quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Charge O Tempo 25/10/2016

Montesquieu comanda o cangaço

Na sexta-feira 21 de outubro, cumprindo ordens do juiz Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara Criminal Federal de Brasília, a pedido do Ministério Público Federal (MPF), agentes da Polícia Federal (PF) prenderam o diretor da Polícia Legislativa (PL), Pedro Ricardo de Araújo Carvalho, vulgo Pedrão, e mais três subordinados dele. A ação deu início à Operação Métis, palavra grega que significa habilidades e deu nome à deusa da prudência, saúde, proteção, astúcia e virtudes, chamada pelos romanos de Minerva. O objetivo é buscar e apreender provas de um crime grave do qual eles passaram a ser acusados. Segundo o ex-agente da mesma instituição Paulo Igor Bosco da Silva, o órgão estaria sendo usado para fazer varredura de escutas telefônicas autorizadas pela Justiça em dependências particulares de nobres varões e damas da República.

A acusação é pesada e tornou-se ainda mais grave depois que o colaborador da Justiça acima citado denunciou, em entrevista exclusiva ao Estadão da segunda-feira 24, uma varredura de grampos em telefones do ex-presidente da República e do Senado José Sarney (PMDB-AP) em Brasília. Para piorar, segundo ele garantiu ao repórter Erich Decat, a missão, realizada em julho de 2015, partiu de uma ordem oculta, “não numerada”. Se isso for verdade, ela revela a reprise do escárnio dos 300 atos administrativos sigilosos que favoreciam os próprios parlamentares e vários de seus parentes, contrariando o preceito constitucional de publicidade das resoluções do Congresso. Entre estes, a exoneração de um neto do então presidente da Casa, o mesmo José Sarney, tornada secreta para a sociedade não tomar conhecimento do descumprimento de regras contra o nepotismo postas em vigor no ano anterior pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Da tribuna o venerado chefe político garantiu que não sabia “o que é ato secreto”. Mas dois meses depois foi obrigado a admitir que sabia, sim, ao reagir à confirmação da informação, publicada no Estadão (que valeu um Prêmio Esso), pelo ex-diretor da Casa Ralph Siqueira.

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Ao novo escândalo o sucessor do maranhense na presidência da Mesa da Casa, à qual cabe dirigir os atos da dita PL, Renan Calheiros (PMDB-AL), reagiu com ferocidade. A pretexto de defender a autonomia do Poder Legislativo, “ultrajado” pelos outros dois – o Executivo, ao qual é subordinada a PF, e o Judiciário, a que pertence o juiz federal, sem contar ainda o procurador-geral da República, Rodrigo Janot –, Calheiros soltou os cachorros em nota oficial. “A Polícia Legislativa exerce atividades dentro do que preceitua a Constituição, as normas legais e o regulamento do Senado”, disparou. Mas omitiu quais dispositivos dão aos agentes, tratados como capangas, autorização para atuar na prática como operadores de “contrainteligência”, usando o palavrão mais adequado para definir a lambança à qual respondem agora os ditos cujos perante a lei.

Pouco se sabe da Polícia Legislativa e serão bem-vindas as informações que a PF, o MPF e a Justiça Federal vierem a obter na investigação da Operação Métis. O que já se sabe, aliás, não aparenta corroborar a função de guarda pretoriana das prerrogativas de suas nobres excelências legisladoras. Por exemplo, uma tentativa de impedir uma ação de busca e apreensão empreendida pela PF na Casa da Dinda, residência do ex-presidente deposto e atual senador Fernando Collor de Mello, que a usou como quartel-general no período em que ficou afastado da Presidência até o Congresso aprovar seu impeachment. Nela um confronto entre PF e PL quase acabou em desforço físico ou coisa pior.

Criada em 1950 como secretaria, esta incorporou departamentos que vão além da função original de proteger o patrimônio da Casa, ganhando atribuições extraordinárias principalmente sob o comando de Sarney e Renan, ambos do PMDB. O salário inicial de um agente é de R$ 16 mil, mais do que o dobro de um policial federal (R$ 7 mil), quatro vezes o de um PM (R$ 4 mil) ou o triplo de um membro da Polícia Civil estadual (variável por Estado, mas no máximo R$ 6 mil). Para prover a proteção pessoal do presidente do Senado ela adquiriu recentemente 31 equipamentos de “contrainteligência”. Entre eles, duas maletas Oscor Green, que custam mais de R$ 100 mil cada, e mais dois aparelhos de reconhecimento de espionagem telefônica, a R$ 60 mil a unidade. Conforme um especialista, tais utensílios servem para grampear, não para fazer varredura, que é muito mais simples. Segundo o depoimento desse usuário de aparelhos do gênero (a serviço da lei), a chamada espionagem ambiental pode ser feita com eficácia por aparelhos minúsculos colocados no ambiente, em canetas, chaveiros ou numa caixa de fósforos. Estes custam cerca de R$ 600 cada, podem ser encontrados em lojas de equipamentos eletrônicos e vendidos sem necessidade de registro. As maletas, usadas por detetives particulares ou em espionagem industrial, são aptas a grampear telefones celulares ou mensagens, além de gerenciar escutas ambientais.

As observações acima servem apenas para mostrar que medidas como tetos de gastos não impedem que o dinheiro público seja usado com prodigalidade incomum quando se trata de blindar a imagem pública e o sigilo telefônico de senadores, acima ou abaixo de qualquer suspeita. Por mais que se queira configurar como arbitrárias a busca e a apreensão feitas por autorização de um juiz de primeira instância em escritórios de parlamentares, a Operação Métis flagrou, no mínimo, o uso abusivo da obra de Montesquieu. O teórico da independência dos poderes republicanos como forma de exercer freios e balanços foi usado como pretexto para justificar a ação do cangaço, exercida por arapongas (ou capangas) de Sarney, Renan e Lobão e da patota deles na Câmara dita Alta.

Este episódio já permitiu que se revelasse o cinismo supremo que paira sobre o Legislativo: a nota oficial exarada por Gleisi Hoffmann para reconhecer um pedido de arapongagem explícita, dirigido ao presidente da Mesa da Casa e assinado pela própria papisa da prerrogativa de foro. “Logo após a operação de busca e apreensão realizada em minha casa (sic) em Brasília e em Curitiba, com a prisão de meu marido, Paulo Bernardo, solicitei ao Senado que a Polícia Legislativa, dentro de suas atribuições legais, fizesse uma verificação e uma varredura eletrônica nas residências. Fiz o pedido formalmente. Tem (sic) processo no Senado com autorização formal pra isso”, ela escreveu em vernáculo deplorável. Inócuo dizer que, tal como a autoridade que mandou fazer, em sigilo, a varredura pedida, ela não se deu ao trabalho de relacionar os dispositivos constitucionais, legais e regimentais que a autorizam a usar dinheiro público cobrado em impostos de pobres cidadãos, mais empobrecidos pela ação solerte e predadora dos políticos profissionais que se protegem da lei usando o erário, que eles mesmos têm ajudado a dilapidar em proveito próprio. A tentativa de documentar o delito assemelha-se à de um arrombador que reclamasse de sua inocência apresentando à autoridade a nota fiscal do pé de cabra usado no arrombamento. Ou à de um pistoleiro que exigisse ser inocentado por ter autorização para portar arma.

E Michel Temer, que nem para apoiar as justas posições a respeito do imbróglio assumidas por seu ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, e pelo diretor da PF, Leandro Daiello, deu, como seria dever de ofício, o ar da graça de uma fala sua direto do trono? Faz como quadro de Cristo em prostíbulo: a tudo assiste e nada fala.

José Nêumanne

A Lava-Jato não impede as reformas

Vamos imaginar a seguinte situação: o Congresso aprova integralmente esse combo de projetos que anistia a prática do caixa dois em todas as eleições passadas; estabelece regras de abuso de autoridade para juízes, promotores e policiais; e introduz uma reforma política que beneficia os grandes partidos.

O que acontece?

Primeiro, a Lava-Jato já era. Considerem, por exemplo, as delações da Odebrecht, talvez a maior doadora de campanha, mais generosa com os maiores partidos, ou seja, aqueles com maior chance de governar. Há duas questões aí: uma, a origem do dinheiro doado, se legal (lucros normais) ou ilegal, fruto dos cartéis e preços superfaturados; e, duas, como o partido recolheu esse dinheiro, se por meio de doação registrada nos tribunais eleitorais ou como caixa dois ou, afinal, ninguém é de ferro, como recursos embolsados na física.

Ora, se o caixa dois ficar legalizado, boa parte dos problemas dos políticos estará resolvida: os advogados terão que simplesmente concentrar a maior parte do dinheiro em doações legalizadas no tribunal eleitoral ou no caixa dois. Vai sobrar pouco para as propinas. Reparem ainda: mesmo que se prove que uma empreiteira doou dinheiro roubado de estatais, o político beneficiado pode dizer que não sabia dessa origem maligna. E por que então deixou essa grana no caixa dois? Porque era mais fácil gastar o dinheiro assim. Sabe como é a confusão das campanhas eleitorais.

Posso imaginar o advogado exibindo um sorriso de condescendência diante do juiz: além de tudo, meritíssimo, como o senhor deve saber, caixa dois não era crime na ocasião e, mesmo que fosse, estaria anistiado; e meu cliente não tinha como saber que os recursos de uma empresa tão prestigiada na época poderiam ser ilegais.

De quebra, o advogado poderia insinuar uma ação por abuso de autoridade contra as autoridades que insistissem em seguir com o processo.


Já devem ter percebido que a manobra toda livra a cara dos políticos, mas não das empresas, de seus executivos e dos funcionários de estatais que participaram da roubalheira.

Pode-se cair na seguinte situação: a Odebrecht confessa — em delação para reduzir penas e prejuízos — que participou e organizou cartéis; cobrou preços superfaturados; distribuiu esse dinheiro por fora de sua contabilidade oficial; circulou esses recursos ilegais em contas não declaradas no Brasil e no exterior; não declarou renda às Receitas e autoridades monetárias de vários países, incluindo Estados Unidos, onde estão pegando pesado contra essas empresas e bancos que as ajudam.

Considerando que funcionários de estatais sabiam disso tudo e pegaram parte do dinheiro na física, também estarão condenados.

Só sobra uma boa linha de defesa para os políticos. Deputados, senadores, governadores, prefeitos, ministros, presidente, no mandato ou fora dele, poderão alegar que não sabiam das tramoias e que, de novo, caixa dois era limpo.

Para colocar algum político em cana, policiais e promotores precisarão demonstrar que ele, político, pessoalmente, organizou o cartel, a concorrência, o pagamento da propina e que levou vantagem direta, dinheiro no bolso ou um apartamento, uma fazenda etc.

Isso ainda teria de ser provado no detalhe, com provas materiais definitivas, tipo um documento assinado pelo ministro mandando fazer algo ilegal, e não apenas com a doação premiada de empresários e funcionários. O político poderá dizer: “Meritíssimo, também estou impressionado com essa roubalheira; como as autoridades não nos advertiram disso?”

Tudo considerado, poderíamos chegar ao seguinte resultado: sim, houve roubalheira, mas em nome da governabilidade e do andamento das reformas, foi preciso resgatar o funcionamento do sistema político.

Há sinais de que estão armando algo assim. Se acontecer, é certo que livra muita gente do governo Temer, inclusive, talvez, o próprio presidente. Mas não decorre daí que se recupera a governabilidade. Como um governo e líderes assim resgatados poderão tocar um complexo programa de reformas? Com que moral?

Dirão, mas a alternativa, a continuidade da Lava-Jato e suas congêneres, pode derrubar boa parte do governo Temer e de sua base parlamentar, o que, obviamente, acabaria com a votação das reformas.

Sim, o processo seria paralisado. E o país, a sociedade, teria de encontrar outras lideranças para tocar o necessário programa de reformas. Se não aparecerem, teremos mais uma década ou mais perdidas.

Mas será possível que não tem mais ninguém?

De todo modo, parar a Lava-Jato é a pior saída. Apenas se estaria adiando o acerto de contas com o amplo sistema de corrupções e privilégios — esse, sim, o sistema que bloqueia o avanço do país.

Carlos Alberto Sardenberg

Mitos

Bicho-papao:
Amália Leopoldina Araponga da Matta, baiana, filha de Jesuína e de Raul Augusto da Matta, era irmã de meu pai. Jamais se casou, mas via fantasmas e contava histórias.

Ficou pra “titia”, e era assim que meus quatro irmãos e minha irmã a chamávamos. Papai se casou com a filha de uma viúva consorciada com um viúvo que era seu pai. Logo, meu pai e minha mãe foram “irmãos de criação” e, depois, marido e mulher. Papai e tia Amália, sua irmã, eram filhos do viúvo Raul. Mamãe era filha de Emerentina e Carlos de Azevedo Perdigão, assassinado num bar de Manaus, em setembro de 1908. Tinha dois filhos e estava grávida de Lulita, nossa mãe.

De um modo abusivamente freudiano-mitológico, os filhos nascidos da união dos viúvos, Raul e Emerentina, foram ao mesmo tempo cunhados e irmãos. Pelos cálculos feitos por minha irmã, Ana Maria, que tem a memória da família guardada amorosamente na sua cabeça, Renato (nosso pai) tinha 11 e Lulita 7 anos quando os viúvos se casaram. Eles reuniram em suas pessoas a experiência da filiação, mas a aliança amorosa englobou, até onde pôde, a irmandade, contrariando a regra de se casar fora da família e da casa, se bem li o meu Claude Gustave Lévi-Strauss

Quando, numa Manaus mítica que conheci pelo piano de mamãe, meus pais se casavam na Igreja de São Sebastião, em 1935, um desses irmãos-cunhados declarou para um convidado: “Eis que minha irmã está se casando com meu irmão!”. O conviva sofreu um mal súbito, já que estava diante da proibição que teria dado origem à vida social, a saber: a oposição entre o casar dentro ou fora da família. A determinação de separar a filiação (ancorada na hierarquia de geração) da aliança ou afinidade, a qual remete à horizontalidade da troca, à sexualidade, à reprodução e ao conflito. De fato, nossos tios nascidos do casamento dos viúvos eram irmãos por parte de Emerentina ou Raul e cunhados, por parte desses mesmos genitores, que eram igualdade madrasta e padrasto.

Imagino a confusão emocional. Alegria ao lado da inveja quando esses irmãos-cunhados testemunhavam o consórcio dos seus irmãos de criação. Um amor nascido dentro da casa que o excluía.

Lembro, tentando escrever uma crônica mas fazendo um ensaio sobre parentesco, que a palavra enteado significa “nascido antes”. Ela exprime uma dupla filiação e uma dupla aliança. Tal como ocorre no incesto há aqui, como diz Lévi-Strauss, um “abuso” ou “excesso” de relacionamentos quando, pelas regras costumeiras, ser filho e irmão ocorre antes do casamento. Um papel não se intrometeria com o outro. Sabe-se que, em inglês, o rebento que veio com, e não do casamento, é um stepchild. Conforme remarcou Louis Dumont, no mundo anglo a categoria “parentesco” (kinship) tudo engloba, de modo que os afins são a ela incorporados como in-laws ou steps.

Na nossa família, repetiam o mito de que jamais ocorrera o favorecimento de um filho contra um enteado. Mas a preferência pelas histórias tipo Branca de Neve de titia mostravam o seu viés antimadrasta e o enorme complexo da mãe postiça que, penso, até hoje, permeia a casa brasileira. Restaria acrescentar que meus pais não conheceram os efeitos benéficos da afinidade, revelados nos modos diferenciados de lidar com o dia a dia e com o sofrimento.
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Tudo isso para dizer que titia compensava a sua rivalidade com Lulita, nossa mãe, filha da viúva, enteada do viúvo e esplêndida pianista, “contando histórias” e tendo o dom das premonições e ver fantasmas. Era magra, calada e foi marginalizada pelos meus tios. Seu irmão, meu pai, porém, levou-a consigo no seu casamento e assim consorciou-se com sua “irmã de criação”, mas conviveu com a irmã que foi nossa ama.

Nos dias de chuva Fernando, Romero, Ricardo, Renato e eu, sentados no chão frio da varanda, ao pé de tia Amália, ouvíamos histórias ocorridas “no começo do mundo” ou “no tempo em que os animais falavam”.

Dela soube que o diabo comprava almas dando em troca moedas de ouro como propina. Também descobri com suas gentilizas o demônio que até hoje — como estampa este jornal — domina a alma política nacional. De titia Amália gravei a narrativa do “caminho que vai-não-torna”, o qual conduzia sem volta a um tesouro guardado por um dragão. Não tenho como dizer se o monstro era procurador ou juiz. Mas o que aprendi foi que os dragões botavam fogo pela boca e — como os nossos melhores políticos — dormiam de olhos abertos e estavam acordadíssimos quando fechavam os olhos...

Quanto às narrativas de almas outro mundo, elas ficam — como delação de Eduardo Cunha — para uma outra crônica.

Roberto DaMatta

Um pouco de música

Herbert von Karajan dirigindo a Berlin Philharmonic Orchestra

Conflitos institucionais

Existe a sensação de que estamos vivendo uma crise institucional. No momento, essa sensação é alimentada pelo bate-boca entre o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e a ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, em torno da investigação de grampos feitas a pedido de senadores no Senado Federal.

Mas não é só isso. De fato, existe uma crise entre os Poderes da República e uma excessiva judicialização do debate. Porém, seria prematuro dizer que vivemos uma crise institucional. Vivemos uma época de conflitos institucionais decorrentes da amplitude da Operação Lava-Jato e de suas consequências econômicas, políticas, criminais e eleitorais.

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Para onde vamos? Em primeiro lugar, devemos reconhecer que os conflitos são sérios e terão consequências que geram reações de lado a lado. Natural esperar que o Congresso reaja tanto no campo jurídico, questionando investigações sobre seus membros por Juizado de primeira ou segunda instância, quanto aprovando projetos que desafiam – ou, pretensamente desafiam – o Poder Judiciário.

Outra consequência é o aumento de dificuldades na tramitação das medidas promovidas pelo Ministério Público contra a corrupção. Aliás, poucos perceberam que o Supremo rejeitou o uso de provas ilegais no caso Demóstenes Torres. A ala fundamentalista do Ministério Público deve ter ficado muito aborrecida.

Outra consequência será o aumento da pressão sobre o STF para acelerar julgamentos de políticos envolvidos na Lava-Jato. Tudo que está ocorrendo, evidentemente, destaca o papelão do STF no equilíbrio das relações entre os Poderes.

Objetivamente, devemos responder a algumas questões que afetam o âmbito econômico.

O conflito atrapalha o andamento da PEC dos Gastos? A princípio, não. Após a manifestação da Câmara, a proposta deverá ser aprovada no Senado em meio à obstrução do PT e de aliados.

A Reforma Previdenciária pode ser prejudicada? É prematuro dizer, mas, a princípio, não. O debate, por si só, vai ser intenso e disputado, independentemente dos conflitos institucionais que devem prosseguir. No limite, a Reforma Previdenciária depende muito mais de uma boa narrativa e da boa gestão da base política.

O governo Temer está ameaçado? A princípio, não. O robusto apoio na Câmara mostra evidente proteção política. A votação da PEC dos Gastos, tanto em primeiro quanto em segundo turno, foi uma demonstração de força. No campo judicial, a vitória, no caso da “desaposentação” no STF, livrou os cofres públicos do pagamento de mais de 160 bilhões de reais. Mostrou efetividade no diálogo com o Judiciário.

À parte as manchetes excitadas, as instituições estão funcionando. As atividades no STF e no Congresso são uma prova disso. Os conflitos vão continuar. Mas, salvo evento extraordinário, serão administrados dentro dos limites do razoável.

A solidão de Renan Calheiros

A arenga do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) contra o Poder Judiciário pode ser chamada por qualquer nome, mas está longe de indicar que o país esteja às vésperas de uma crise institucional.

O Poder Legislativo é composto pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. Renan preside o Senado.

Quando o Senado e a Câmara se reúnem para deliberar, diz-se que o Congresso está reunido. E é o presidente do Senado quem comanda a sessão.

Renan é, pois, o presidente de uma das casas do Poder Legislativo. Não é o presidente do Poder Legislativo.

Na linha direta de sucessão do presidente da República, o presidente do Senado é o terceiro. Antes dele estão o vice-presidente e o presidente da Câmara.

Michel Temer não tem vice, como José Sarney não teve, nem Itamar Franco. Os três substituíram presidentes afastados por impeachment (Collor e Dilma) e por morte (Tancredo Neves).

Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual presidente da Câmara dos Deputados, não está em rota de colisão com o Poder Judiciário.


Quem está é Renan. E não por que um juiz de primeira instância autorizou a Polícia Federal a prender agentes da Polícia do Senado, suspeitos de sabotarem a Lava Jato.

Mas porque Renan está encrencado com a Justiça onde responde a 11 processos, e vê a Lava Jato aproximar-se mais e mais dele.

Quando se sente acuado, Renan ataca. Faz barulho. E, por meio dele, tenta atrair apoios. Como fazia Eduardo Cunha, hoje, preso em Curitiba.

Como sabe que é generalizado no Congresso o medo da Lava Jato, Renan se oferece como líder da resistência contra suas investidas.

Falta-lhe coragem, porém, para bater no alto. Bate então num “juizeco” e em um ministro a quem se refere como “chefe de polícia”.

Não bate em Sérgio Moro. Muito menos em ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que o julgarão em breve por ter recebido dinheiro de uma empreiteira para pagar pensão à ex-amante.

Diante de uma reprimenda da ministra Carmén Lúcia, presidente do STF, mia como um gato e renova seu apreço ao Judiciário.

No dia seguinte, sugere que faltará a uma reunião convocada pela ministra para tratar de segurança pública. Para horas depois confirmar que estará, sim, presente à reunião.

É incentivado pelos colegas a ir em frente. Mas eles não se dispõem a acompanhá-lo. Está só. E a três meses do fim do seu mandato como presidente do Senado.

A Lava Jato está longe do fim. O mandato de dois anos da ministra Cármen Lúcia como presidente do STF está só no começo.

Imagem do Dia

Imagem de Martin Birks
 Homem caminha na colina Chrome, no distrito de Derbyshire's Peak ( Martin Birks)
Veja mais fotos do concurso sobre paisagens britânicas promovido pela VisitaBritain, agência nacional de promoção do turismo e a campanha governamental GREAT Britain. As fotos vencedoras serão expostas na estação de Waterloo, em Londres, a partir de 21 de novembro 

A indiferença de gênero

Toda vez que alguém afirma que, na escola, não pode existir diferença entre garotas e garotos e que, em sala de aula, o gênero não deve ser nem mencionado, Freud se vira e revira no túmulo e morre de vontade de fumar um charuto para se acalmar. Às vezes, um charuto é apenas um charuto. Às vezes, nem sempre. Negar o óbvio não resolverá o relacionamento entre o sexo masculino e o feminino, tampouco aumentará o respeito a homossexuais, transexuais, bissexuais e os mais de quarenta tipos sexuais diferentes.

Para ilustrar a questão, recorro aos índios koguis, da Colômbia. Vivem na região caribenha de Santa Marta, no meio da selva amazônica, perto da Cidade Perdida, a gigantesca e desafiante ruína da civilização Tayrona, desaparecida há séculos. O Pico São Cristóvão, o mais alto da Colômbia, é o centro de seu universo.

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Andei por lá, contatei alguns membros da tribo. São evasivos, desconfiados, calados. Não reconhecem a diferença de sexo entre meninos e meninas até os 10 ou 11 anos. Elas e eles se vestem com a mesma bata branca rente ao chão, não cortam o cabelo que lhes toca o ombro, brincam juntos, uns e outros muito parecidos fisicamente. Em seu paraíso tropical, as meninas são tão destras quanto os meninos para voar entre uma árvore e outra usando cipós. Nada de macho e fêmea, nenhuma discriminação, nenhuma disputa.

No entanto, assim que chega a puberdade, o quadro muda. Eles assumem o papel de machões e elas se tornam semiescravas. Esposas obedecem aos maridos às cegas. Muitos as castigam fisicamente, largam-nas em cômodos pouco confortáveis, não admitem que frequentem o templo central da aldeia ou abandonem a tribo. Uma delas, apaixonada por um guia turístico, foi caçada depois de fugir. Outra teria sido morta. O que faz uma situação de absoluta igualdade se transformar em desigualdade?

A resposta é a cultura. Apesar de toda a equiparação inicial, a sociedade no fundo pratica outros valores, tacitamente aceitos. É a tradição dos koguis, com a qual convivem há séculos. Para mim soa uma afronta, um ato inadmissível. Para eles, é a norma. Não devo julgar. Trata-se de uma questão antropológica.

Sempre houve e haverá diferença entre os sexos, mascarada na infância dos koguis. Entre nós, nas escolas, também há e esquecê-la tampouco evitará, no futuro, a discriminação e o preconceito, mantidos os atuais padrões de nosso convívio.

Para eliminar a absurda discriminação ou agressão à mulher, a sociedade como um todo precisa se preparar. A sala de aula é um ótimo ponto de partida. Custa muito mudar um preconceito centenário, aceito até por quem é prejudicado. Conheço mulheres que até hoje dispensam tratamento especial aos filhos homens. São mais machistas que eles. Jamais admitiriam, por exemplo, que fossem homossexuais.

Atitudes positivas e afirmativas também ajudariam a minorar o problema. Além disso, a lei deve prevalecer. Existem proteções legais contra os abusos. Estão em vigor. Se aplicadas, muitos problemas deixarão de existir.

No entanto, há um longo caminho até a igualdade entre os sexos e até a completa liberdade de opções sexuais. Assim como para a discriminação racial. A qualquer hesitação, encampamos a atitude dos kóguis, sem qualquer prurido antropológico. Aliás, no fundo, é a nossa tendência. Muitas gerações e muitos discursos nos levaram a esse comportamento. Até quando?

Luís Giffoni

'Palácio' não é santuário

Charge do dia 26/10/2016
Um juiz de primeira instância pode autorizar a entrada em qualquer lugar porque não existem lugares imunes às buscas e apreensões no Brasil. Não existe nenhum santuário
Carlos Fernando Lima, procurador da Lava Jato

Lula se agarra à ONU como náufrago ao graveto

Os advogados de Lula informam que avançou a petição protocolada por eles contra o juiz Sérgio Moro no Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos. Afirmam que a peça “passou por um primeiro juízo de admissibilidade e foi registrada perante aquele órgão.” Requisitaram-se informações ao governo brasileiro sobre o caso.

Charge do dia 27/10/2016
A novidade tem importância meramente cenográfica. Serve para que Lula faça no estrangeiro sua pose preferida —a pose de perseguido. No Brasil, a iniciativa serve apenas para potencializar em procuradores e magistrados o sentimento de que chegou a hora de demonstrar que ninguém está acima da lei no país.

Os comissários da ONU não precisam nem aguardar pela resposta do governo brasileiro para perceber que Sergio Moro está longe de ser o único problema de Lula. O personagem é réu em três processos, está prestes a ser denunciado uma quarta vez e continua sendo alvejado em delações que ainda estão no forno.

Um tsunami penal engolfa Lula. Como suas petições não encontram guarida nos tribunais pátrios, os defensores do morubixaba do PT esperneiam alhures. E Lula se agarra à ONU como um náufrago a um graveto. Não se dá conta de que, no desespero, jacaré parece tronco.

Livro denuncia atividades de empresas alemãs no Brasil

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'Chuva de prata' em Sepetiba
Escândalos envolvendo a atuação de empresas alemãs no Brasil são raros. Apenas dois casos ganharam as manchetes nos últimos anos: um envolvendo a ThyssenKrupp, responsável pela chuva de prata que caiu na Baía de Sepetiba em 2012, e outro envolvendo a Volkswagen, que foi mencionada no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, divulgado em 2014. O documento revelou violações de direitos humanos dentro da montadora durante a ditadura militar.

Mas esses são apenas dois entre vários casos em que empresas alemãs tiveram um comportamento no mínimo questionável em solo brasileiro, como denuncia um livro lançado no sábado passado (22/10) na Feira do Livro de Frankfurt e que investiga a fundo a questão.

Em Abstauben in Brasilien, ainda sem título em português, o jornalista e ativista alemão Christian Russau aborda, além dos dois exemplos acima que viraram notícia, casos específicos que envolvem diretamente empresas alemãs ou seus fornecedores, entre elas gigantes como Siemens, Basf e Bayer, com foco nos direitos humanos e no meio ambiente.

No Brasil há muitas ONGs, mas com uma mídia como essa e um Congresso como esse fica tudo muito complicado
Ele se ocupa, por exemplo, das parcerias militares entre a Alemanha e o Brasil durante a ditadura, contestando cursos oferecidos por especialistas alemães num país onde o regime cometia violações de direitos humanos, e foca ainda nos negócios de empresas bélicas, como Heckler&Koch e Krupp, no país.

O acordo nuclear Brasil e Alemanha, que beneficiaria diretamente a Siemens, é tema de outro capítulo, que novamente critica as autoridades alemãs por causa da época em que a parceria foi fechada, a década de 1970, sem que houvesse qualquer debate crítico sobre as práticas do regime militar. Além disso, o governo alemão atual é criticado pela sua posição de manter essa parceria mesmo tendo decidido fechar todas as usinas nucleares da Alemanha.

Outro capítulo aborda os impactos socioambientais da exploração de matérias-primas por fornecedores da indústria alemã, com foco em Carajás. O acidente na barragem da Samarco, em Minas Gerais, merece um capítulo próprio. Russau critica as empresas alemães que fizeram o resseguro da mineradora.

Outro capítulo investiga crimes socioambientais, desta vez no âmbito da construção de hidrelétricas na Amazônia, e questiona o papel e a responsabilidade de empresa alemãs que fornecem partes dessas usinas, como a Siemens.

Na parte final do livro, o foco está na agricultura. Primeiro, Russau denuncia o uso de substâncias proibidas na União Europeia em pesticidas vendidos no Brasil pela Basf e Bayer. Depois analisa como a indústria suína alemã contribui com o desmatamento.