terça-feira, 22 de junho de 2021
500 mil mortos
Há algo de profundamente perturbador quando parte da sociedade, estimulada pela desumanidade do governo de Jair Bolsonaro, considera natural a morte de meio milhão de conterrâneos na pandemia de covid-19. O choque é ainda maior quando se constata que muitos desses brasileiros mortos poderiam ter sobrevivido, não fosse a inépcia criminosa do governo, resultado direto do comportamento irresponsável do presidente.
Bolsonaro não se sentiu obrigado a dirigir nenhuma palavra de conforto e pesar quando a terrível marca de 500 mil mortos foi atingida. É como se essas vítimas não fossem dignas de luto.
O ministro das Comunicações, Fábio Faria, foi didático ao explicar por que não se deveria lamentar a morte de 500 mil brasileiros. No Twitter, escreveu: “Em breve vocês verão políticos, artistas e jornalistas ‘lamentando’ o número de 500 mil mortos. Nunca os verão comemorar os 86 milhões de doses aplicadas ou os 18 milhões de curados, porque o tom é sempre o do ‘quanto pior, melhor’. Infelizmente, eles torcem pelo vírus”.
Na lógica bolsonarista, portanto, comover-se ou revoltar-se com a morte de meio milhão de brasileiros equivale a “torcer pelo vírus” contra o Brasil. O importante, segundo o sequaz do presidente, é “comemorar” vacinas que Bolsonaro sabotou (e continua a sabotar, duvidando de sua eficácia) e os milhões de curados de uma doença cuja letalidade média é de 1% no mundo, mas que no Brasil superou 4% em março, segundo a Fundação Oswaldo Cruz. Ou seja, o Brasil do ministro Fábio Faria poderia ter mais vacinas e menos óbitos, mas escolheu deliberadamente ter menos imunizantes e incitar seus cidadãos a se exporem a uma doença fatal.
Ao menosprezar os que morreram, o governo os trata como fracos que faleceriam de qualquer maneira, seja pela idade, seja por terem “comorbidades”. Em março passado, quando mais uma vez estimulou os brasileiros a ignorarem medidas de isolamento social, Bolsonaro disse que “temos que enfrentar os problemas, respeitar obviamente os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades”. A respeito dos mortos, declarou na mesma ocasião: “Chega de frescura, de mimimi! Vão ficar chorando até quando?”.
Depreende-se que, para Bolsonaro e sua grei, a covid deve servir para realizar uma espécie de “seleção natural”: os que sobrevivem à pandemia se provam fortes o bastante para integrar a comunidade nacional idealizada pelo bolsonarismo; já os que morrerem não passaram no teste.
A isso se dá o nome de darwinismo social, ideologia que parece nortear Bolsonaro desde sua posse, influenciando ministros como Fábio Faria e Paulo Guedes – aquele para quem há brasileiros que passam fome porque a classe média desperdiça comida, e não em razão do desemprego que o governo nada faz para mitigar.
Ou seja, os delitos do governo Bolsonaro na pandemia não são somente de ordem jurídica ou administrativa, mas sobretudo moral. É como se o presidente não reconhecesse os milhares de mortos como cidadãos do país que ele julga governar.
Nessa nação delirante, ganha cidadania plena somente quem devota fé absoluta em Bolsonaro – a ponto de tomar remédios sem eficácia só porque foram propagandeados pelo presidente e de deixar de tomar vacinas eficazes só porque foram desacreditadas por Bolsonaro.
Para os “fortes” do país de Bolsonaro, o uso de máscara e as restrições de movimento, essenciais para conter a disseminação do coronavírus, são atentados às “liberdades” de que se julgam titulares e que estão acima do direito à saúde e à vida dos demais brasileiros. São, ademais, sinais de covardia, incompatíveis com a imagem viril que pretendem imprimir ao país que inventaram.
As manifestações de opositores do presidente no sábado passado em cerca de 200 cidades do País mostram, contudo, que cada vez menos cidadãos estão dispostos a viver no país do bolsonarismo ou a participar do experimento social-darwinista liderado pelo presidente da República. Exige-se nas ruas que o presidente pelo menos se envergonhe da marca de meio milhão de mortos, como faria qualquer chefe de Estado decente. Para sentir vergonha, no entanto, é preciso tê-la.
Bolsonaro não se sentiu obrigado a dirigir nenhuma palavra de conforto e pesar quando a terrível marca de 500 mil mortos foi atingida. É como se essas vítimas não fossem dignas de luto.
O ministro das Comunicações, Fábio Faria, foi didático ao explicar por que não se deveria lamentar a morte de 500 mil brasileiros. No Twitter, escreveu: “Em breve vocês verão políticos, artistas e jornalistas ‘lamentando’ o número de 500 mil mortos. Nunca os verão comemorar os 86 milhões de doses aplicadas ou os 18 milhões de curados, porque o tom é sempre o do ‘quanto pior, melhor’. Infelizmente, eles torcem pelo vírus”.
Na lógica bolsonarista, portanto, comover-se ou revoltar-se com a morte de meio milhão de brasileiros equivale a “torcer pelo vírus” contra o Brasil. O importante, segundo o sequaz do presidente, é “comemorar” vacinas que Bolsonaro sabotou (e continua a sabotar, duvidando de sua eficácia) e os milhões de curados de uma doença cuja letalidade média é de 1% no mundo, mas que no Brasil superou 4% em março, segundo a Fundação Oswaldo Cruz. Ou seja, o Brasil do ministro Fábio Faria poderia ter mais vacinas e menos óbitos, mas escolheu deliberadamente ter menos imunizantes e incitar seus cidadãos a se exporem a uma doença fatal.
Ao menosprezar os que morreram, o governo os trata como fracos que faleceriam de qualquer maneira, seja pela idade, seja por terem “comorbidades”. Em março passado, quando mais uma vez estimulou os brasileiros a ignorarem medidas de isolamento social, Bolsonaro disse que “temos que enfrentar os problemas, respeitar obviamente os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades”. A respeito dos mortos, declarou na mesma ocasião: “Chega de frescura, de mimimi! Vão ficar chorando até quando?”.
Depreende-se que, para Bolsonaro e sua grei, a covid deve servir para realizar uma espécie de “seleção natural”: os que sobrevivem à pandemia se provam fortes o bastante para integrar a comunidade nacional idealizada pelo bolsonarismo; já os que morrerem não passaram no teste.
A isso se dá o nome de darwinismo social, ideologia que parece nortear Bolsonaro desde sua posse, influenciando ministros como Fábio Faria e Paulo Guedes – aquele para quem há brasileiros que passam fome porque a classe média desperdiça comida, e não em razão do desemprego que o governo nada faz para mitigar.
Ou seja, os delitos do governo Bolsonaro na pandemia não são somente de ordem jurídica ou administrativa, mas sobretudo moral. É como se o presidente não reconhecesse os milhares de mortos como cidadãos do país que ele julga governar.
Nessa nação delirante, ganha cidadania plena somente quem devota fé absoluta em Bolsonaro – a ponto de tomar remédios sem eficácia só porque foram propagandeados pelo presidente e de deixar de tomar vacinas eficazes só porque foram desacreditadas por Bolsonaro.
Para os “fortes” do país de Bolsonaro, o uso de máscara e as restrições de movimento, essenciais para conter a disseminação do coronavírus, são atentados às “liberdades” de que se julgam titulares e que estão acima do direito à saúde e à vida dos demais brasileiros. São, ademais, sinais de covardia, incompatíveis com a imagem viril que pretendem imprimir ao país que inventaram.
As manifestações de opositores do presidente no sábado passado em cerca de 200 cidades do País mostram, contudo, que cada vez menos cidadãos estão dispostos a viver no país do bolsonarismo ou a participar do experimento social-darwinista liderado pelo presidente da República. Exige-se nas ruas que o presidente pelo menos se envergonhe da marca de meio milhão de mortos, como faria qualquer chefe de Estado decente. Para sentir vergonha, no entanto, é preciso tê-la.
De volta aos velhos tempos em que civis eram julgados por militares
CPI sabe-se o que é, quando nada porque tem uma aberta por aí a despertar os instintos mais primitivos do mais primitivo presidente desde o fim da ditadura militar de 64. Por via das dúvidas, CPI quer dizer Comissão Parlamentar de Inquérito.
IPM só sabe o que é os maiores de 60 anos de idade, e os militares; quer dizer Inquérito Policial Militar, uma arma fartamente usada durante a ditadura para perseguir os adversários do regime, fossem eles culpados de alguma coisa ou inocentes.
Em 1965, com a promulgação do segundo Ato Institucional, o julgamento de civis acusados de crimes políticos saiu da órbita do Supremo Tribunal Federal e passou para a do Superior Tribunal Militar. Gente comum passou a ser julgada por militares.
Por crimes políticos, entenda-se qualquer ato tido vagamente como “subversivo” e passível de ser enquadrado em um dos muitos artigos da Lei de Segurança Nacional, que por sinal não perdeu ainda a validade. Está vivinha, fingindo-se apenas de morta.
Se depender do governo Bolsonaro, civis voltarão a ser julgados pelo Superior Tribunal Militar. Com olhos cheios de sangue, os fardados entusiastas do ex-capitão um dia expulso do Exército por conduta antiética, suspiram para que esse dia chegue logo.
Parecer da Advocacia-Geral da União, comandada por André Mendonça, candidato terrivelmente evangélico a uma vaga de ministro do Supremo, defende que condutas de civis que ofendam instituições militares passem a ser julgadas por militares. Que tal?
O que é crime contra a honra das Forças Armadas? Acusar o comandante do Exército de ter-se rendido a Bolsonaro ao não punir o general Eduardo Pazuello? Ou isso não será apenas a livre manifestação de pensamento tão invocada pelos bolsonaristas?
Crime contra a honra das Forças Armadas seria dizer que este é o governo mais militarizado da história, mesmo a levar-se em conta o período da ditadura? Ora, outro dia foi o próprio presidente Jair Bolsonaro quem o reconheceu sem ser contestado.
Vai longe o tempo onde para suprimir a democracia era necessário que tanques rolassem, o Congresso fosse fechado, a Justiça emasculada e a imprensa posta sob censura. Há meios quase indolores de se fazer isso hoje e de alcançar os mesmos resultados.
IPM só sabe o que é os maiores de 60 anos de idade, e os militares; quer dizer Inquérito Policial Militar, uma arma fartamente usada durante a ditadura para perseguir os adversários do regime, fossem eles culpados de alguma coisa ou inocentes.
Em 1965, com a promulgação do segundo Ato Institucional, o julgamento de civis acusados de crimes políticos saiu da órbita do Supremo Tribunal Federal e passou para a do Superior Tribunal Militar. Gente comum passou a ser julgada por militares.
Por crimes políticos, entenda-se qualquer ato tido vagamente como “subversivo” e passível de ser enquadrado em um dos muitos artigos da Lei de Segurança Nacional, que por sinal não perdeu ainda a validade. Está vivinha, fingindo-se apenas de morta.
Se depender do governo Bolsonaro, civis voltarão a ser julgados pelo Superior Tribunal Militar. Com olhos cheios de sangue, os fardados entusiastas do ex-capitão um dia expulso do Exército por conduta antiética, suspiram para que esse dia chegue logo.
Parecer da Advocacia-Geral da União, comandada por André Mendonça, candidato terrivelmente evangélico a uma vaga de ministro do Supremo, defende que condutas de civis que ofendam instituições militares passem a ser julgadas por militares. Que tal?
O que é crime contra a honra das Forças Armadas? Acusar o comandante do Exército de ter-se rendido a Bolsonaro ao não punir o general Eduardo Pazuello? Ou isso não será apenas a livre manifestação de pensamento tão invocada pelos bolsonaristas?
Crime contra a honra das Forças Armadas seria dizer que este é o governo mais militarizado da história, mesmo a levar-se em conta o período da ditadura? Ora, outro dia foi o próprio presidente Jair Bolsonaro quem o reconheceu sem ser contestado.
Vai longe o tempo onde para suprimir a democracia era necessário que tanques rolassem, o Congresso fosse fechado, a Justiça emasculada e a imprensa posta sob censura. Há meios quase indolores de se fazer isso hoje e de alcançar os mesmos resultados.
Um Partido Militar
O papel das Forças Armadas e a relação entre civis e militares são tópicos de grande atualidade. Acontecimentos recentes mostram a delicadeza do assunto. Nos EUA o poder civil (presidente Trump) quis envolver os militares na política e na França militares da reserva pediram abertamente a seus colegas da ativa que derrubassem o presidente Macron. Na França, a ministra da Defesa tomou medidas para sufocar o início de rebelião dos militares da reserva. Nos EUA, o chefe do Estado-Maior conjunto das Forças Armadas fez pronunciamento dizendo que os militares não participam da política e se dissociou publicamente de Trump.
Em artigo no número atual da revista Interesse Nacional (www.interessenacional.com.br), o coronel da reserva Marcelo Pimentel oferece uma nova visão sobre o papel das Forças Armadas no atual cenário político ao descrever a participação dos militares no governo como um movimento consciente e organizado. Pimentel indica que existe um Partido Militar no governo. “A direção é composta por núcleo restrito que controla, dirige, orienta e gerencia o governo, o presidente e as próprias narrativas, sempre no sentido da facilitação do objetivo comum a todo partido: a conquista do poder (já alcançado) e sua manutenção (em processo)”. O Partido Militar não pode ser confundido com mera “ala militar” em oposição a uma “ala ideológica” no governo. “Há dois anos e meio, o Brasil possui, de fato, um governo militar controlado por partido informal que manobra os processos narrativos para ocultar a operação de seu mais evidente agente – o capitão”. “Embora assuma papel central-catalisador nos processos de politização/militarização que integram o fenômeno, o presidente não é figura dirigente e deliberante no Partido”.
Nem sempre é assim, mas essa interpretação explicaria a crescente participação de militares da ativa e da reserva no governo (mais de 6 mil, segundo o TCU), com interesses concretos que buscariam ser preservados, e a politização das Forças Armadas (14 dos 17 generais de Exército que integravam o Alto Comando do Exército em 2016 ocupam cargos políticos no governo). Todos com “autorização dos comandantes das três forças para ser nomeado ou admitido para cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, inclusive da administração indireta”.
A influência dos militares no governo justificaria a atitude presidencial de ressaltar que os militares estão engajados no seu projeto político (“meus generais”, “minhas Forças Armadas”, “os militares é quem decidem como o povo vai viver”). Explicaria também a observação de Bolsonaro ao general Villas Bôas “o senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”, a designação e a saída de um oficial-general da ativa para o Ministério da Saúde, a não punição desse general, que participou de evento político, e, até aqui, de sargento que, em encontro virtual, apoiou o governo. A politização das Polícias Militares, como se viu em diversos incidentes estaduais, culminando com a violenta repressão de uma manifestação pacífica no Recife, e a modificação da legislação para permitir armar a população, como foi dito publicamente, passaram a representar preocupação para o Partido Militar por fugirem de seu controle imediato.
A politização dos militares e a militarização da política podem criar uma divisão nas Forças Armadas, pela erosão da hierarquia e da disciplina, com consequências imprevisíveis, como assinalaram o ex-ministro Raul Jungmann e, principalmente, o general Santos Cruz. A substituição do ministro da Defesa e dos três comandantes das Forças singulares pode ser vista como uma atitude de cautela em relação à eventual divisão dentro do Partido Militar.
Apesar das informações de que os militares não admitiriam a volta de Lula e das declarações presidenciais de que não aceitará o resultado das eleições, que seriam fraudadas sem o voto impresso, vozes autorizadas garantem que as Forças Armadas, como instituição de Estado, não apoiarão nenhuma ameaça à ordem democrática e respeitarão a Constituição. Caso o Partido Militar pretenda manter-se no poder, com ou sem o atual presidente, como observou Pimentel, coloca-se um grande desafio para a sociedade civil. Cabe ao Legislativo e ao Judiciário exercerem papel mais ativo nas questões que dizem respeito à manutenção da ordem constitucional, da democracia e da estabilidade institucional pelo estreitamento da relação civil-militar com o lado que publicamente se coloca contra a politização das Forças Armadas.
O Congresso daria relevante contribuição para reafirmar a supremacia do poder civil se decidisse examinar questões que dizem respeito à participação de militares da ativa no Executivo e sobre a designação de ministro da Defesa. A indicação de militares da ativa para cargos no governo deveria seguir norma pela qual qualquer representante das Forças Armadas e da Polícia Militar que aceitar convite para integrar o Executivo, em qualquer nível, deveria passar automaticamente para a reserva. Por outro lado, a chefia do Ministério da Defesa, normalmente civil, poderia ser ocupada por oficial militar se o indicado estiver na reserva por pelo menos sete anos e, caso não preencha esse requisito, com a expressa autorização do Congresso, como ocorre nos EUA.
Rubens Barbosa, ex-embaixador e presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional
Em artigo no número atual da revista Interesse Nacional (www.interessenacional.com.br), o coronel da reserva Marcelo Pimentel oferece uma nova visão sobre o papel das Forças Armadas no atual cenário político ao descrever a participação dos militares no governo como um movimento consciente e organizado. Pimentel indica que existe um Partido Militar no governo. “A direção é composta por núcleo restrito que controla, dirige, orienta e gerencia o governo, o presidente e as próprias narrativas, sempre no sentido da facilitação do objetivo comum a todo partido: a conquista do poder (já alcançado) e sua manutenção (em processo)”. O Partido Militar não pode ser confundido com mera “ala militar” em oposição a uma “ala ideológica” no governo. “Há dois anos e meio, o Brasil possui, de fato, um governo militar controlado por partido informal que manobra os processos narrativos para ocultar a operação de seu mais evidente agente – o capitão”. “Embora assuma papel central-catalisador nos processos de politização/militarização que integram o fenômeno, o presidente não é figura dirigente e deliberante no Partido”.
Nem sempre é assim, mas essa interpretação explicaria a crescente participação de militares da ativa e da reserva no governo (mais de 6 mil, segundo o TCU), com interesses concretos que buscariam ser preservados, e a politização das Forças Armadas (14 dos 17 generais de Exército que integravam o Alto Comando do Exército em 2016 ocupam cargos políticos no governo). Todos com “autorização dos comandantes das três forças para ser nomeado ou admitido para cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, inclusive da administração indireta”.
A influência dos militares no governo justificaria a atitude presidencial de ressaltar que os militares estão engajados no seu projeto político (“meus generais”, “minhas Forças Armadas”, “os militares é quem decidem como o povo vai viver”). Explicaria também a observação de Bolsonaro ao general Villas Bôas “o senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”, a designação e a saída de um oficial-general da ativa para o Ministério da Saúde, a não punição desse general, que participou de evento político, e, até aqui, de sargento que, em encontro virtual, apoiou o governo. A politização das Polícias Militares, como se viu em diversos incidentes estaduais, culminando com a violenta repressão de uma manifestação pacífica no Recife, e a modificação da legislação para permitir armar a população, como foi dito publicamente, passaram a representar preocupação para o Partido Militar por fugirem de seu controle imediato.
A politização dos militares e a militarização da política podem criar uma divisão nas Forças Armadas, pela erosão da hierarquia e da disciplina, com consequências imprevisíveis, como assinalaram o ex-ministro Raul Jungmann e, principalmente, o general Santos Cruz. A substituição do ministro da Defesa e dos três comandantes das Forças singulares pode ser vista como uma atitude de cautela em relação à eventual divisão dentro do Partido Militar.
Apesar das informações de que os militares não admitiriam a volta de Lula e das declarações presidenciais de que não aceitará o resultado das eleições, que seriam fraudadas sem o voto impresso, vozes autorizadas garantem que as Forças Armadas, como instituição de Estado, não apoiarão nenhuma ameaça à ordem democrática e respeitarão a Constituição. Caso o Partido Militar pretenda manter-se no poder, com ou sem o atual presidente, como observou Pimentel, coloca-se um grande desafio para a sociedade civil. Cabe ao Legislativo e ao Judiciário exercerem papel mais ativo nas questões que dizem respeito à manutenção da ordem constitucional, da democracia e da estabilidade institucional pelo estreitamento da relação civil-militar com o lado que publicamente se coloca contra a politização das Forças Armadas.
O Congresso daria relevante contribuição para reafirmar a supremacia do poder civil se decidisse examinar questões que dizem respeito à participação de militares da ativa no Executivo e sobre a designação de ministro da Defesa. A indicação de militares da ativa para cargos no governo deveria seguir norma pela qual qualquer representante das Forças Armadas e da Polícia Militar que aceitar convite para integrar o Executivo, em qualquer nível, deveria passar automaticamente para a reserva. Por outro lado, a chefia do Ministério da Defesa, normalmente civil, poderia ser ocupada por oficial militar se o indicado estiver na reserva por pelo menos sete anos e, caso não preencha esse requisito, com a expressa autorização do Congresso, como ocorre nos EUA.
Rubens Barbosa, ex-embaixador e presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional
Saudades do Brasil
"Oi zum zum zum zum zum zum zum, tá faltando um." Quando leio sobre o encontro do G7, sobretudo sobre a agenda, lembro-me dessa antiga canção. O Brasil está à deriva nas relações internacionais, mas teria muito a contribuir neste momento da história da humanidade.
Bolsonaro jamais seria convidado para um encontro desse tipo, pois, em qualquer parte do mundo, atrairia grandes manifestações de protesto.
Um dos pontos da agenda foi a crise ambiental. O Brasil teria muito a dizer sobre isso, embora as decisões tenham se concentrado na produção carvoeira, que está com os dias contados.
O Brasil teria muito a falar sobre a importância do comércio de carbono, uma vez que suas florestas mantêm toneladas de CO2 sepultadas sob as árvores. Estamos tanto à deriva que nem nos damos conta disso. Nem sequer nos damos conta de que a crise hídrica que se aproxima, com reflexos no consumo de energia, resulta parcialmente das queimadas e do desmatamento na Amazônia.
Se depender do primeiro tópico da agenda, Bolsonaro seria justamente vaiado, e o Brasil perdeu seu discurso, não consegue nem estabelecer mais conexões entre os elos de sua crise ambiental.
O segundo ponto é a importância das vacinas no combate à pandemia. Há uma tendência a acreditar que, enquanto todos não forem salvos, ninguém estará a salvo. Daí a necessidade de vacinar o mundo inteiro, o mais rapidamente possível.
Se não tivéssemos um presidente obtuso, também nesse campo o Brasil desempenharia um papel importante. Em primeiro lugar, já teríamos nossa população vacinada, pois construímos um bom sistema de imunização.
Além disso, poderíamos ser um centro regional de produção de vacinas, atendendo não apenas aos vizinhos da América do Sul, como também aos africanos que, como nós, falam o português.
O G7 discutiu também a taxação de grandes empresas, como Amazon e Google. Na verdade, é uma espécie de reforma tributária da era digital, que poderá canalizar bilhões não só para o combate à pandemia, mas também para, no nosso caso, o combate à pobreza.
Nesse ponto, estamos ainda mais perdidos. Paulo Guedes fala em taxação, mas visa aos usuários, e não às grandes plataformas digitais. E Bolsonaro não tem condições morais de enquadrar gigantes como Google, Facebook etc., porque, na verdade, é um transgressor sempre ameaçado de ser enquadrado por elas, por disseminar fake news e manter um gabinete do ódio.
Quando reflito sobre a reunião do G7 e o Brasil, constato este vazio singular: estamos e não estamos no mundo. Todos os problemas importantes nos dizem respeito também, mas em todos nos ausentamos oficialmente, porque o governo vive noutra galáxia.
Bolsonaro é um adepto da retropia. Seu sonho é nos fazer voltar ao tempo da ditadura militar, com a derrubada das matas em nome da chegada da civilização.
Algumas pessoas se conformam com essa marginalização do Brasil: afinal, o país é irrelevante, dizem. É um equívoco. A irrelevância é uma escolha.
A tragédia sanitária e a destruição ambiental são a marca internacional do Brasil no momento. Em muitos países, nem com quarentena podemos entrar.
Nem sempre foi assim. E nem sempre será. Para mim, ler sobre a reunião do G7 trouxe saudades do potencial do Brasil. Um potencial que não desapareceu. Está apenas momentaneamente sepultado por um governo de extrema-direita, uma concepção de mundo que nos isola e faz com que amigos do Brasil se compadeçam de nós.
Nada mais desconfortável. Um país dessa grandeza não pode se deixar sepultar pelo atraso, não tem o direito de se tornar apenas aquele que poderia ter sido.
No mundo de hoje, está faltando um. Acontece às vezes uma espécie de apagão nacional. Mas sempre num prazo mais curto. O perigo não é apenas o mundo se esquecer de nós, mas nós mesmos nos esquecermos do que fomos e podemos ser.
Bolsonaro jamais seria convidado para um encontro desse tipo, pois, em qualquer parte do mundo, atrairia grandes manifestações de protesto.
Um dos pontos da agenda foi a crise ambiental. O Brasil teria muito a dizer sobre isso, embora as decisões tenham se concentrado na produção carvoeira, que está com os dias contados.
O Brasil teria muito a falar sobre a importância do comércio de carbono, uma vez que suas florestas mantêm toneladas de CO2 sepultadas sob as árvores. Estamos tanto à deriva que nem nos damos conta disso. Nem sequer nos damos conta de que a crise hídrica que se aproxima, com reflexos no consumo de energia, resulta parcialmente das queimadas e do desmatamento na Amazônia.
Se depender do primeiro tópico da agenda, Bolsonaro seria justamente vaiado, e o Brasil perdeu seu discurso, não consegue nem estabelecer mais conexões entre os elos de sua crise ambiental.
O segundo ponto é a importância das vacinas no combate à pandemia. Há uma tendência a acreditar que, enquanto todos não forem salvos, ninguém estará a salvo. Daí a necessidade de vacinar o mundo inteiro, o mais rapidamente possível.
Se não tivéssemos um presidente obtuso, também nesse campo o Brasil desempenharia um papel importante. Em primeiro lugar, já teríamos nossa população vacinada, pois construímos um bom sistema de imunização.
Além disso, poderíamos ser um centro regional de produção de vacinas, atendendo não apenas aos vizinhos da América do Sul, como também aos africanos que, como nós, falam o português.
O G7 discutiu também a taxação de grandes empresas, como Amazon e Google. Na verdade, é uma espécie de reforma tributária da era digital, que poderá canalizar bilhões não só para o combate à pandemia, mas também para, no nosso caso, o combate à pobreza.
Nesse ponto, estamos ainda mais perdidos. Paulo Guedes fala em taxação, mas visa aos usuários, e não às grandes plataformas digitais. E Bolsonaro não tem condições morais de enquadrar gigantes como Google, Facebook etc., porque, na verdade, é um transgressor sempre ameaçado de ser enquadrado por elas, por disseminar fake news e manter um gabinete do ódio.
Quando reflito sobre a reunião do G7 e o Brasil, constato este vazio singular: estamos e não estamos no mundo. Todos os problemas importantes nos dizem respeito também, mas em todos nos ausentamos oficialmente, porque o governo vive noutra galáxia.
Bolsonaro é um adepto da retropia. Seu sonho é nos fazer voltar ao tempo da ditadura militar, com a derrubada das matas em nome da chegada da civilização.
Algumas pessoas se conformam com essa marginalização do Brasil: afinal, o país é irrelevante, dizem. É um equívoco. A irrelevância é uma escolha.
A tragédia sanitária e a destruição ambiental são a marca internacional do Brasil no momento. Em muitos países, nem com quarentena podemos entrar.
Nem sempre foi assim. E nem sempre será. Para mim, ler sobre a reunião do G7 trouxe saudades do potencial do Brasil. Um potencial que não desapareceu. Está apenas momentaneamente sepultado por um governo de extrema-direita, uma concepção de mundo que nos isola e faz com que amigos do Brasil se compadeçam de nós.
Nada mais desconfortável. Um país dessa grandeza não pode se deixar sepultar pelo atraso, não tem o direito de se tornar apenas aquele que poderia ter sido.
500
O evitável se tornou inegável. O Brasil passou da marca de 500 mil mortos por Covid-19. Isto é meio milhão de pessoas. O número repercutiu desde o fim de semana. Porém me pergunto se há um entendimento real de seu significado. Números de dados possuem uma característica impessoal. Entendemos sua mensagem, embora o impacto emocional não venha atrelado. O que são 500? Nem no filme dos 300 vimos tantos personagens.
Pode-se acrescentar uma comparação para ajudar a se ter uma noção do que este número atrela. A quantidade de habitantes em uma cidade. Araraquara, no interior paulista, que acabou de sair de seu segundo lockdown, tem população estimada em 238.339. Em breve, teremos o equivalente a duas Araraquaras debaixo da terra. Por outro lado, nem todos conhecem Araraquara. De novo, a falta de uma conexão emocional ameaça emergir devido à distância de uma parcela brasileira. Que tal um lugar com mais presença no imaginário popular, como Copacabana? Em 2013, moravam na Princesinha do Mar cerca de 150 mil pessoas. Desconsiderando as variações menores que ocorrem na demografia em menos de uma década, a pandemia matou mais que três Copacabanas lotadas. Ou um sexto do público recorde contabilizado no bairro na virada de ano para 2020. Novamente, talvez haja uma dificuldade em reconfigurar o número de mortos. Embora conhecida pelo país, Copacabana tem um aspecto tão folclórico que a afasta de um sentimento comum. Copacabana poderia ser em Marte (e, às vezes, parece mesmo). Estádios de futebol, então? Peguemos dois, um no Rio de Janeiro, outro em São Paulo: Maracanã e Morumbi. Morreram o equivalente a quase sete Maracanãs e quase nove Morumbis em capacidade máxima. Futebol é o esporte do povo, e esta é a quantidade dele que faleceu devido a uma doença que já existe vacina. Entretanto, existem aqueles que não assistem a jogos…
Última tentativa: sabe aquela postagem em rede social, que se tornou diária, sobre alguém que morreu de Covid-19? Imagine receber 500.000 notificações de falecimento de uma vez.
Daniel Russell Ribas
Pode-se acrescentar uma comparação para ajudar a se ter uma noção do que este número atrela. A quantidade de habitantes em uma cidade. Araraquara, no interior paulista, que acabou de sair de seu segundo lockdown, tem população estimada em 238.339. Em breve, teremos o equivalente a duas Araraquaras debaixo da terra. Por outro lado, nem todos conhecem Araraquara. De novo, a falta de uma conexão emocional ameaça emergir devido à distância de uma parcela brasileira. Que tal um lugar com mais presença no imaginário popular, como Copacabana? Em 2013, moravam na Princesinha do Mar cerca de 150 mil pessoas. Desconsiderando as variações menores que ocorrem na demografia em menos de uma década, a pandemia matou mais que três Copacabanas lotadas. Ou um sexto do público recorde contabilizado no bairro na virada de ano para 2020. Novamente, talvez haja uma dificuldade em reconfigurar o número de mortos. Embora conhecida pelo país, Copacabana tem um aspecto tão folclórico que a afasta de um sentimento comum. Copacabana poderia ser em Marte (e, às vezes, parece mesmo). Estádios de futebol, então? Peguemos dois, um no Rio de Janeiro, outro em São Paulo: Maracanã e Morumbi. Morreram o equivalente a quase sete Maracanãs e quase nove Morumbis em capacidade máxima. Futebol é o esporte do povo, e esta é a quantidade dele que faleceu devido a uma doença que já existe vacina. Entretanto, existem aqueles que não assistem a jogos…
Última tentativa: sabe aquela postagem em rede social, que se tornou diária, sobre alguém que morreu de Covid-19? Imagine receber 500.000 notificações de falecimento de uma vez.
Daniel Russell Ribas
Cadeia para os inocentes
Alguém deve ter difamado Joseph K., pois que numa linda manhã foi preso sem ter cometido qualquer crimeFranz Kafka, "O processo"
Reformas para o projeto autoritário
Hoje, o presidente pode nomear seis mil pessoas que não fazem parte do setor público para os cargos em comissão. Com a reforma administrativa, poderá nomear 90 mil. Pessoas estranhas ao serviço público poderão exercer funções estratégicas. O governo poderá pagar o salário de funcionários de empresa privada. Tudo isso para economizar recursos? Não. No próprio texto da exposição de motivos está dito que não haverá impacto fiscal, orçamentário ou financeiro. A reforma administrativa é mais uma das propostas do governo Bolsonaro que serve a seu projeto de poder que, todos sabemos, é autoritário.
O mercado financeiro espera “as reformas” como um fetiche, afirmando que com elas o país retomará o crescimento e vai estabilizar a dívida pública. Balela. A MP da venda da Eletrobras virou um monstrengo, que custará caro ao consumidor por vários anos, mas tanto para o ministro da Economia, Paulo Guedes, quanto para o mercado financeiro, isso não importa. O ministro quer reduzir um pouco o fiasco que é o seu programa de privatização, e o mercado quer ganhar dinheiro com a operação.
Rudinei Marques, presidente do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado, explica a mágica da multiplicação dos cargos que poderão ser ocupados por decisão única do governante de ocasião:
— A PEC permite um aparelhamento sem precedentes do Estado. Através do que eles chamam de “vínculos de liderança”. Hoje a Constituição diz que na administração pública há funções de confiança específica de servidores de carreira e cargos em comissão que podem ser ocupados por pessoas sem vínculos com a administração pública dentro de limites fixados pela lei. Hoje, a União tem 90 mil desses cargos, 70 mil são funções de confiança exercidas exclusivamente por servidores de carreira e os outros 20 mil são cargos em comissão. Desses, seis mil são livre provimento, e 14 mil devem ser ocupados por servidores. Os vínculos de liderança eliminam qualquer restrição a que todos esses cargos sejam de livre indicação política. Então estamos falando de um exército de 90 mil cabos eleitorais.
Esses números são só da União, mas a mesma regra valerá para o Legislativo, o Ministério Público, o Judiciário. E pode, em cascata, ir para estados e municípios. A reforma é em todos os poderes.
Quando o Coaf foi punido, lembra Rudinei, por ter feito o seu trabalho de revelar as “rachadinhas”, foi preciso a atuação dos funcionários para evitar que os cargos na instituição fossem preenchidos por pessoas que não eram servidores de carreira.
Pedro Pontual, que representa a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, diz que a PEC permite que sejam transferidos recursos públicos para empresas privadas com fins lucrativos:
— Ela cria um instrumento de cooperação que autoriza pagar os recursos humanos das empresas privadas e também o uso de espaços físicos, fora da figura do aluguel. A PEC não coloca nenhum tipo de restrição a pagar salário a quem já estava na empresa. Isso pode servir para mascarar o gasto de pessoal.
Rodrigo Spada, presidente da Federação Brasileira de Associações Fiscais de Tributos Estaduais, alerta que a reforma não propõe algo realmente novo que poderia produzir um salto de eficiência no Estado:
— Essa PEC nada entrega de governo digital, capacitação, qualificação do servidor público, criação de escolas de governo, desburocratização.
Luciana Dytz, presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais, diz que há mudanças necessárias, mas não estão sendo propostas:
— A gente vem sofrendo com falta de estrutura, mas isso é questão fora da reforma administrativa.
Há vários outros pontos controversos, explicam servidores, ou pontos que parecem avanços e embutem armadilhas. A exposição de motivos, que acompanha a PEC, diz que o “Estado custa muito e entrega pouco”.
— O governo se esmerou em mostrar o custo — do qual divergimos — mas não houve qualquer esforço para mostrar que entrega pouco. Temos noção de que o serviço público pode ser melhorado, mas dizer que “entrega pouco” é suficiente apenas na mesa de bar — diz Pontual.
Este governo atacou órgãos, desmontou a máquina, nomeou inimigos da missão de cada setor. Imagine o que faria sem as amarras da Constituição.
O mercado financeiro espera “as reformas” como um fetiche, afirmando que com elas o país retomará o crescimento e vai estabilizar a dívida pública. Balela. A MP da venda da Eletrobras virou um monstrengo, que custará caro ao consumidor por vários anos, mas tanto para o ministro da Economia, Paulo Guedes, quanto para o mercado financeiro, isso não importa. O ministro quer reduzir um pouco o fiasco que é o seu programa de privatização, e o mercado quer ganhar dinheiro com a operação.
Rudinei Marques, presidente do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado, explica a mágica da multiplicação dos cargos que poderão ser ocupados por decisão única do governante de ocasião:
— A PEC permite um aparelhamento sem precedentes do Estado. Através do que eles chamam de “vínculos de liderança”. Hoje a Constituição diz que na administração pública há funções de confiança específica de servidores de carreira e cargos em comissão que podem ser ocupados por pessoas sem vínculos com a administração pública dentro de limites fixados pela lei. Hoje, a União tem 90 mil desses cargos, 70 mil são funções de confiança exercidas exclusivamente por servidores de carreira e os outros 20 mil são cargos em comissão. Desses, seis mil são livre provimento, e 14 mil devem ser ocupados por servidores. Os vínculos de liderança eliminam qualquer restrição a que todos esses cargos sejam de livre indicação política. Então estamos falando de um exército de 90 mil cabos eleitorais.
Esses números são só da União, mas a mesma regra valerá para o Legislativo, o Ministério Público, o Judiciário. E pode, em cascata, ir para estados e municípios. A reforma é em todos os poderes.
Quando o Coaf foi punido, lembra Rudinei, por ter feito o seu trabalho de revelar as “rachadinhas”, foi preciso a atuação dos funcionários para evitar que os cargos na instituição fossem preenchidos por pessoas que não eram servidores de carreira.
Pedro Pontual, que representa a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, diz que a PEC permite que sejam transferidos recursos públicos para empresas privadas com fins lucrativos:
— Ela cria um instrumento de cooperação que autoriza pagar os recursos humanos das empresas privadas e também o uso de espaços físicos, fora da figura do aluguel. A PEC não coloca nenhum tipo de restrição a pagar salário a quem já estava na empresa. Isso pode servir para mascarar o gasto de pessoal.
Rodrigo Spada, presidente da Federação Brasileira de Associações Fiscais de Tributos Estaduais, alerta que a reforma não propõe algo realmente novo que poderia produzir um salto de eficiência no Estado:
— Essa PEC nada entrega de governo digital, capacitação, qualificação do servidor público, criação de escolas de governo, desburocratização.
Luciana Dytz, presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais, diz que há mudanças necessárias, mas não estão sendo propostas:
— A gente vem sofrendo com falta de estrutura, mas isso é questão fora da reforma administrativa.
Há vários outros pontos controversos, explicam servidores, ou pontos que parecem avanços e embutem armadilhas. A exposição de motivos, que acompanha a PEC, diz que o “Estado custa muito e entrega pouco”.
— O governo se esmerou em mostrar o custo — do qual divergimos — mas não houve qualquer esforço para mostrar que entrega pouco. Temos noção de que o serviço público pode ser melhorado, mas dizer que “entrega pouco” é suficiente apenas na mesa de bar — diz Pontual.
Este governo atacou órgãos, desmontou a máquina, nomeou inimigos da missão de cada setor. Imagine o que faria sem as amarras da Constituição.
Reforma da Lei de Improbidade gera riscos de retrocessos
O projeto de lei 10.887, de 2018, que altera a Lei de Improbidade (8.429/1992), contém avanços oriundos de conquistas doutrinárias e jurisprudenciais, mas é sobre seus retrocessos que pretendo tratar. Qualquer projeto de lei deveria contemplar apenas avanços, jamais retrocessos, pois retrata uma visão prospectiva e é fruto de experiências históricas e diagnósticos importantes.
O primeiro ponto digno de nota é que o projeto suprimiu a improbidade culposa. A Lei de Improbidade contemplava o ilícito culposo, na modalidade de lesão ao erário, com culpa grave ou erro grosseiro (conforme a jurisprudência do STJ).
Sabe-se que o combate à grave ineficiência endêmica é tão importante quanto o combate à corrupção pública. Uma das facetas da improbidade, como forma de má gestão pública, é precisamente a ineficiência grave.
É verdade que o Ministério Público ajuizou muitas ações de improbidade contra gestores por culpa leve ou até mesmo culpa ordinária, desprezando o erro juridicamente tolerável, e tal comportamento processual talvez tenha estimulado uma retaliação do legislador. Todavia, importante corrigir excessos através dos órgãos de controle e do próprio Judiciário, jamais pela mutilação indevida da lei.
Somente se pode punir o erro grosseiro ou a culpa grave, e nem sempre os fiscalizadores procederam dessa forma à luz da Lei de Improbidade. Não se justifica, contudo, suprimir o ilícito culposo, abrindo caminho à impunidade de graves ineficiências. O ambiente opaco e gravemente ineficiente é fértil à corrupção sistêmica.
Outro retrocesso inaceitável foi a supressão da legitimidade das advocacias públicas para a propositura das ações de improbidade. Com efeito, a titularidade privativa do Ministério Público caracteriza um monopólio intolerável, pois muitas ações qualificadas foram de autoria justamente das advocacias públicas estaduais e federal, as quais têm conhecimento profundo sobre a defesa do erário e atuam com base em hierarquia e visão coletiva sobre a matéria.
Obviamente, seria necessário evitar bis in idem na propositura de ações e regular os efeitos de eventuais acordos de não persecução cível, considerando a natureza material desses acordos.
Finalmente, outro lamentável atraso foi a previsão de sanção de perda da função pública em novo formato. Agora, com a reforma, essa sanção passou a atingir apenas o vínculo da mesma qualidade e natureza que o agente detinha com o poder público na época do cometimento da infração, nas hipóteses de lesão ao erário e violação aos princípios. Entendo que, no máximo, poderia haver uma possibilidade de modulação, jamais uma obrigatoriedade de o magistrado vincular-se a essa limitação.
Um agente público pode causar prejuízos imensos ao erário na condição de prefeito e sofrer a condenação na qualidade de deputado estadual ou vereador. Nessa circunstância, não poderá perder a função pública. Vislumbro perspectiva de impunidade com essa previsão legal, pois é comum que réus em ações de improbidade mudem de funções públicas no curso dos processos.
O primeiro ponto digno de nota é que o projeto suprimiu a improbidade culposa. A Lei de Improbidade contemplava o ilícito culposo, na modalidade de lesão ao erário, com culpa grave ou erro grosseiro (conforme a jurisprudência do STJ).
Sabe-se que o combate à grave ineficiência endêmica é tão importante quanto o combate à corrupção pública. Uma das facetas da improbidade, como forma de má gestão pública, é precisamente a ineficiência grave.
É verdade que o Ministério Público ajuizou muitas ações de improbidade contra gestores por culpa leve ou até mesmo culpa ordinária, desprezando o erro juridicamente tolerável, e tal comportamento processual talvez tenha estimulado uma retaliação do legislador. Todavia, importante corrigir excessos através dos órgãos de controle e do próprio Judiciário, jamais pela mutilação indevida da lei.
Somente se pode punir o erro grosseiro ou a culpa grave, e nem sempre os fiscalizadores procederam dessa forma à luz da Lei de Improbidade. Não se justifica, contudo, suprimir o ilícito culposo, abrindo caminho à impunidade de graves ineficiências. O ambiente opaco e gravemente ineficiente é fértil à corrupção sistêmica.
Outro retrocesso inaceitável foi a supressão da legitimidade das advocacias públicas para a propositura das ações de improbidade. Com efeito, a titularidade privativa do Ministério Público caracteriza um monopólio intolerável, pois muitas ações qualificadas foram de autoria justamente das advocacias públicas estaduais e federal, as quais têm conhecimento profundo sobre a defesa do erário e atuam com base em hierarquia e visão coletiva sobre a matéria.
Obviamente, seria necessário evitar bis in idem na propositura de ações e regular os efeitos de eventuais acordos de não persecução cível, considerando a natureza material desses acordos.
Finalmente, outro lamentável atraso foi a previsão de sanção de perda da função pública em novo formato. Agora, com a reforma, essa sanção passou a atingir apenas o vínculo da mesma qualidade e natureza que o agente detinha com o poder público na época do cometimento da infração, nas hipóteses de lesão ao erário e violação aos princípios. Entendo que, no máximo, poderia haver uma possibilidade de modulação, jamais uma obrigatoriedade de o magistrado vincular-se a essa limitação.
Um agente público pode causar prejuízos imensos ao erário na condição de prefeito e sofrer a condenação na qualidade de deputado estadual ou vereador. Nessa circunstância, não poderá perder a função pública. Vislumbro perspectiva de impunidade com essa previsão legal, pois é comum que réus em ações de improbidade mudem de funções públicas no curso dos processos.
'De que lado da Terra plana vamos pular?'
"Podemos chegar a 500 mil mortos na metade do ano", previu o neurocientista Miguel Nicolelis no início de março. O jornal O Globo chamou a previsão de "catastrófica" na época. Agora aconteceu, e dez dias antes do que Nicolelis havia previsto. Muitos especialistas acreditam que o número real de casos seria ainda muito maior. Mas vamos nos ater aos números que temos. E eles já são ruins o suficiente. Somente nos Estados Unidos morreram mais pessoas do que no Brasil.
O presidente Jair Messias Bolsonaro não confia nos números oficiais, mesmo que eles tenham sido confirmados por seu próprio Ministério da Saúde, que, em seu site, também mostra 500 mil mortes por covid-19. Uma semana atrás, porém, Bolsonaro disse ao público evangélico que os números foram alcançados através de uma supernotificação, o que, segundo ele, seria confirmado por documentos do TCU. Ficou provado que isso é mentira. Mas os apoiadores do presidente não estão incomodados e simplesmente continuam divulgando a suposta fraude nos números nas mídias sociais.
Eu fico com os números oficiais. Segundo eles, cerca de duas mil pessoas ainda estão morrendo todos os dias. E parece que está chegando uma terceira onda. As taxas de mortalidade e novas infecções estão novamente em ascensão. Os cientistas da Fiocruz – também uma entidade estatal – declararam esta semana que a "transmissão comunitária" no Brasil é novamente "extremamente alta". Portanto, por enquanto não há um fim à vista para a pandemia. Isso é ruim para as crianças em idade escolar, que não tiveram educação adequada em um ano. E é ruim para os brasileiros que vão para o trabalho todos os dias e correm o risco de serem infectados.
Enquanto amigos e familiares da Alemanha contam como estão felizes com a diminuição do número de infecções e aguardam animados o início do verão, o inverno brasileiro, por outro lado, promete mais tristeza. Tenho um sentimento familiar de que "no Brasil há muitas necessidades, mas pouca urgência". Pouco se age, apesar de haver tantos problemas urgentes.
Falei com Antônio Carlos Costa, fundador da ONG Rio de Paz, que há anos vem tentando conscientizar as pessoas sobre a urgência de agir. Às vezes eles fixam cruzes de madeira na areia de Copacabana para crianças mortas por balas perdidas, às vezes eles soltam balões para as vítimas do coronavírus. No domingo, eles lembrarão a morte de 500 mil pessoas por coronavírus em Copacabana. Costa reclama das "falhas da nossa cultura, caracterizada pelo improviso e pela falta de espírito público".
Ainda assim, dá para dizer que há luz no fim do túnel, mesmo que pequena? Sim! Na última quinta-feira, 2,2 milhões de doses de vacinas foram administradas no Brasil em 24 horas. Desde o início da pandemia, especialistas sempre me garantiram que o país poderia aplicar entre 2 e 3 milhões de doses por dia. A infraestrutura está em funcionamento há muito tempo, graças ao SUS. Uma vez que vacinas suficientes estivessem disponíveis, diziam, isso aconteceria rapidamente. Aparentemente, isso está finalmente acontecendo.
As perspectivas não são tão ruins assim. Até setembro ou outubro, o mais tardar, todos os adultos poderão ser vacinados. Ou pelo menos aqueles que querem. Tanto Bolsonaro quanto seu filho Eduardo tentaram novamente na última semana abalar a confiança da população em relação às vacinas. "As vacinas da covid não seguiram os protocolos normais e reações adversas têm ocorrido", afirmou o deputado nas mídias sociais. Seu pai fez eco, afirmando que as vacinas "não têm comprovação científica", mas que estão meramente em "estado experimental".
Na Alemanha, também houve escândalos de corrupção em torno da aquisição de máscaras. E os europeus também não têm sido particularmente hábeis na aquisição de vacinas. E, é claro, os políticos de todo o mundo não sabiam o que fazer no início da pandemia. Em todas as partes, houve falhas, erros, tomaram-se caminhos errados. Mas qualquer um que, após quase um ano e meio de pandemia, ainda se agarra a medicamentos comprovadamente ineficazes e questiona a eficácia das vacinas – contra todas as evidências científicas – só pode ser acusado de má intenção.
Ou para usar as palavras da infectologista Luana Araújo: "Ainda estamos aqui discutindo uma coisa que não tem cabimento. É como se estivéssemos discutindo de que borda da terra plana vamos pular."
Thomas Milz
O presidente Jair Messias Bolsonaro não confia nos números oficiais, mesmo que eles tenham sido confirmados por seu próprio Ministério da Saúde, que, em seu site, também mostra 500 mil mortes por covid-19. Uma semana atrás, porém, Bolsonaro disse ao público evangélico que os números foram alcançados através de uma supernotificação, o que, segundo ele, seria confirmado por documentos do TCU. Ficou provado que isso é mentira. Mas os apoiadores do presidente não estão incomodados e simplesmente continuam divulgando a suposta fraude nos números nas mídias sociais.
Eu fico com os números oficiais. Segundo eles, cerca de duas mil pessoas ainda estão morrendo todos os dias. E parece que está chegando uma terceira onda. As taxas de mortalidade e novas infecções estão novamente em ascensão. Os cientistas da Fiocruz – também uma entidade estatal – declararam esta semana que a "transmissão comunitária" no Brasil é novamente "extremamente alta". Portanto, por enquanto não há um fim à vista para a pandemia. Isso é ruim para as crianças em idade escolar, que não tiveram educação adequada em um ano. E é ruim para os brasileiros que vão para o trabalho todos os dias e correm o risco de serem infectados.
Enquanto amigos e familiares da Alemanha contam como estão felizes com a diminuição do número de infecções e aguardam animados o início do verão, o inverno brasileiro, por outro lado, promete mais tristeza. Tenho um sentimento familiar de que "no Brasil há muitas necessidades, mas pouca urgência". Pouco se age, apesar de haver tantos problemas urgentes.
Falei com Antônio Carlos Costa, fundador da ONG Rio de Paz, que há anos vem tentando conscientizar as pessoas sobre a urgência de agir. Às vezes eles fixam cruzes de madeira na areia de Copacabana para crianças mortas por balas perdidas, às vezes eles soltam balões para as vítimas do coronavírus. No domingo, eles lembrarão a morte de 500 mil pessoas por coronavírus em Copacabana. Costa reclama das "falhas da nossa cultura, caracterizada pelo improviso e pela falta de espírito público".
Ainda assim, dá para dizer que há luz no fim do túnel, mesmo que pequena? Sim! Na última quinta-feira, 2,2 milhões de doses de vacinas foram administradas no Brasil em 24 horas. Desde o início da pandemia, especialistas sempre me garantiram que o país poderia aplicar entre 2 e 3 milhões de doses por dia. A infraestrutura está em funcionamento há muito tempo, graças ao SUS. Uma vez que vacinas suficientes estivessem disponíveis, diziam, isso aconteceria rapidamente. Aparentemente, isso está finalmente acontecendo.
As perspectivas não são tão ruins assim. Até setembro ou outubro, o mais tardar, todos os adultos poderão ser vacinados. Ou pelo menos aqueles que querem. Tanto Bolsonaro quanto seu filho Eduardo tentaram novamente na última semana abalar a confiança da população em relação às vacinas. "As vacinas da covid não seguiram os protocolos normais e reações adversas têm ocorrido", afirmou o deputado nas mídias sociais. Seu pai fez eco, afirmando que as vacinas "não têm comprovação científica", mas que estão meramente em "estado experimental".
Na Alemanha, também houve escândalos de corrupção em torno da aquisição de máscaras. E os europeus também não têm sido particularmente hábeis na aquisição de vacinas. E, é claro, os políticos de todo o mundo não sabiam o que fazer no início da pandemia. Em todas as partes, houve falhas, erros, tomaram-se caminhos errados. Mas qualquer um que, após quase um ano e meio de pandemia, ainda se agarra a medicamentos comprovadamente ineficazes e questiona a eficácia das vacinas – contra todas as evidências científicas – só pode ser acusado de má intenção.
Ou para usar as palavras da infectologista Luana Araújo: "Ainda estamos aqui discutindo uma coisa que não tem cabimento. É como se estivéssemos discutindo de que borda da terra plana vamos pular."
Thomas Milz
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