terça-feira, 31 de janeiro de 2023

A irrelevância ao alcance de todos

Repassando outro dia no jornal as listas de livros mais vendidos, vi que nosso complexo de vira-lata continua ovante. Dos 10 mais, 9 são americanos e 1 é brasileiro. Não sei se lá fora também é assim. Como muitos países estão vivendo dias conturbados, imagino que, neles, o interesse pelos assuntos nacionais seja pelo menos equivalente ao fascínio pelas coisas dos EUA. A exemplo do Brasil de tempos mais nacionalistas.

Num jornal de 1964 que há pouco me caiu aos olhos, também havia uma lista de livros mais vendidos. Exceto por um ou outro sobre a Guerra Fria ou a fome na África, a maioria era de brasileiros. E, entre estes, um gênero então em voga: tratados “eruditos” sobre temas irrelevantes e vice-versa, com citações em latim, prefácios de gente séria e crítica feroz de tudo. Alguns: “A Ignorância ao Alcance de Todos” (1962), “O Puxa-Saquismo ao Alcance de Todos” (1963) e “Seja Você um Canibal” (1964), todos de Nestor de Hollanda, e “Tratado Geral dos Chatos” (1963), de Guilherme Figueiredo. Tenho-os até hoje, lidos, sublinhados e anotados.

Nestor de Hollanda (1921-1970) era radialista, humorista e comunista, mais ou menos nessa ordem. E Guilherme Figueiredo (1915-1997), um escritor respeitado, com largo trânsito no meio e dramaturgo levado à cena por Tonias, Procopios e Bibis (anos depois, para seu azar, seu irmão caçula, João Batista, seria o quinto presidente da ditadura).

“A Ignorância…” pregava a analfabetização compulsória do país, já que a alfabetização parecia impossível. “O Puxa-Saquismo…” era um manual da bajulação para políticos e populares. “Seja Você um Canibal” se compunha de receitas culinárias para levar ao fogo famosos e anônimos. E, “Tratado Geral…”, um guia para identificar, evitar e, se preciso, matar um eventual chato no nosso caminho.

Todos ficaram meses nas listas dos jornais e vários ao mesmo tempo. Outro Brasil.

Ruy Castro

Ser moderno

A história do mundo tem sido contada a partir de um formato consagrado nesses últimos séculos por cientistas sociais de respeito. Mas enquanto esses pensadores enlouquecem tentando desvendar a crise entre indivíduo e sociedade, os brasileiros reivindicamos a originalidade absoluta de nossos costumes, hábitos e hinos que afirmam nossa diferença. Vivemos nossa abençoada vagabundagem cantando cantigas originais, organizando relações sociais só nossas, pensando livremente sobre o que for.

Gente importante, celebrada por aí, sempre defendeu esse caráter único com um sorriso mal disfarçado, saudando nossa divina originalidade. Autores como Gilberto Freyre (espécie de fundador metafísico da tendência), Mario e Oswald de Andrade, Heitor Villa-Lobos e Emiliano Di Cavalcanti, Jorge de Lima e Guimarães Rosa, Nelson e Glauber, apesar dos protestos ruidosos diante da injusta fome do povo, não tinham dúvida de que esse povo seria capaz de feitos extraordinários sem o lugar-comum narrativo absorvido e manifestado pelos outros povos.


Nessas horas me ocorre sempre o primeiro parágrafo da obra cintilante de um deles, Paulo Prado, que se refere ao Brasil como o território de uma população triste e melancólica em permanente anúncio de uma alegria construída por sua produção cultural. Ou como disse Euclides da Cunha sobre o poeta Castro Alves, “foi ele quem nos ensinou a metáfora, o estiramento das hipérboles, o vulcanismo da imagem e todos os exageros da palavra a espelharem impulsividade e desencadeamento de paixões que são essencialmente nativos”. E mais adiante na mesma conferência: “Penso que seremos em breve uma componente nova entre as forças cansadas da Humanidade”.

Do século XIX para o XX, heróis de José de Alencar e de Machado de Assis disputavam o coração dos leitores e a ilusão dos eleitores sobre o que melhor representava o Brasil. Enquanto Alencar criava situações típicas da colonização em que o valor dos locais era puro e por isso mesmo indiscutível, Machado reproduzia com ironia o talento destrutivo de situações que deviam estar ocorrendo em outro lugar, a revelar a existência de uma civilização irregular destinada a logo desaparecer.

Depois da ditadura militar e do fracasso social dos governos de José Sarney e Fernando Collor, tornou-se vitoriosa a ideia de que nada seria capaz de tirar o povo brasileiro da estrada por onde seguia. A estrada do alegre insucesso, da compulsiva festa de gargalhadas autocríticas, do riso apoiado numa cultura de televisão que derrotara todas as outras formas de conhecimento, cultivando e difundindo uma imagem do Brasil que, como seu povo, nunca tivéramos antes.

Perdemos assim o jeito de tentarmos nos explicar. Nos apropriamos de um sistema de análise em que buscamos no moderno uma saída para o vazio da ausência de futuro. O fim de toda a glória de nossa existência tornada mera presença sobre a face do corpo celeste, o planeta que nos coube.

Bolsonaro e seus cupinchas arruaceiros agravaram essa desmoralização desvalorizando nossa capacidade de descobrir novos rumos. Essa extrema direita de moleques se tornou entre nós uma esperança impossível. Assumiu-se então a ideia consolidada do fracasso da nação, só o milagre tirava nosso povo da merda conceitual em que ele se encontrava. E esse milagre não estava mais no valor da moeda, o milagre do Real se acabara assim que aquele dinheiro perdera a força nos shoppings de nossas cidades.

Só nos restou portanto sermos modernos para darmos uma explicação sobre por que não havíamos produzido um conjunto de ideias que nos recolocasse no rumo da realidade que ainda podíamos frequentar. Ser moderno é não ser ideológico, é preferir uma explicação que nos faça desabrochar mesmo que não explique nada. Porque ser moderno é não dar bola nenhuma pro futuro.

Estava em curso o genocídio dos ianomâmis

Não poderia ser diferente, depois da reportagem da jornalista Sônia Bridi na reserva Indígena Ianomâmi, domingo, no Fantástico (TV Globo). O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou, ontem, a investigação da possível prática dos crimes de genocídio de indígenas e de desobediência de decisões judiciais por parte de autoridades do governo Jair Bolsonaro.

São imagens chocantes, que equivalem às das crianças do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, cujas fotos me embrulharam o estômago quando lá estive e vi montanhas de cabelo, sapatos, brinquedos, agasalhos, próteses, óculos e outros pertences pessoais que lhes foram tirados. O que mais impressiona é a “racionalidade” com que tudo foi feito, a partir da “banalidade do mal”, como disse a filósofa judia-alemã Hannah Arendt.

O conceito foi cunhado a partir do julgamento em Jerusalém do criminoso de guerra nazista Karl Adolf Eichmann, responsável por ocupar funções na Seção de Assuntos Judaicos do Departamento de Segurança de Berlim. Um dos principais colaboradores de Hitler, acusado pela morte de inúmeros judeus, Eichmann havia fugido para a Argentina, onde foi localizado por agentes israelenses, que o sequestraram e levaram para Jerusalém, onde foi julgado e condenado à morte.

Convidada para assistir ao julgamento, Arendt escreveu um livro. Chegou à conclusão de que Eichmann não era um ser demoníaco, mas um mal constante, que fazia parte da rotina de trabalho dos oficiais nazistas. Eichmann nunca se considerou culpado pelos crimes cometidos, disse que apenas “cumpria ordens, seguindo as leis vigentes naquele período”. Acreditava na sua inocência porque seguia ordens superiores e as leis do Estado nazista.


Na avaliação de Arendt, essa seria a justificativa para a ascensão em regimes totalitários e a banalização da razão e coerência do ser humano. Obcecado por poder e ascensão social, Eichmann faria qualquer coisa pelo reconhecimento social e o sucesso na hierarquia nazista, daí a banalização do mal que praticava. No entendimento de Arendt, a razão pela qual deveria ser punido era principalmente essa. Sua racionalidade não era voltada para o bem comum, mas apenas em seu próprio benefício.

As crianças ianomâmis não foram exterminadas nas câmaras de gás como as crianças judias (1,5 milhão foram mortas no Holocausto), estavam sendo mortas pela fome e falta de assistência médica; as adolescentes e jovens eram exploradas sexualmente em troca de comida. Os ianomâmis estavam sendo exterminados por uma política de Estado. Um livro escrito pelo coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto (Biblioteca do Exército, 1995) sustenta que a existência dos Ianomâmis era uma farsa.

A Farsa Ianomâmi disseminou nas Forças Armadas e em alguns setores o medo de perder a soberania em áreas da Amazônia brasileira. Menna Barreto apontava um conluio entre ONGs e forças estrangeiras para “separar do Brasil” o território indígena, “cedê-lo aos fictícios ‘ianomâmis’ e “preparar a dominação futura da Amazônia (…) para a posterior criação de países indígenas independentes, sob a tutela das Nações Unidas”.

O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional de Bolsonaro, quando comandante militar da Amazônia, vocalizou essa tese publicamente, em razão da demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol. Todos os órgãos federais, inclusive os destacamentos de fronteira das Forças Armadas, governadores e prefeitos foram coniventes com a situação. Sabia-se que os garimpeiros estavam contaminando os rios, matando e explorando os ianomâmis, em aliança com os traficantes de cocaína.

Havia um centro de comando dessa política de extermínio: o então presidente Jair Bolsonaro, aliado dos garimpeiros, que trocou e escolheu a dedo os principais responsáveis pelos órgãos de fiscalização, controle e repressão de Roraima, com a orientação de deixar os índios à míngua e liberar geral o garimpo ilegal, assim como em outros estados da Amazônia.

Barroso tomou a decisão de mandar investigar a grave situação enfrentada por nossos indígenas, como a Ianomâmi, com base nos fatos já comprovados. De acordo com lei, comete o crime de genocídio a pessoa que age com intenção de destruir, totalmente ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Ordenou, ainda, que o governo atue para garantir a retirada de garimpos ilegais em sete terras indígenas e fixou prazo de 30 dias para que seja apresentado um diagnóstico dessas comunidades, com o respectivo planejamento e cronograma de execução de medidas.

Seu despacho traduziu a banalização do mal: “Quadro gravíssimo e preocupante, sugestivo de absoluta anomia (ausência de regras) no trato da matéria, bem como da prática de múltiplos ilícitos (crimes), com a participação de altas autoridades federais”.