A sensação que tenho – estamos reduzidos a sensações – é que os hábitos tradicionais do velho patrimonialismo brasileiro, com suas teias ocultas de escândalos, estão arrebentando juntos e irrompendo da lama escondida por séculos.
Uma das razões é que nossa corrupção deslavada, nosso secular desgoverno, se fragilizaram nesse mundo contemporâneo global e digital. Nosso atraso ficou atrasado. As informações na velocidade da luz fizeram a opinião pública acordar sem saber bem para quê ainda, mas já é um avanço.
Aquele estranho país, oscilando desde sempre entre o público e o privado, está se deparando com um perigo: a própria ideia de “país” está ameaçada, se esgarçando com ilhas de civilização cercadas de miséria por todos os lados. Instituições continuariam existindo, mas sem poder para regular a vida social.
A consciência do desastre é grande, mas ninguém sabe o que colocar no lugar da merda que está aí. Não sabe porque talvez não haja. Como traçar um plano político onde a política se desintegrou? O Brasil é uma quadrilha. Todos estão implicados de algum modo. Nunca existiu vida sem o caixa 2. Nisso, o Lula acertou. Esse era o método de funcionamento “normal”. Era impossível um político ignorar isso. Era normal. Agora, estão abertos os intestinos da pátria que nos pariu. E surge mais uma verdade óbvia: não há inocentes para ocupar cargos públicos. Todos são cúmplices. Não há fichas limpas. O Temer sabe disso e, inteligentemente, nomeou a melhor equipe econômica que já tivemos, sem contar líderes como Meirelles, Serra, Maria Silvia Bastos, Pedro Parente etc. Eles partiram para impor o óbvio na economia destroçada pelos ladrões e pelos imbecis. Conseguirão?
E vamos combinar: já há uma catástrofe. Queremos não ver, mas a evidência é perturbadora. O país foi metodicamente danificado econômica e socialmente. Eu e provavelmente muitos de vocês, leitores, não vamos sofrer tanto com a estagflação que vivemos. Agora, os que não lerão esta coluna, milhões de desvalidos, vão sentir na carne o novo estilo para a miséria. Vem aí a nova miséria – um “arrière goût”, um toque de... África e Índia. Sim.
A miséria era o grande capital do governo Lula. O PT sempre teve ciúmes da miséria. Sempre que o FHC tentou cuidar da miséria, o PT reagiu como um marido enganado.
Antes, havia uma miséria “boa”, controlável. Tínhamos pena, ela aplacava nossa consciência, desde que ficasse no seu lugar. A miséria tinha uma “função social”. Achávamos que nosso escândalo ajudava os pobres de alguma forma. Para nós, pequenos burgueses, a miséria era bandeira abstrata, a miséria dos outros era nosso problema existencial. O fim das ilusões gerou um desalento que dá lugar a um alívio quase feliz.
A situação é gravíssima, e ninguém sabe como revertê-la. Como imaginar esse congresso sujo aprovando reformas e ajustes contra o atraso, justamente eles, que desejam o atraso, tão propício a roubalheiras mais tradicionais? O escândalo foi desmoralizado – estamos sendo arrasados pela “normalidade”. Isso. Estamos nos acostumando a essa anomalia e vamos aceitando a crescente desgraça com fatalismo ou cinismo: tinha que ser assim, ou dane-se....
E aí, surge a turma do “precisamos”, da qual eu faço parte, tristemente. Precisamos disso, daquilo, mas ninguém sabe como resolver. Não temos agentes executores da política do “precisamos”.
Precisamos resolver o problema da administração nos Estados e nos municípios, que já estão sem verbas para pagar os funcionários públicos, os hospitais sem remédio, os limpa-fossas, sei lá. Precisamos combater a violência, mas nada funciona para impedir o crime crescente. A polícia não tem dinheiro. Os criminosos têm grana para comprar até canhões antiaéreos no Paraguai. Não é que a violência vai apenas crescer; não há como impedi-la, com traficantes vagando de metralhadora no centro da cidade, estuprando e matando.
Como imaginar um plano possível para salvar e melhorar as favelas no Rio ou em Recife ou em Alagoas, em todas as cidades principais, para além das UPPs? O que fazer? Cartas para a redação. Esta crise é especial, talvez invencível.
Em geral, as crises surgem, acontecem e, quase sempre, somem. Acabam. Até a terrível ditadura tinha um fim previsível, mas, depois de 12 anos de absurdos do PT, esta crise agora é de areia fina, de areias movediças; ela talvez não acabe, pois não tem um defeito único a ser combatido – é uma miscelânea de crimes históricos. A crise não tem um inimigo só – é um ramalhete de equívocos.
A miséria é a ponta suja de uma miséria maior. Nós fazemos parte dela. O Brasil está contaminado de misérias. Não existe um mundo limpo e outro sujo. Um infecta o outro.
A burocracia é miséria, a corrupção é miséria, a estupidez brasileira é miséria. A miséria não está nas periferias e nas favelas; está no centro da vida brasileira. Somos uns miseráveis, cercados de miseráveis por todos os lados.
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