles meninos. Não há mais sobreviventes, e algumas famílias se extinguiram. Apenas minha mãe sabe detalhes e biografias, a última que guarda essa saga que ela lembra apenas nos aspectos positivos. A história ficou depurada.

De cada um sabe o nome, o cônjuge, os filhos, as cidades ou países onde foram morar. Canadá, Chile, Estados Unidos, França, sem contar o Brasil. Às vezes bate à porta dela alguém que, sem falar uma palavra do italiano, se diz descendente de Vincenzo e quer ver onde ele viveu, tirar cópia de fotos e quadros da família.

A memória de Vincenzo ainda resiste ao desgaste do tempo. Como diz seu nome, era um que sabia ousar e “vencer”, com o mérito de deixar ensinamentos, que espero que sigam com meus netos.