terça-feira, 1 de novembro de 2016

O que mudou?

Ao analisar o panorama cultural da mais longa democracia do mundo — os Estados Unidos —, Robert Hughes detectou em seu livro “Cultura da reclamação” os sinais de um país dividido, incapaz de lidar com suas verdadeiras necessidades. Pois os perigos previstos já aconteceram: a relação entre campanhas eleitorais e mídia televisiva, a herança puritana da direita, a queda do nível reflexivo, o elogio da superficialidade, a ignorância política das massas, a emergência do neomoralismo e a onda regressiva do politicamente correto, entre outros.

A verdade assustadora do mundo atual apareceu. Mas, afinal, o que mudou em nossas vidas?

Vamos lá.

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Mudou a ideia de uma grande pátria americana organizando a sociedade como um parque temático, um supermercado ou uma Disneylandia — 11/9 e, agora, Trump abriram um buraco negro nos EUA; lá (e no mundo) acabaram a “finalidade”, o “projeto”, a busca de certezas, de “sentido”, a vontade de tudo explicar pela razão, o doce aroma do sucesso a qualquer preço, o “happy end”, o princípio, o meio e o fim, a vontade de esquecer a morte, por sua transformação em espetáculo; mudou a morte, que não está mais num leito burguês com extrema-unção e família chorando, a morte que já é um cachorro pelas ruas, atacando de repente; mudou a guerra, que antes era mundial em duas frentes e agora virou um arquipélago de tragédias disseminadas pelos continentes, mas também voltou a Guerra Fria com o psicopata Putin; mudou a compaixão, que hoje esbarra na pele de rinoceronte de nossa alma fria; mudaram nossos olhos, que ficaram mais duros na contemplação das desgraças, cresceu a religião e a fé, caíram a esperança e a caridade; mudou o sonho de “solução”, a ideia de “futuro redentor”, chegou o fim do “fim da História”; mudou o sonho detergente de uma vida asséptica, sem fraturas, a utopia do conforto total, da harmonia doce do lar, das pérolas faiscantes, a presteza dos serviçais silenciosos e humildes; mudaram os pecados veniais, as deliciosas perversões irresponsáveis, acabou a oportunista e enobrecedora contemplação da miséria “em compota” por militantes imaginários, pois a miséria chegou nas asas da estupidez religiosa; mudou a rebeldia, pois os marginais não são mais heróis — são uma cultura de ameaças —, acabou a esperança da revolução fácil, mágica, acabou a “boa consciência” de sermos confortavelmente “a favor do bem”, dos índios, das bichas perseguidas, dos excluídos, das baleias, acabaram as ideias “universais” — ficaram só o singular e o mundial —; mudou a inocência, que virou cumplicidade; mudou a mentira, que virou verdade; mudou a alegria, que virou ironia ou cinismo; mudou o sim e o não — tudo que é negado é real e vice-versa; mudou a esquerda, que virou direita — o pretexto “esquerda” virou uma máscara para o fascismo bolivariano na alma —, o surrealismo virou piada naturalista, o indivíduo indivisível deu lugar ao indivíduo esfacelado por bombas, coberto de pizzas sangrentas, acabou o “outro”, pois surgiu outro horrendo “outro”, sujo e mortífero, suicidando-se às gargalhadas; mudou também o difuso sentimento ocidental de superioridade, a aparente tolerância e a falsa generosidade, acabou o ser-para-si, o nada, o tempo para a frente, pois o terror nos mandou de volta para o ano 1.000; acabou a esperança de achar Deus entre as galáxias, pois Deus já está entre nós armado até os dentes, acabou a deliciosa sensação da fleuma, acabou a coolness, pois o homem-bomba desbancou o homem-cool; ficou mais evidente o desejo brutal dos egoístas, disfarçado de sorridente entusiasmo, ficamos mais conformistas e mais medrosos; acabou a democracia “de boca”, entrou em crise a sensação de luxo fabuloso, a ideia de beleza, até mesmo a elegantíssima vivência do desespero crítico na arte iluminista; acabaram a malaise abstrata, a náusea romântica, a delícia das grandes dores de amor, enquanto a arte se esvai, destruída pelos efeitos especiais; acabou a depressão culta que enobrece o sofredor inútil; acabaram os filmes-catástrofe que são mais suaves do que a realidade (aliás, o que era mesmo a tal da realidade?); acabou o amor romântico, ficou um amor de consumo, um amor de mercado, não temos mais músicas líricas, nem o lento perder-se dentro de “olhos de ressaca”, nem o formicida com guaraná; só restaram as fortes emoções, as lágrimas, os motéis, as perdas, os retornos, os desertos, a chuva, o sol, o nada, pois o amor hoje é o cultivo da “intensidade” contra a “eternidade” e porque temos medo de nos perder no amor e fracassar na produção; mas ainda temos a nostalgia por alguma coisa que pode voltar atrás. Não volta. Nada volta atrás. A infelicidade de hoje é dissimulada pela alegria obrigatória — uma “fast food” da alma — pois ser deprimido não é mais “comercial”, nossos corações clamam por socorro de Bruce Willis, Van Damme, Super-Homem, todos desempregados, vagando pelas ruas.

Mudou o tempo — surgiu o enorme “presente” — tudo é aqui e agora; o passado virou depreciação. Os meios de comunicação eram extensões de nossos braços, olhos e ouvidos — hoje, nós é que somos extensões das coisas. Com o fim do sujeito, seremos todos objetos. Finalmente, a esperança será substituída pelo fatalismo islâmico. Só os homens-bomba vão gozar de livre arbítrio: por uma fração de segundo serão livres, leves e soltos.

Arnaldo Jabor

O que a esquerda não confessa

Os poucos representantes da esquerda que refletiram até agora sobre os resultados das eleições municipais deste ano disseram ou escreveram basicamente duas coisas:

1. A onda conservadora que atinge muitos lugares do mundo alcançou o Brasil.

2. Aqui, os que não votaram com a direita preferiram não votar. Prova disso: a abstenção e o voto nulo e branco.

Em resumo: não foi culpa da esquerda que o eleitor brasileiro a tenha abandonado, ou que parte dos eleitores tenha preferido não votar.

Ela admite que foi temporariamente abandonada, mas não explica por quê. A explicação teria que passar pelo exame dos muitos erros que ela cometeu.

Que tal citar só um deles, talvez o mais decisivo?

“O poder de compra das famílias brasileiras teve forte retração em 2015 e 2016, explicando o recuo do consumo no mesmo período; segundo estimativas da Tendências Consultoria Integrada, depois de cair 2,8% no ano passado, o poder de compra dos brasileiros vai encolher mais 7% neste ano, descontada a inflação, num cenário marcado pela retração do crédito e queda da massa ampliada de renda. Em dois anos, é uma queda real de quase 10%; para 2017, a expectativa é de expansão de 1,1% em termos reais, puxada por uma evolução melhor de empréstimos e financiamentos”.

No início de 2006, depois de ele ter deixado o governo por causa do escândalo do mensalão, ouvi do ex-ministro José Dirceu:

- Com mensalão ou sem ele, Lula será reeleito. A economia vai bem. Se o voto ético definisse eleição, Orestes Quércia jamais teria sido eleito governador de São Paulo.

Não havia Lava-Jato naquela época.

Abstenção, votos nulos e brancos representam a reação popular à política

O Estado de São Paulo, edição de segunda-feira, revelou que o índice de votos em branco e nulos, nas urnas de domingo, alcançou 14,2%, o maior registrado até hoje, enquanto a abstenção geral atingiu também o recorde de 21,5%. Os dados são do TRE e ainda se encontram sujeitos a revisões mínimas. Mas o panorama já está traçado e definido em sua essência. Isso em todo o país. Na cidade do Rio de Janeiro, a abstenção foi de 23%. Os brancos e nulos somaram 20%.

A insatisfação quase geral explica o fenômeno. Os eleitores, em grande parte, revelaram-se descontentes, tanto da política, mas, sobretudo, dos políticos. Da falta de respostas concretas a problemas que se eternizam e inclusive ameaçam permanecer como uma fonte de ansiedade que se reabastece de promessas vãs. Todos os candidatos vão resolver os desafios da saúde pública, educação, segurança e do transporte. Nada disso tem ocorrido.

A perspectiva financeira do RJ em 2014 era péssima. Mas o candidato reeleito Pezão (ele assumira no lugar de Sérgio Cabral em abril) a expôs como das melhores. Hoje, dois anos depois, o caso é de insolvência praticamente total. As dívidas se acumulam. E as isenções tributárias a empresas já se acumularam.


Os eleitores sentem-se traídos, mas o que podem fazer depois de serem alvo (como é habitual) de falsas promessas? Nada. Só protestar contra a falsa sedução política. Na sucessão presidencial de 2014, por exemplo, a presidente Dilma Rousseff reelegeu-se assumindo uma sequência de compromissos. Mantida no Palácio do Planalto, colocou em prática exatamente o contrário do que apresentara como seu programa de governo. Não foi o único caso. Os que votaram levando-a à vitória tiveram o impulso lógico de buscar seu voto de volta das urnas eletrônicas. Já era tarde.

Assim, de ilusão em ilusão, foram conduzidos a uma desilusão acentuada.

Essa desilusão foi projetada nas urnas de domingo em 57 cidades brasileiras, especialmente no Rio. Na capital fluminense, as legendas submergiram tragadas pela sua própria falsidade. Os candidatos não representavam de forma firme a esperança popular. Daí os votos nulos e brancos, daí uma abstenção bem maior que a habitual.

É claro que existem milhares de casos de impossibilidade de comparecer às seções eleitorais, porém, comparando-se o panorama carioca ao de outras capitais, constata-se a enorme diferença. A abstenção aqui foi 10 pontos maior, da mesma forma que a parcela de sufrágios brancos e nulos. Significa um choque, um lance de protesto contra a farsa que se repete indefinidamente.

Só houve definição, aliás muito nítida, quanto à desonerações de impostos. Nenhum candidato focalizou o tema, profundamente crítico e que possui enormes reflexos negativos, produzindo o déficit fiscal e desequilíbrio orçamentário. Desequilíbrio que é pago, como sempre, pelo povo no seu dia a dia.

Quadro triste, realidade desanimadora. Contaminou a emoção de votar e atingiu a democracia. Para reabilitá-la é preciso que a classe política ouça e responda à voz das ruas.
Pedro do Coutto

Sempre alerta e operante

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Mais o Estado se desenvolve, encerrando os homens nas suas malhas exatas e geladas, mais a confiança humana aspira a colocar no outo extremo dessa imensa cadeia a imagem venerada de um homem protetor
Marguerite Yourcenar, "Memórias de Adriano"

PT saudações

Se alguém ainda acreditava na possibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva ser candidato novamente à Presidência da República em 2018, mesmo depois da Lava Jato e do impeachment de Dilma Rousseff, o eleitor brasileiro tratou de dizer de forma clara e cristalina: não vai acontecer.

A derrota do PT é tão avassaladora que não permite nenhuma leitura atenuante. Não se salvou nada nem ninguém no partido. Mesmo o rosário da renovação da sigla, que começou a ser desfiado por Tarso Genro e outros, não sobrevive a uma constatação dura: não há candidatos aptos à tarefa.

O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, citado como opção na terra de cegos que virou o partido, não quer assumir a missão nem seria um nome com trânsito suficiente para desbancar os caciques de sempre e enterrar de vez o lulismo – do qual, diga-se, foi um dos últimos produtos exitosos.

Sim, porque a única remota chance de o PT se reerguer seria enterrar o lulismo, mas o partido há muito tempo fez a opção oposta, a de se enterrar se for preciso para defender Lula, em uma simbiose que as urnas acabam de rechaçar de maneira fragorosa.

Tanto que o partido não consegue pensar em uma alternativa para 2018 que não seja seu “comandante máximo”, para usar a designação que a Lava Jato deu ao ex-presidente.

Charge do dia 01/11/2016

A insistência na tese de que Lula é vítima de perseguição – com lances patéticos como queixa à ONU e manifestações internacionais bancadas por “sindicatos” que nada mais são que versões da CUT para gringo ver – mostra que o PT decidiu atrelar seu destino ao do ex-presidente.

Dilma já parece ter sido esquecida pelos petistas na mesma velocidade com que o foi pelos brasileiros. Tanto que, com exceção de Jandira Feghali, ninguém se lembrou dela nas eleições municipais.

A presidente cassada tem sido vista fazendo compras tranquilamente no Rio, em um sinal inequívoco de que o discurso de que houve um golpe era uma fantasia, a única saída para um partido que perdeu o poder porque já não tinha condições de governar nem apoio popular, como o resultado das eleições tratou de deixar evidente.

É essa reflexão que o PT terá de fazer se quiser se refundar. Isso pressupõe admitir que patrocinou um esquema de corrupção cuja dimensão ainda está por ser inteiramente conhecida. Admitir que levou a economia do País à maior recessão da história. Que perdeu a governabilidade antes de Dilma perder a cadeira. E que Lula não é uma vítima de uma perseguição implacável que envolve Judiciário, imprensa, Ministério Público e sabe-se lá mais quem.

Quais as chances de o partido fazer isso seriamente? Remotas, para não dizer inexistentes.

Do outro lado do pêndulo político, o PSDB sai do pleito municipal como o grande vencedor mais por memória do eleitorado de décadas de polarização com o PT do que por força própria. Mas o fim dessa alternância, pelo simples fato de que um dos polos se esfacelou, também obrigará os tucanos a reverem sua estratégia para voltar a ter chance de governar o País.

Isso significa trocar as disputas de bastidores entre caciques para ver quem será o candidato da vez, uma constante desde a sucessão de Fernando Henrique Cardoso, por alguma nitidez programática capaz de mostrar ao eleitorado que o partido tem um projeto para tirar o País do buraco.

A pulverização de votos por uma miríade de siglas mostra que o eleitor, embora ainda enxergue no PSDB e PMDB as alternativas mais seguras à ruína petista, começa a procurar opções.

A negação da política é uma das marcas indeléveis de 2016. O único político de expressão nacional que saiu vitorioso, Geraldo Alckmin, acertou ao perceber o Zeitgeist e apostar em um candidato em São Paulo com o discurso da não política. Em escala nacional, no entanto, o País já viu o estrago que a eleição de um outsider pode provocar. Com Fernando Collor, antes. E com Dilma depois.

Inesquecível


Ingrid Bergman e Humprey Bogart em "Casablanca" (1942), 
dirigido por Michaelç Curtiz, com Dooley Wilson, ao piano

Turma de Dilma levou R$ 7,2 milhões em seis meses

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Desde o afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff, em 12 de maio, ex-ministros e assessores do seu finado governo não se acanharam de tomar R$ 7,2 milhões dos cofres públicos sem trabalhar. É que eles se habilitaram às boquinhas da “quarentena”, embolsando “vencimentos de transição”, por seis meses, enquanto procuravam empregos no mercado. A mamata acaba na próxima quarta-feira, dia 12.

O contribuinte pagou mais de R$ 3,1 milhões apenas a ex-ministros do governo Dilma Rousseff, defenestrada pelo impeachment.

Todas as quarentenas foram concedidas pela Comissão de Ética Pública, cujos membros foram nomeados pela ex-presidente, claro.

Salários de autoridades demitidas da administração do PT podem chegar ao triplo do teto constitucional.

Aldemir Bendine recebeu R$123 mil por mês como ex-presidente da Petrobras, empresa-alvo do maior escândalo de corrupção da História.

Supremo enfim começa a luta contra o foro privilegiado, mas o Congresso...

“Quem fala demais dá bom dia a cavalo”, diz o antigo ditado. Mas às vezes isso pode se transformar numa qualidade. No caso do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, esse hábito é salutar para a sociedade, que precisa saber em detalhes o que pensam as autoridades. Na tarde deste domingo, ao retornar ao Tribunal Superior Eleitoral após uma breve visita ao Rio de Janeiro, Gilmar enfim admitiu que o modelo do foro privilegiado para políticos não atende mais à realidade brasileira. Segundo ele, é preciso encontrar uma nova fórmula.

É uma declaração a ser comemorada, porque o foro privilegiado se transformou em sinônimo de impunidade de políticos e autoridades corruptas. O ministro Luís Roberto Barroso foi o primeiro a denunciar essa aberração. Suas declarações a respeito tem sido impactantes. Afirmou, repetidas vezes, que o Supremo não tem a menor condição de conduzir os inquéritos e processos contra parlamentares envolvidos na Lava Jato e em outros atos criminosos.

O ministro Barroso fez essas gravíssimas revelações e defendeu mudanças no foro privilegiado, mas parecia estar clamando no deserto. Não houve a menor repercussão no Supremo, no Congresso e no Governo. Mas ele continuou insistindo.

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Desde 1988, ano em que a Constituição entrou em vigor, mais de 500 parlamentares foram investigados no Supremo, mas a primeira condenação só ocorreu em 2010. De lá para cá, apenas 16 congressistas que estavam no exercício do mandato foram condenados por crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e desvio de verba pública. Entre os condenados, apenas o ex-deputado Natan Donadon está atrás das grades, na Penitenciário da Papuda, em Brasília, por desviar recursos da Assembleia de Rondônia. Além dele, quatro ex-parlamentares estão em prisão domiciliar no momento. Outros dois já cumpriram a punição.

Três recorrem da sentença – um deles, o senador Ivo Cassol (PP-RO), segue no exercício do mandato dois anos após ter sido condenado pelo Supremo a quatro anos e oito meses de prisão por crimes contra a Lei de Licitações.

Outros cinco condenados – Cássio Taniguchi (DEM-PR), Abelardo Camarinha (PSB-SP), Jairo Ataíde (DEM-MG), Marco Tebaldi (PSDB-SC) e Marçal Filho (PMDB-MS) – escaparam da punição porque a Justiça perdeu o prazo para condená-los. Em outras palavras, seus crimes prescreveram.

Como o Supremo não tem condições de conduzir inquéritos e processos, a impunidade está praticamente garantida, conforme Barroso denuncia. O maior exemplo é o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), que responde a 12 inquéritos no STF, um deles tramita desde 2007, com abundantes provas contra ele – pagamento de pensão alimentícia pela empreiteira Mendes Júnior e uso de notas fiscais frias.

Mesmo com essa extensa folha corrida, Renan preside o Senado e está como segundo nome na lista sucessória da Presidência da República, vejam a que ponto chegamos.

O foro privilegiado, nos moldes adotados no Brasil, é mais uma jabuticaba política, não existe em nenhum país respeitável. Temos 22 mil autoridades beneficiadas por essa excrescência jurídica. É uma vergonha, que deprecia o Brasil no concerto das nações, como se dizia antigamente.

Com a adesão de Gilmar Mendes, é quase certo que o Supremo enfim se levante contra o foro privilegiado. Mas na verdade tudo depende do Congresso, que precisa aprovar uma moralizadora emenda constitucional. É aí que mora o perigo. Deputados e senadores somente aceitarão perder o foro privilegiado se o próprio Supremo encabeçar um movimento nacional pela moralização. Mas é aí que também mora o perigo.

Mas não se pode desanimar. É preciso que os brasileiros de boa vontade deem força a essa campanha do ministro Luís Roberto Barroso. Mas quem se interessa?

Precisamos de um novo Lutero

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Martinho Lutero questionou o poder. Ele desestabilizou o mundo medieval. Ele ousou contestar tanto o papa como o imperador romano – algo que 500 anos atrás era considerado não apenas impossível, mas também uma sentença de morte certa.

Nos tempos de Lutero, o imperador e o papa detinham o poder. Mas quando se tratava de questões de fé, o monge agostiniano não queria se subordinar a eles, mas apenas ao poder da própria consciência. Ele colocava em dúvida a infalibilidade do papa e se recusava a obedecer ao soberano mais poderoso da Europa. A reação de Roma a tal ofensa foi a excomunhão, e o imperador Carlos 5º declarou-o um fora da lei.

Lutero justificou a própria rebeldia apelando à liberdade de consciência. Ele estava fortemente convencido de que a fé é um dom; a busca por Deus não se permite acelerar por meio de atos de bondade; e pecados não podem ser pagos com indulgências.

Tal mensagem teológica caiu como uma bomba no auge do comércio de indulgências e nos primórdios da imprensa. Ela renovou o cristianismo, pressionou a Igreja Católica a se modernizar e abriu o caminho para o Iluminismo. Lutero construía assim as bases para a tolerância, a liberdade religiosa e a autodeterminação, tal como as conhecemos hoje.

O monge agostiniano, no entanto, não se via como um revolucionário, mesmo tendo impulsionado mudanças revolucionárias. Ele não foi um divisor da Igreja, mas um rebelde conservador que queria reformar a própria Igreja e retornar às origens do cristianismo.

O fato de ele ter fracassado se deve em parte à falta de vontade por parte de Roma. O Vaticano rejeitou a declaração de consenso do Colóquio de Regensburg, em 1541. Assim, 24 anos após a publicação das 95 teses de Lutero, foi desperdiçada a última chance de acordo entre católicos e protestantes.

Lutero não foi um modelo de tolerância. Ele rompeu não apenas com Roma, mas também com outros reformadores, como Ulrich Zwingli, Thomas Müntzer e Erasmo de Roterdã. Sem falar em seu antissemitismo.

Mesmo assim, o monge abriu o caminho para a tolerância. Pois a fundação de várias novas igrejas mundo afora fez com que cristãos de diferentes confissões fossem obrigados a aceitar a fé uns dos outros – um processo difícil, que ainda não foi concluído.

Lutero não foi uma figura popular. Ele foi um corajoso reformador, com personalidade forte e falhas. Ele é hoje parte do DNA alemão, sendo muitas de sua características consideradas "tipicamente alemãs": conservador, fiel aos próprios princípios, combativo. Se Lutero vivesse hoje, ele bateria de frente, ao mesmo tempo, com o Conselho de Segurança da ONU, a Otan e os líderes espirituais de todas as religiões.

Se ao menos Lutero pudesse voltar para terminar seu trabalho, sua Igreja poderia aproveitá-lo. Ele certamente se surpreenderia com o quão "evangélica" a Igreja Católica já se tornou. E certamente ele se entenderia melhor com o papa Francisco do que com Leão 10º e Clemente 7º, papas do seu tempo.

Se ele soubesse que Francisco homenageia a Reforma junto a protestantes justamente no dia 31 de outubro, na Federação Luterana Mundial em Lund, na Suécia, ele gostaria muito de estar entre os convidados. Talvez ele se arrependesse amargamente de, certa vez, ter chamado o papa de anticristo. Pois este pontífice também é corajoso e quer reformar a própria Igreja.

Se seus irmãos de fé comungassem junto a Francisco, então a obra de Lutero estaria completa e teria início a reforma da Reforma. Sentar juntos à mesa seria o maior presente que católicos e protestantes poderiam dar uns aos outros na véspera do 500º aniversário da Reforma Protestante.

O papa Francisco parece ter compreendido isso. Às vésperas do jubileu, ele inaugurou uma estátua de Lutero no salão de audiências do Vaticano. E recebeu peregrinos vindos do reduto da Reforma, segundo noticiou o jornal alemão Süddeutsche Zeitung. A resposta do pontífice à pergunta sobre quem são melhores, católicos ou protestantes, poderia servir de lema para o jubileu: "Melhores somos todos juntos."

Paisagem brasileira

Ao trabalho, José Rosário

Gente 'cult' tende a ser chata e afetada em suas opiniões

O mundo pós-moderno em que vivemos é um prato cheio para frescuras. A palavra "frescura" pode soar um pouco estranha para quem não possui um repertório um pouco mais sofisticado em filosofia. Se isso acontece com "frescura", quanto mais com a palavra "desconstruído", que tem em sua história gente chiquérrima, como o filósofo francês Jacques Derrida (1930-2004). Quanto a "pós-moderno", então, nem me fale. Nada é mais chique do que algo ser pós-moderno. Voltaremos já ao que seria "pós-moderno".

Vintage Comic, Pop Art:
Vamos por partes. Dizer que algo é uma "frescura" implica dizer que ela tem um frescor que lhe é peculiar, um certo tom de "novo", "avantgardiste", diria alguém versado em teoria da arte moderna. Portanto, sua raiz está no âmbito da natureza e da arte, ao mesmo tempo! Talvez, lá atrás, encontremos algum fenômeno a ver com mudança de estação do ano. Tal conceito também afeta qualquer teoria da moda.

Um detalhe: "frescura" sempre carrega alguma nuance de afetação. Quando algo ou alguém é "fresco", quer dizer que ele ou ela é um tanto exagerado (afetado) nas suas ações. Os mais velhos diriam: uma nota acima do necessário.

Na sua evolução semântica ("evolução semântica" quer dizer mudança de significado de uma palavra ao longo do tempo), a palavra "frescura" acabou assumindo um sentido próximo a "wannabe". O que quer dizer isso? Simples: "(to) want to be", em inglês, significa "querer ser algo","wannabe" significa "querer ser algo chique que não se é de verdade". Tipo gente que queria ser culta e por isso frequenta lugares "cult" para todo mundo pensar que é culta. Sacou? Conhece alguém assim? Aposto que sim. Gente "cult" tende a ser chata e afetada em suas opiniões.

E "descontruída"? Essa tem a ver com nossa época pós-moderna. Filósofos franceses chiques do final do século 20 se puseram a dizer (Jean-François Lyotard entre eles) que nossa época havia se cansado de "grandes narrativas". Em língua dos mortais, isso quer dizer ficar de saco cheio de muita teoria complicada e que é preciso ler muito para entender e, por isso mesmo, gastar o cérebro demais. Para os pós-modernos tudo é relativo e Shakespeare é igual a alguém batendo tambor repetidas vezes em algum recanto perdido do mundo.

Os pós-modernos começam então a misturar coisas que normalmente não iriam juntas, como bolsa Prada com pijamas no Iguatemi, paletós caros com sandálias Havaianas no Copacabana Palace e, assim, desconstruir tudo o que foi tomado como evidência antes deles. Daí chegamos a "frescuras desconstruídas" de nossa conversa de hoje.

Uma coisa que se adora desconstruir hoje em dia é a comida. Quando todo mundo acha que pode fazer comida gourmet, é melhor você se ater à comida da sua avó. Vou dar um exemplo real que me foi contado por uma amiga, recentemente. Olha só que primor de frescura (comida fresca que quer parecer inteligente e chique).

Um restaurante "top" na França. Num dado momento, é servido a ela uma "espuminha" com uma coisa escura e dura no meio do prato, completamente indecifrável. Mulher educada e com trânsito no mundo sofisticado, fica perplexa diante da dificuldade de identificar tamanha "desconstrução" do que seria muito banal, como carne, peixe, salada ou algo semelhante. Na sua modéstia típica de quem é de fato elegante, pergunta para o inteligente chef o que viria a ser aquilo.

Surpresa! Você não imaginaria a resposta, assumindo que você não seja uma dessas pessoas frescas que acham que comida deve ser inteligente.

A revelação máxima: a coisa escura era uma pedra. Pedra com espuminha. A desconstrução máxima do que seria comida: uma pedra. Nenhum animal come pedra. Mas humanos desconstruídos, sim. Hoje em dia está na moda fazer espuminha de tudo na comida. De todas as cores: vermelho, amarelo, azul, verde, marrom...

A ideia dessa comida desconstruída é que você chupe a pedra molhando ela na espuminha até secar o prato e a pedra. Alguém poderia se perguntar qual o limite da desconstrução gourmet. Que tal baratas africanas com espuminha de fezes seca?

Ana Júlia, a menina saída de um molde

Assisti ao vídeo em que essa menina, falando aos deputados estaduais do Paraná, discorre sobre os motivos das atuais invasões. Seu discurso é a síntese do que ensinam os fazedores de cabeça. Obviamente, ela não acessa o meu ou qualquer dos blogs que defendem ideias conservadoras ou liberais. Sua relação com o contraditório se exerce pela mera aplicação de rótulos. Os adjetivos que dispara - golpista, fascista, machista, homofóbico, racista - abastecem seu vocabulário como os únicos cabíveis a quem diverge do que lhe foi ensinado.

Ela diz que não a doutrinaram e que essa acusação é um "insulto". De fato, ela não foi doutrinada, mas não pelas razões que afirma. O que fizeram com ela foi ocultação do contraditório e escamoteação de outros pontos de vista, como observou Olavo de Carvalho ao discorrer sobre o muito conhecimento e tempo necessários a uma efetiva doutrinação. Isso fica claro quando Ana Júlia fala emocionada sobre o quanto aprende a respeito do Brasil e da política nos dias de invasão. Ora, durante esse período supostamente pedagógico ela convive somente com outros invasores e com os professores que os pastoreiam. Participa, pois, de um desses eventos dos quais companheiros e camaradas emergem com fulgores de profetas que ouviram a voz do Senhor. Mas é apenas a própria voz que escutam.
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A luz dessa sabedoria não remove escamas dos olhos. Por isso, a mocinha afirma que a "escola pertence aos estudantes" e daí deduz, sem esclarecer a relação entre causa e efeito, que o grupo ao qual pertence pode destituir dessa alegada posse todos os que pensam diferente e querem aula. E quem não entendeu algo tão obscuro é homofóbico, machista, fascista, bobo e feio. Ora, nem a escola é dos alunos, dado que pertence à comunidade, nem pode, qualquer fração ou facção dispor dela como bem quiser. Pretender que assim seja, para usar uma palavra da qual a oradora usa e abusa, insulta a Constituição e a inteligência de quem a ouve.

Li que o pai da adolescente seria vinculado ao PT. Ele tem todo direito de orientar sua filha como quiser, embora esse direito não prescinda de uma conduta respeitosa em relação à liberdade dela. Já à sua escola e aos seus professores não é dado esse direito! Vem daí a Escola sem Partido. O discurso da mocinha reforça a necessidade do projeto. Ela quer escola com partido, para reproduzir o que aprendeu. Essa é uma escola que permite ser capturada, que fecha suas portas aos demais alunos, professores e famílias, em nome dos objetivos políticos que lhe prescreveram. Nem mesmo uma eleição de segundo turno para prefeito será mais relevante e democrática que a tomada do prédio por seu aparelhinho pedagógico.

O jornalista Alexandre Garcia, em recente comentário, sugeriu que cada invasor de escola indicasse, em redação de 20 linhas, suas reivindicações. Pois é, seria bom mesmo ler esses textos. Sucessivos exames do ENEM e indicadores internacionais têm mostrado o rés do chão por onde se arrastam as redações de nossos estudantes. Dezenas de milhares de professores têm testemunhos a dar sobre o desinteresse e a indisciplina dos alunos, mais dedicados a gozar o presente do que a construir o futuro. Empenhados em bagunçar a escola e a aula para, supostamente, dar um jeito o mundo. Ademais, tais redações iriam revelar o caráter orquestrado e unitário dessas invasões.

O discurso, que já conta 400 mil acessos no YouTube, é a voz de todos os invasores. A menina parece, como tantos outros, saída de um molde. Crê que a discordância autoriza a grosseria e a causa justifica a desonestidade intelectual. Permite-se - suprema desfaçatez - jogar no colo dos deputados o cadáver do estudante morto a facadas por um colega, após uso de drogas, no interior de uma escola ocupada! "Suas mãos estão sujas de sangue", esguichou ela sobre os parlamentares, como se fizesse acusação plausível e não promovesse evidente transferência de responsabilidades.

A simpatia pela militantezinha e sua causa, expressa em veículos de comunicação, é - para falar como ela - um insulto ao público. Quem disse que a tolerância é sempre virtuosa?

Percival Puggina

Luta de viúva para manter sonho de 'escola de ricos para pobres'


Elizabeth e o falecido marido sonhavam com
escola beneficente para "ajudar a escola pública"
"Uma escola de rico para os pobres" era o lema de Thereza Elizabeth Castor, de 68 anos, e de seu marido, Belmiro Castor, quando decidiram usar o tempo livre para criar uma instituição de ensino gratuita para crianças da cidadezinha de Piraquara, na zona rural de Curitiba, no Paraná.

"Queríamos uma escola que tivesse todo o aparelhamento e o atendimento das escolas particulares - que atendem ao nível alto da nossa sociedade - para atender crianças necessitadas", diz dona Elizabeth, como é conhecida, à BBC Brasil.

O ano era 2007, e a primeira decisão do casal foi que a escola deveria ser completamente independente da administração pública, mantida por doações de pessoas ou empresas interessadas em projetos beneficentes.

"Como meu marido foi secretário de Educação do Estado, ele teve a experiência de que a parte educacional fica muito sujeita às vontades dos políticos, que ficam pedindo remanejamento de alunos e professores para agradar o eleitorado. Por isso não quisemos nenhum vínculo com a classe política."

"Além disso, queremos ajudar o poder público na educação. Não faria sentido a escola ser custeada por ele", afirma.

O Centro Educacional João Paulo 2º, começou a funcionar em 2010, financiado por um grupo de amigos do casal. Até o espaço físico da escola foi projetado, voluntariamente, pelo renomado arquiteto Manoel Coelho - autor do projeto da PUC-PR e do mobiliário urbano de Curitiba.

Alunos dos 6 aos 14 anos frequentam o colégio
 beneficente para aulas de reforço e de artes
O ensino infantil em período integral, para crianças de 3 a 5 anos, é reconhecido pela secretaria de educação. Dos 6 aos 14 anos, elas vão para lá depois da escola regular e têm aulas de reforço de português, matemática e literatura, além de teatro, caratê, futebol, artes, música e dança.Alunos dos 6 aos 14 anos frequentam o colégio beneficente para aulas de reforço e de artes

As quase 300 crianças atendidas pelo Centro João Paulo 2º, no entanto, são um número pequeno perto da mudança que Elizabeth e Belmiro queriam começar. Ver o modelo da escola copiado e reproduzido, diz ela, é o que realmente falta para realizar o sonho.

"Sabemos que só uma escola funcionando dessa forma ajuda um grupo de pessoas, mas acreditávamos que o projeto pudesse servir como um piloto para incentivar outros núcleos da sociedade a repetir isso, até em outras cidades", diz ela.

"Infelizmente, ainda não aconteceu."