domingo, 18 de dezembro de 2016
Partidos, intelectuais, democracia
Inimaginável qualquer nostalgia dos tempos duros do regime autoritário, mas é fato que, então, além de sonhar com a volta do irmão de Henfil, contávamos com referências seguríssimas que eram a garantia de uma transição sábia e prudente rumo à vida democrática. De fato, reconfortava ter ao alcance da vista personalidades laicas ou religiosas – um Barbosa Lima Sobrinho ou um dom Paulo Evaristo Arns – cuja presença, no mínimo, indicava o roteiro básico e assinalava o reencontro do Brasil consigo mesmo.
Não haveria mais exilados ou clandestinos, presos ou perseguidos políticos, fato raro em nossa História. Prestes e os comunistas, Brizola e os trabalhistas, para não falar do novo mundo sindical que se cristalizaria em torno de Lula e do PT, se fariam presentes nas ruas e nas instituições, ampliando estas últimas e dando-lhes plena legitimidade. Tempo, ainda, de elaborações sofisticadas, que, mesmo pagando o inevitável tributo às ilusões do momento, perguntavam-se, e respondiam positivamente, sobre as possibilidades da democracia em sociedades marcadas por imensas desigualdades. Ela seria – como se chegou a dizer numa fórmula de rara felicidade, trazida dos comunistas italianos – um “valor universal”, meio e fim dos processos de democratização e modernização.
No coração das trevas, as eleições de 1974 registraram o surgimento de uma elite dirigente em potencial, que, de fato, iria assegurar o governo do País dali a poucos anos. Políticos de gerações anteriores, como Ulysses, Tancredo e Montoro, misturavam-se a “jovens” de pouco mais de 30 ou 40 anos, como Itamar Franco, Pedro Simon e Marcos Freire. E nesse âmbito mais diretamente ligado à política profissional, o lugar privilegiado de gestação daquela promissora elite era, nem mais, nem menos, o velho MDB, o partido da “oposição consentida”.
Deve-se admitir que o MDB, um sucesso de público, como o comprovariam as sucessivas vitórias eleitorais, jamais teve fortuna crítica à altura. Ser “consentido” era já um estigma forte: quem estava no partido lutava só pelas “liberdades burguesas”, declinando de responsabilidades revolucionárias, tal como ensinavam a lição chinesa ou a cubana. Os fantasmas do voto nulo e da autodissolução o rondaram em conjunturas críticas. E seu sentido mais essencial – ter sido, desde sempre, o lugar de convergência de oposicionistas da primeira hora e dissidentes do regime, de liberais, comunistas do PCB e democratas em geral – talvez não haja sido apreendido pelos que viriam depois, inclusive e paradoxalmente as próprias figuras da esquerda nova.
Antes de mais nada, o PT. Construído ao longo de décadas em torno de um mito operário de “base”, o partido mostrou-se substancialmente alheio às tratativas da transição, como se sua mera existência ressignificasse toda a História e, por exemplo, o dispensasse de votar em Tancredo ou permitisse infantilidades antes de assinar a Carta de 1988. Trouxe ainda, como pecado de origem, uma cultura política que, enfatizando um “espírito de cisão” em relação à frente emedebista, excluía e separava, subordinava e impunha um mando. A afirmação “classista” inicial, que o distinguiria de “todo o resto burguês”, implicava uma das modulações clássicas do discurso populista, fundamentado na afirmação exasperada do “nós contra eles”. Uma lógica binária que marcaria as relações políticas, e não só elas, especialmente nos anos de poder incontrastado.
Houve algo de novo nas alianças partidárias a partir de 2003. Se observarmos sem indulgência, ocorreu menos uma homogeneização das práticas do partido dominante às da “velha política” do que a decapitação sistemática dos aliados do petismo e a introdução sistemática de modos agressivos de cooptação e subordinação: inicialmente, as legendas menores e, depois, o próprio PMDB. Assim, na hora de contribuir para renovar as elites, o petismo comportou-se de forma irresponsável. E se a capacidade de renovar ideias e práticas for o critério para avaliar uma força política, não há dúvida de que hoje estamos diante de um fracasso histórico de custosa reparação.
Verdade que ele teve diante de si partidos cujas direções estavam envelhecidas ou que, no caso do arqui-inimigo tucano, se dividiram entre lideranças inconciliáveis. Tais grupos, mesmo com a implantação “capilar” no território típica do PMDB ou com a orientação social-democrata (ou social-liberal) do PSDB, se comportaram de modo tradicionalíssimo e se desligaram progressivamente da vida associativa, dos centros de cultura e dos locais de trabalho. Têm votos e ganham eleições, elegem bancadas, governadores e até presidentes, mas são exércitos dispersos, sem capitães ou bandeiras capazes de gerar uma certa visão dos problemas razoavelmente difundida na sociedade.
Por isso, como diz José de Souza Martins, incorremos massivamente num tempo agônico de partidarização sem politização. Na vigência do regime democrático, que facilita e promove a vida intelectual, não soubemos construir figuras de referência. Parece não falarmos a linguagem geral que consente a divergência e a pluralidade. Perdemos – quem sabe, momentaneamente – a ideia de que deve existir, por força das coisas, um terreno comum entre os contendores, algo, em suma, que permite explicitar radicalmente as divergências e manter como âncoras valores compartilhados e princípios de lealdade mútua.
Quando partidos e classes quase se confundiam e os antagonismos respondiam a uma lógica bruta, ainda assim houve quem tivesse a consciência de que a exacerbação irracional do conflito só pode levar à ruína generalizada. Mal começou, entre nós, a pesquisa sobre as razões por que o petismo, como “ideologia” e como prática, contribuiu tão pouco para o refinamento dessa consciência, a qual, porém, é condição inescapável para dirigir a mudança social contemporânea.
Luiz Sérgio Henriques
Não haveria mais exilados ou clandestinos, presos ou perseguidos políticos, fato raro em nossa História. Prestes e os comunistas, Brizola e os trabalhistas, para não falar do novo mundo sindical que se cristalizaria em torno de Lula e do PT, se fariam presentes nas ruas e nas instituições, ampliando estas últimas e dando-lhes plena legitimidade. Tempo, ainda, de elaborações sofisticadas, que, mesmo pagando o inevitável tributo às ilusões do momento, perguntavam-se, e respondiam positivamente, sobre as possibilidades da democracia em sociedades marcadas por imensas desigualdades. Ela seria – como se chegou a dizer numa fórmula de rara felicidade, trazida dos comunistas italianos – um “valor universal”, meio e fim dos processos de democratização e modernização.
No coração das trevas, as eleições de 1974 registraram o surgimento de uma elite dirigente em potencial, que, de fato, iria assegurar o governo do País dali a poucos anos. Políticos de gerações anteriores, como Ulysses, Tancredo e Montoro, misturavam-se a “jovens” de pouco mais de 30 ou 40 anos, como Itamar Franco, Pedro Simon e Marcos Freire. E nesse âmbito mais diretamente ligado à política profissional, o lugar privilegiado de gestação daquela promissora elite era, nem mais, nem menos, o velho MDB, o partido da “oposição consentida”.
Deve-se admitir que o MDB, um sucesso de público, como o comprovariam as sucessivas vitórias eleitorais, jamais teve fortuna crítica à altura. Ser “consentido” era já um estigma forte: quem estava no partido lutava só pelas “liberdades burguesas”, declinando de responsabilidades revolucionárias, tal como ensinavam a lição chinesa ou a cubana. Os fantasmas do voto nulo e da autodissolução o rondaram em conjunturas críticas. E seu sentido mais essencial – ter sido, desde sempre, o lugar de convergência de oposicionistas da primeira hora e dissidentes do regime, de liberais, comunistas do PCB e democratas em geral – talvez não haja sido apreendido pelos que viriam depois, inclusive e paradoxalmente as próprias figuras da esquerda nova.
Antes de mais nada, o PT. Construído ao longo de décadas em torno de um mito operário de “base”, o partido mostrou-se substancialmente alheio às tratativas da transição, como se sua mera existência ressignificasse toda a História e, por exemplo, o dispensasse de votar em Tancredo ou permitisse infantilidades antes de assinar a Carta de 1988. Trouxe ainda, como pecado de origem, uma cultura política que, enfatizando um “espírito de cisão” em relação à frente emedebista, excluía e separava, subordinava e impunha um mando. A afirmação “classista” inicial, que o distinguiria de “todo o resto burguês”, implicava uma das modulações clássicas do discurso populista, fundamentado na afirmação exasperada do “nós contra eles”. Uma lógica binária que marcaria as relações políticas, e não só elas, especialmente nos anos de poder incontrastado.
Houve algo de novo nas alianças partidárias a partir de 2003. Se observarmos sem indulgência, ocorreu menos uma homogeneização das práticas do partido dominante às da “velha política” do que a decapitação sistemática dos aliados do petismo e a introdução sistemática de modos agressivos de cooptação e subordinação: inicialmente, as legendas menores e, depois, o próprio PMDB. Assim, na hora de contribuir para renovar as elites, o petismo comportou-se de forma irresponsável. E se a capacidade de renovar ideias e práticas for o critério para avaliar uma força política, não há dúvida de que hoje estamos diante de um fracasso histórico de custosa reparação.
Verdade que ele teve diante de si partidos cujas direções estavam envelhecidas ou que, no caso do arqui-inimigo tucano, se dividiram entre lideranças inconciliáveis. Tais grupos, mesmo com a implantação “capilar” no território típica do PMDB ou com a orientação social-democrata (ou social-liberal) do PSDB, se comportaram de modo tradicionalíssimo e se desligaram progressivamente da vida associativa, dos centros de cultura e dos locais de trabalho. Têm votos e ganham eleições, elegem bancadas, governadores e até presidentes, mas são exércitos dispersos, sem capitães ou bandeiras capazes de gerar uma certa visão dos problemas razoavelmente difundida na sociedade.
Por isso, como diz José de Souza Martins, incorremos massivamente num tempo agônico de partidarização sem politização. Na vigência do regime democrático, que facilita e promove a vida intelectual, não soubemos construir figuras de referência. Parece não falarmos a linguagem geral que consente a divergência e a pluralidade. Perdemos – quem sabe, momentaneamente – a ideia de que deve existir, por força das coisas, um terreno comum entre os contendores, algo, em suma, que permite explicitar radicalmente as divergências e manter como âncoras valores compartilhados e princípios de lealdade mútua.
Quando partidos e classes quase se confundiam e os antagonismos respondiam a uma lógica bruta, ainda assim houve quem tivesse a consciência de que a exacerbação irracional do conflito só pode levar à ruína generalizada. Mal começou, entre nós, a pesquisa sobre as razões por que o petismo, como “ideologia” e como prática, contribuiu tão pouco para o refinamento dessa consciência, a qual, porém, é condição inescapável para dirigir a mudança social contemporânea.
Luiz Sérgio Henriques
Cara para bater
Está ficando cada vez mais raro na vida pública brasileira, nos dias que correm, encontrar quem esteja disposto a fazer a coisa certa apenas porque é a coisa certa – mesmo quando a moral, os bons costumes e a lógica deixam claro que é a única coisa a ser feita. O que importa acima de tudo, hoje em dia, é fazer a coisa que dá certo; não é necessariamente um pecado, mas é diferente. Nem é tão importante assim, na verdade, fazer o que dá certo. Mais que tudo, o que vale é não fazer nada que possa dar errado. Trata-se da teoria e da prática do “risco zero”. Os grandes princípios, nessa maneira de encarar as responsabilidades públicas, se concentram em umas poucas definições. Por exemplo: não se pode “dar a cara para bater”. Ou: a maior virtude de um político é ser “profissional”; seu pior defeito é ser “ingênuo”. Atos de coragem pessoal, por essa cartilha, são estritamente desaconselhados; quando expõem o autor à “impopularidade”, então, passam a ser vistos como pura e irreparável estupidez. É indispensável, diante de qualquer problema a ser resolvido, dizer que “o povo não pode pagar a conta”. Nunca é o “momento adequado” para tomar uma providência, por mais necessária que seja, se ela significar algum sacrifício. É muito mais perigoso não prometer do que não cumprir. Um político eficaz deve acreditar, talvez como a regra primordial de todas, que dá mais certo tratar a população segundo os seus interesses do que segundo os seus direitos.
Nada mais natural, num país em que os políticos vivem à beira do xadrez, na mira da polícia e na dependência de sentenças judiciais para manter o cargo, que o pavor da vaia tenha assumido tanta importância. É a preocupação suprema: faça qualquer coisa, submeta-se a qualquer papel, mas não se arrisque, jamais, a ser vaiado num lugar público. Só mesmo no Brasil de hoje se entende, para ficar num exemplo recente, que tenha sido levada a sério pelo governo, como parece que foi, a possibilidade de que o presidente da República não comparecesse às cerimônias fúnebres que se seguiram ao desastre aéreo com a equipe da Associação Chapecoense de Futebol. Poucos fatos, nos últimos anos, mexeram tanto com as emoções do público brasileiro quanto essa tragédia. Mas até pouco antes dos funerais a informação oficial era que o presidente Michel Temer não iria – ou iria praticamente escondido, como a ex-presidente Dilma Rousseff na final da Copa do Mundo de Futebol de 2014, no Maracanã. Felizmente, inclusive para si próprio, ele foi. Mas é uma completa aberração que os maiores nomes do mundo político brasileiro (quer dizer: maiores pelo tamanho dos cargos) estivessem tão longe da cerimônia quanto o diabo da cruz. Pior: não poderia mesmo ser diferente. Imagine-se, por exemplo, se seria possível a presença do senador Renan Calheiros e do deputado Rodrigo Maia no palanque das autoridades em Chapecó; se algum assessor, por acaso, lhes tivesse dado a ideia de comparecer, ambos teriam passado mal só de ouvir. Temos, então, o seguinte: o presidente do Senado Federal (cargo hoje em tumulto) e o da Câmara dos Deputados não andam livremente no próprio país. Pode?
E o ex-presidente Lula, que é descrito por tanta gente, a começar por ele mesmo, como o maior líder popular que o Brasil jamais teve em toda a sua história? Esse, então, estava em Cuba, junto com a sucessora. Foi a um outro enterro; não ocorreu a ele, e talvez menos ainda a ela, correr o risco de estar junto do povo brasileiro naquela hora. O ex-presidente, aliás, é um dos pioneiros nesse tipo de sabedoria política – conseguiu não ir a uma única partida da mesma Copa do Mundo de 2014, que colocava entre as maiores realizações do seu governo e da sua vida. Lula, há anos, só aparece em eventos em que a plateia é controlada por seguranças do seu partido ou dos “movimentos sociais”. De novo, é a anomalia: o soberano das massas populares brasileiras não pode sair às ruas neste país. Ele e quantos mais? Quase todos. Na verdade, quantos políticos teriam coragem de ir a uma manifestação de rua como as que têm acontecido de 2015 para cá? Quantos se sentem realmente seguros para ir a um restaurante ou atravessar um saguão de aeroporto? Só o anonimato dá segurança; do jeito que as coisas vão, daqui a pouco nossos representantes começarão a ir para as sessões do Congresso Nacional com aquelas máscaras pretas que a polícia costuma usar em operações secretas. Chegamos a um ponto em que a regra principal para o exercício da vida pública no Brasil é não aparecer em público.
Nada mais natural, num país em que os políticos vivem à beira do xadrez, na mira da polícia e na dependência de sentenças judiciais para manter o cargo, que o pavor da vaia tenha assumido tanta importância. É a preocupação suprema: faça qualquer coisa, submeta-se a qualquer papel, mas não se arrisque, jamais, a ser vaiado num lugar público. Só mesmo no Brasil de hoje se entende, para ficar num exemplo recente, que tenha sido levada a sério pelo governo, como parece que foi, a possibilidade de que o presidente da República não comparecesse às cerimônias fúnebres que se seguiram ao desastre aéreo com a equipe da Associação Chapecoense de Futebol. Poucos fatos, nos últimos anos, mexeram tanto com as emoções do público brasileiro quanto essa tragédia. Mas até pouco antes dos funerais a informação oficial era que o presidente Michel Temer não iria – ou iria praticamente escondido, como a ex-presidente Dilma Rousseff na final da Copa do Mundo de Futebol de 2014, no Maracanã. Felizmente, inclusive para si próprio, ele foi. Mas é uma completa aberração que os maiores nomes do mundo político brasileiro (quer dizer: maiores pelo tamanho dos cargos) estivessem tão longe da cerimônia quanto o diabo da cruz. Pior: não poderia mesmo ser diferente. Imagine-se, por exemplo, se seria possível a presença do senador Renan Calheiros e do deputado Rodrigo Maia no palanque das autoridades em Chapecó; se algum assessor, por acaso, lhes tivesse dado a ideia de comparecer, ambos teriam passado mal só de ouvir. Temos, então, o seguinte: o presidente do Senado Federal (cargo hoje em tumulto) e o da Câmara dos Deputados não andam livremente no próprio país. Pode?
E o ex-presidente Lula, que é descrito por tanta gente, a começar por ele mesmo, como o maior líder popular que o Brasil jamais teve em toda a sua história? Esse, então, estava em Cuba, junto com a sucessora. Foi a um outro enterro; não ocorreu a ele, e talvez menos ainda a ela, correr o risco de estar junto do povo brasileiro naquela hora. O ex-presidente, aliás, é um dos pioneiros nesse tipo de sabedoria política – conseguiu não ir a uma única partida da mesma Copa do Mundo de 2014, que colocava entre as maiores realizações do seu governo e da sua vida. Lula, há anos, só aparece em eventos em que a plateia é controlada por seguranças do seu partido ou dos “movimentos sociais”. De novo, é a anomalia: o soberano das massas populares brasileiras não pode sair às ruas neste país. Ele e quantos mais? Quase todos. Na verdade, quantos políticos teriam coragem de ir a uma manifestação de rua como as que têm acontecido de 2015 para cá? Quantos se sentem realmente seguros para ir a um restaurante ou atravessar um saguão de aeroporto? Só o anonimato dá segurança; do jeito que as coisas vão, daqui a pouco nossos representantes começarão a ir para as sessões do Congresso Nacional com aquelas máscaras pretas que a polícia costuma usar em operações secretas. Chegamos a um ponto em que a regra principal para o exercício da vida pública no Brasil é não aparecer em público.
Cerejas da vida
Enquanto jovem, enxerga-se o mundo à luz ofuscante do meio-dia, brilhos fervilham na paisagem. Qualquer um deles poderia ser ouro. O calor esquenta, os raios queimam a pele.
Isso também passa rapidamente, os anos escorrem como águas do rio e mudam nossa postura. O ocaso deixa a luz dourada, amena. Somem os brilhos que faziam crer na riqueza em cada reflexo, e os cacos de vidro aparecem. Surge em seguida a certeza de que o ouro, como o diamante, se esconde nas profundezas, e ambos são de quem sabe lavrá-los com perseverança.
A vaidade juvenil se apaga como o vento, a fabricação de hormônio diminui. Começamos a sentir quão ingênuos e tolos fomos no começo.
“Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora. Tenho muito mais passado do que futuro”, disse Mário de Andrade em seu poema dedicado aos “maduros”. “Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço”.
Perde-se, ao encanecer, a disposição para lidar com mediocridades, para recorrer à vingança, efêmera e vã; compreende-se que acima tem “alguém” todo-poderoso que sabe escolher a dose e o momento mais certo, sem pressa.
Os rótulos se apagam, e os conteúdos se exaltam. O tempo que foge passa a ter valor extraordinário, inestimável. Não dá mais para errar. Tem que dar certo, as últimas chances têm que dar inapelavelmente certo. Os dias amanhecem como presentes raros; para serem aproveitados, sem ansiedade, mas até o fim.
O sono se faz curto, e as horas na cama são mais pensativas. Não se perde tempo com futilidades, com conversas sem motivo, com lucros sem sentidos. As mentiras e os subterfúgios machucam os ouvidos como sirenes.
Enxerga-se a beleza nos defeitos, nas raridades, no esforço uníssono da natureza para atingir a perfeição.
Depois de muito trabalho, entende-se que a obra mais importante é fazer da vida a verdadeira obra, que a glória não está nesta terra. Compreende-se que quem pede é o mais infeliz, e quem doa sem nada querer é o verdadeiro feliz.
Perde-se a capacidade de levar a sério a teatralidade, a vaidade, o orgulho, as conversas prolixas. Valorizam-se o sorriso, a desculpa singela, um olhar de compaixão.
Aprende-se a ler palavras nos olhos, mais que nos lábios. Ainda a manter a calma mesmo frente à pequenez e à deslealdade. Passa-se a medir as pessoas pela sinceridade que ilumina o universo.
Não são mil beijos que enchem de satisfação, mas um, apenas um, intenso, que gruda na pele um sentimento de amor.
A casca dura se quebra com o peso dos anos, revelando a essência, o doce da vida.
Aí, sim, se entendem quantas oportunidades perdemos, quanta polpa deixamos junto aos caroços.
Só com a bacia vazia descobrimos o fantástico valor das últimas cerejas, dos dias que restam.
Enquanto se aproveita ainda o rarefeito sabor do caroço, os arrependimentos se extinguem, o medo do fim deixa apenas lugar a uma satisfação muda e intensa. A paz retribui a quem cumpriu a sua missão.
Isso também passa rapidamente, os anos escorrem como águas do rio e mudam nossa postura. O ocaso deixa a luz dourada, amena. Somem os brilhos que faziam crer na riqueza em cada reflexo, e os cacos de vidro aparecem. Surge em seguida a certeza de que o ouro, como o diamante, se esconde nas profundezas, e ambos são de quem sabe lavrá-los com perseverança.
A vaidade juvenil se apaga como o vento, a fabricação de hormônio diminui. Começamos a sentir quão ingênuos e tolos fomos no começo.
“Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora. Tenho muito mais passado do que futuro”, disse Mário de Andrade em seu poema dedicado aos “maduros”. “Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço”.
Os rótulos se apagam, e os conteúdos se exaltam. O tempo que foge passa a ter valor extraordinário, inestimável. Não dá mais para errar. Tem que dar certo, as últimas chances têm que dar inapelavelmente certo. Os dias amanhecem como presentes raros; para serem aproveitados, sem ansiedade, mas até o fim.
O sono se faz curto, e as horas na cama são mais pensativas. Não se perde tempo com futilidades, com conversas sem motivo, com lucros sem sentidos. As mentiras e os subterfúgios machucam os ouvidos como sirenes.
Enxerga-se a beleza nos defeitos, nas raridades, no esforço uníssono da natureza para atingir a perfeição.
Depois de muito trabalho, entende-se que a obra mais importante é fazer da vida a verdadeira obra, que a glória não está nesta terra. Compreende-se que quem pede é o mais infeliz, e quem doa sem nada querer é o verdadeiro feliz.
Perde-se a capacidade de levar a sério a teatralidade, a vaidade, o orgulho, as conversas prolixas. Valorizam-se o sorriso, a desculpa singela, um olhar de compaixão.
Aprende-se a ler palavras nos olhos, mais que nos lábios. Ainda a manter a calma mesmo frente à pequenez e à deslealdade. Passa-se a medir as pessoas pela sinceridade que ilumina o universo.
Não são mil beijos que enchem de satisfação, mas um, apenas um, intenso, que gruda na pele um sentimento de amor.
A casca dura se quebra com o peso dos anos, revelando a essência, o doce da vida.
Aí, sim, se entendem quantas oportunidades perdemos, quanta polpa deixamos junto aos caroços.
Só com a bacia vazia descobrimos o fantástico valor das últimas cerejas, dos dias que restam.
Enquanto se aproveita ainda o rarefeito sabor do caroço, os arrependimentos se extinguem, o medo do fim deixa apenas lugar a uma satisfação muda e intensa. A paz retribui a quem cumpriu a sua missão.
O ano se vai, a crise não
Nessa mesma época do ano passado, eu começava uma crônica fazendo ironia: “Quem sabe saindo de cena por uns tempos eu não ajude a resolver a crise política? Se ninguém se considera responsável por ela — nem Dilma, nem Temer, nem Renan, muito menos Cunha — vai ver que o culpado sou eu. Por isso, vou tirar umas semanas de recesso, junto com o do Congresso”.
De fato tirei (como vou tirar agora) e, quando voltei, tudo continuava do mesmo jeito ou pior. Hoje, estou temendo a repetição, porque, ao contrário do provérbio escatológico português, nem as moscas mudaram, a não ser uma ou outra. A m... é a mesma.
Continuamos nos perguntando se estamos vivendo a nossa pior crise. Não sei, mas com certeza é a mais completa e abrangente, pois atinge ao mesmo tempo a política (desmoralizada), a economia (rebaixada), o meio ambiente (enlameado) e a ética (ultrajada pela inversão total de valores).
Escrevi então: “Com o país rachado, o ódio vicejando, com uma presidente impopular tentando se livrar do impeachment, com o vice conspirando e também sob suspeita de pedaladas, com o presidente da Câmara lutando para não ir para a cadeia, com o seu colega do Senado sendo investigado, com a população desencantada a sensação para nós, pobres mortais diante do deprimente espetáculo, é de total confusão”.
Não parece que foi hoje? Só falta acrescentar o bate-boca público entre juízes do STF.
Para quem gosta de comparar, a diferença entre os anos de chumbo e os atuais é que aqueles eram mil vezes piores, mas era possível saber o que iria acontecer mais cedo ou mais tarde.
Não havia dúvida de que um dia a ditadura ia acabar. Agora, não dá para prever o que acontecerá quando o Natal passar, o carnaval chegar, a euforia acabar, e Câmara e Senado caírem de novo na real, ou na fantasia.
De sua parte, o prefeito Marcelo Crivella já tratou de prevenir dizendo que Deus vai ajudá-lo a “fazer o impossível”. Assim, se não fizer, a responsabilidade não será dele, mas da falta de ajuda.
Andamos falando mal de 2016 e dizendo que ele já vai tarde. O problema é que a crise não vai, parece permanente. A um ano ruim sucede um pior, e isso nos deixa inseguros em relação a 2017.
Pelo jeito, o futuro da política no Brasil pertence à Lava-Jato. Ninguém está livre dela, não há personagens acima de qualquer suspeita, e a fila da Odebrecht está longe de terminar. É triste, mas inevitável.
Até o ano que vem, com desculpas pelo pessimismo. A culpa é de 2016, de tantas perdas — Ferreira Gullar, dom Paulo Evaristo Arns, Villas-Bôas — para só falar dos que acabam de nos deixar.
De fato tirei (como vou tirar agora) e, quando voltei, tudo continuava do mesmo jeito ou pior. Hoje, estou temendo a repetição, porque, ao contrário do provérbio escatológico português, nem as moscas mudaram, a não ser uma ou outra. A m... é a mesma.
Continuamos nos perguntando se estamos vivendo a nossa pior crise. Não sei, mas com certeza é a mais completa e abrangente, pois atinge ao mesmo tempo a política (desmoralizada), a economia (rebaixada), o meio ambiente (enlameado) e a ética (ultrajada pela inversão total de valores).
Não parece que foi hoje? Só falta acrescentar o bate-boca público entre juízes do STF.
Para quem gosta de comparar, a diferença entre os anos de chumbo e os atuais é que aqueles eram mil vezes piores, mas era possível saber o que iria acontecer mais cedo ou mais tarde.
Não havia dúvida de que um dia a ditadura ia acabar. Agora, não dá para prever o que acontecerá quando o Natal passar, o carnaval chegar, a euforia acabar, e Câmara e Senado caírem de novo na real, ou na fantasia.
De sua parte, o prefeito Marcelo Crivella já tratou de prevenir dizendo que Deus vai ajudá-lo a “fazer o impossível”. Assim, se não fizer, a responsabilidade não será dele, mas da falta de ajuda.
Andamos falando mal de 2016 e dizendo que ele já vai tarde. O problema é que a crise não vai, parece permanente. A um ano ruim sucede um pior, e isso nos deixa inseguros em relação a 2017.
Pelo jeito, o futuro da política no Brasil pertence à Lava-Jato. Ninguém está livre dela, não há personagens acima de qualquer suspeita, e a fila da Odebrecht está longe de terminar. É triste, mas inevitável.
Até o ano que vem, com desculpas pelo pessimismo. A culpa é de 2016, de tantas perdas — Ferreira Gullar, dom Paulo Evaristo Arns, Villas-Bôas — para só falar dos que acabam de nos deixar.
Queixa de defunto
Antônio da Conceição, natural desta cidade, residente que foi em vida, a Boca do Mato, no Méier, onde acaba de morrer, por meios que não posso tornar público, mandou-me a carta abaixo que é endereçada ao prefeito. Ei-la:
"Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal. Sou um pobre homem que em vida nunca deu trabalho às autoridades públicas nem a elas fez reclamação alguma. Nunca exerci ou pretendi exercer isso que se chama os direitos sagrados de cidadão. Nasci, vivi e morri modestamente, julgando sempre que o meu único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os tivessem para eu lustrar e eu não.
Não fui republicano, não fui florianista, não fui custodista, não fui hermista, não me meti em greves, nem em cousa alguma de reivindicações e revoltas; mas morri na santa paz do Senhor quase sem pecados e sem agonia.
Nunca fui ao espiritismo, nunca fui aos “bíblias”, nem a feiticeiros, e apesar de ter tido um filho que penou dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei macumbeiros nem médiuns.
Vivi uma vida santa e obedecendo às prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração de Maria, em Todos os Santos, conquanto as não entendesse bem por serem pronunciadas com toda eloqüência em galego ou vasconço.
Segui--as, porém, com todo o rigor e humildade, e esperava gozar da mais dúlcida paz depois de minha morte. Morri afinal um dia destes. Não descrevo as cerimônias porque são muito conhecidas e os meus parentes e amigos deixaram-me sinceramente porque eu não deixava dinheiro algum. E bom, meu caro Senhor Doutor Prefeito, viver na pobreza, mas muito melhor é morrer nela. Não se levam para a cova maldições dos parentes e amigos deserdados; só carregamos lamentações e bênçãos daqueles a quem não pagamos mais a casa.
Foi o que aconteceu comigo e estava certo de ir direitinho para o Céu, quando, por culpa do Senhor e da Repartição que o Senhor dirige, tive que ir para o inferno penar alguns anos ainda.
Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanha mento tiveram que atravessar em toda a extensão a Rua José Bonifácio, em Todos os Santos.
Esta rua foi calçada há perto de cinqüenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e larguras, por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola sofre o diabo. De uma feita um até, após um trambolhão do carro mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto.
Comigo não aconteceu isso, mas o balanço violento do coche machucou-me muito e cheguei diante de São Pedro cheio de arranha duras pelo corpo. O bom do velho santo interpelou-me logo:
— Que diabo é isto? Você está todo machucado! Tinham-me dito que você era bem-comportado — como é então que você arranjou isso? Brigou depois de morto?
Expliquei-lhe, mas não me quis atender e mandou que me fosse purificar um pouco no inferno.
Está aí como, meu caro Senhor Doutor Prefeito, ainda estou penando por sua culpa, embora tenha tido vida a mais santa possível. Sou, etc., etc. Posso garantir a fidelidade da cópia a aguardar com paciência as providências da municipalidade."
"Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal. Sou um pobre homem que em vida nunca deu trabalho às autoridades públicas nem a elas fez reclamação alguma. Nunca exerci ou pretendi exercer isso que se chama os direitos sagrados de cidadão. Nasci, vivi e morri modestamente, julgando sempre que o meu único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os tivessem para eu lustrar e eu não.
Não fui republicano, não fui florianista, não fui custodista, não fui hermista, não me meti em greves, nem em cousa alguma de reivindicações e revoltas; mas morri na santa paz do Senhor quase sem pecados e sem agonia.
Cândido Portinari |
Toda a minha vida de privações e necessidades era guiada pela esperança de gozar depois de minha morte um sossego, uma calma de vida que não sou capaz de descrever, mas que pressenti pelo pensa mento, graças à doutrinação das seções católicas dos jornais.
Nunca fui ao espiritismo, nunca fui aos “bíblias”, nem a feiticeiros, e apesar de ter tido um filho que penou dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei macumbeiros nem médiuns.
Vivi uma vida santa e obedecendo às prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração de Maria, em Todos os Santos, conquanto as não entendesse bem por serem pronunciadas com toda eloqüência em galego ou vasconço.
Segui--as, porém, com todo o rigor e humildade, e esperava gozar da mais dúlcida paz depois de minha morte. Morri afinal um dia destes. Não descrevo as cerimônias porque são muito conhecidas e os meus parentes e amigos deixaram-me sinceramente porque eu não deixava dinheiro algum. E bom, meu caro Senhor Doutor Prefeito, viver na pobreza, mas muito melhor é morrer nela. Não se levam para a cova maldições dos parentes e amigos deserdados; só carregamos lamentações e bênçãos daqueles a quem não pagamos mais a casa.
Foi o que aconteceu comigo e estava certo de ir direitinho para o Céu, quando, por culpa do Senhor e da Repartição que o Senhor dirige, tive que ir para o inferno penar alguns anos ainda.
Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanha mento tiveram que atravessar em toda a extensão a Rua José Bonifácio, em Todos os Santos.
Esta rua foi calçada há perto de cinqüenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e larguras, por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola sofre o diabo. De uma feita um até, após um trambolhão do carro mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto.
Comigo não aconteceu isso, mas o balanço violento do coche machucou-me muito e cheguei diante de São Pedro cheio de arranha duras pelo corpo. O bom do velho santo interpelou-me logo:
— Que diabo é isto? Você está todo machucado! Tinham-me dito que você era bem-comportado — como é então que você arranjou isso? Brigou depois de morto?
Expliquei-lhe, mas não me quis atender e mandou que me fosse purificar um pouco no inferno.
Está aí como, meu caro Senhor Doutor Prefeito, ainda estou penando por sua culpa, embora tenha tido vida a mais santa possível. Sou, etc., etc. Posso garantir a fidelidade da cópia a aguardar com paciência as providências da municipalidade."
Lima Barreto (1881-1922)
Despautério
Quais as perspectivas que se apresentam ao país nesse momento em que se respira crise por todos os lados?
Há sinais para todos os gostos. Uns enxergam o país pegando fogo com multidões nas ruas clamando por mudanças: de sistema de governo, de política, de protagonistas. Outros não são tão catastróficos, detectando já no primeiro semestre de 2017 ligeira recuperação da economia e resgate da confiança de investidores. E há os incrédulos, aqueles que desfiam o mantra: “quanto mais muda mais fica a mesma coisa”.
No meio da algaravia que se forma, entre prestigitadores da palavra e senhoras de turbantes que lêem cartas e rodam bolas de cristal, figuras comuns em programas televisivos de fim de ano, emerge uma abordagem que merece reflexão por seu teor inusitado: “O Brasil precisa sair das mãos dos políticos”.
O autor dessa façanha, que soa mais como despautério do que tese acadêmica, é Roberto Justus, o garboso publicitário, mais conhecido pela performance no programa de televisão O Aprendiz, o mesmo que deu fama a Donald Trump, cujo alourado topete ocupará os espaços midiáticos nos próximos anos, eis que o bilionário comandará a maior democracia do mundo.
Para ser preciso (e justo) com o “Trump” de nossas bandas, que também carrega portentoso topete, devemos entender a frase dada em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo como boutade, uma tirada de efeito para chamar a atenção, algo muito comum do dandismo (o prazer de espantar) na política. E a razão é tão óbvia por se tratar de uma equação que não fecha.
A ideia de livrar o país da esfera dos políticos é a mesma coisa que desnaturar a política, descaracterizar a substância que a define – missão a serviço da polis -, conforme ensinaram Platão e Aristóteles, os pilares clássicos que sustentam o edifício da política.
As virtudes da temperança, da coragem e da sabedoria, na concepção platônica, são essenciais para a formação do Estado incorruptível, e inerentes aos escolhidos para fazer o Bem à coletividade. Já na visão aristotélica, o homem é, por natureza, um “animal político”, devendo, nessa condição, se estabelecer em função do Estado.
Os dois filósofos distinguiam nas virtudes do Homem uma forma de engrandecer o Estado. O despropósito da recomendação do publicitário que ensaia os primeiros passos na política – com vistas ao pleito de 2018, conforme ele próprio confessa – equivale a dizer: não se faz política com políticos ou, na mesma linha do paradoxo, o Estado não é coisa para políticos. Um disparate.
Demos outro sentido ao desastroso conceito do simpático publicitário: retiremos os políticos corruptos da esfera do Estado, limpemos a política de oportunistas, proxenetas, medíocres e trânsfugas da moral.
Sob essa linha de raciocínio, pode-se, até, concordar com ele. Afinal, como parafraseia José Ingenieros, em seu livro O Homem Medíocre, “cem políticos torpes, juntos, não valem um estadista genial... e políticos sem ideal marcam o zero absoluto nos termômetros da história”.
Mas o combate às mazelas que assolam a política, principalmente dentro de nossa cultura patrimonialista, não pode ser simplesmente trocado pela extinção da classe política.
Nesse caso, a quem o ex-apresentador entregaria as rédeas do Estado, seja na área da governança seja no âmbito da representação política?
Lembremos que os nossos representantes provêm de profissões diversas. São engenheiros, advogados, empresários, médicos, dentistas, agricultores, comerciantes, religiosos, metalúrgicos etc. Ao ingressarem no campo político-partidário, ganham o epíteto de políticos, sem, contudo, eliminarem das identidades a profissão original.
Nesse ponto, convém dizer que política é missão, não profissão. Teria esse sentido a reprimenda do empresário Roberto Justus? Se for assim, não há razão para contrariá-la.
Outro aspecto a considerar é que os profissionais de todas as áreas, ao adentrarem o terreno político, hão de se inteirar e se debruçar sobre todas as temáticas de interesse da comunidade nacional. Mesmo considerando a tendência de expansão de bancadas corporativas – ruralistas, religiosos, advogados, médicos - , na corrente de especialização que se espraia pela sociedade, os representantes nas casas congressuais se obrigam a defender as demandas do Todo e não apenas de uma de suas partes.
Enfim, por qualquer ângulo que se queira examinar, a tese de retirar o Brasil das mãos de políticos é coisa tão extravagante que chega a parecer piada mal contada.
Donald Trump ganhou o pleito nos EUA sem ser político? Ora, no momento em que decidiu se candidatar, teve de ser endossado por um partido político, ganhar prévias e discorrer sobre temas de interesse da Nação. Não era, até então, político, mas decidiu sê-lo. E irá conviver com política em todos os momentos de seu governo.
João Dória se elegeu prefeito de São Paulo martelando a ideia de não ser político e sob o refrão da boa gestão? Previsível. A comunidade dá as costas à velha política, com suas promessas mirabolantes, negócios escusos, representantes que aparecem perante o eleitor apenas no período eleitoral, roubalheira, corrupção etc.
Perfis imunes, diferentes, sem cargas de denúncias sobre os ombros, entram bem no figurino da atualidade. Ainda mais quando simbolizam ideários de grupos insatisfeitos, populações empobrecidas, núcleos conservadores (como foi o caso de Trump nos EUA) ou eleitores revoltados com a desorganização da cidade e indignação contra um partido identificado com o status quo (caso de Doria).
Conforme-se, sr. Justus, o Brasil não se afastará dos políticos. Mas as perspectivas apontam para a abertura de um ciclo mais racional na forma de praticar a política, com maior transparência e controles mais duros na administração pública. E, atenção, com menos firulas publicitárias, essas que engabelam o eleitorado, tentando inverter os territórios do bem e do mal e histórias de bandidos que se fazem de mocinhos e vice-versa.
Há sinais para todos os gostos. Uns enxergam o país pegando fogo com multidões nas ruas clamando por mudanças: de sistema de governo, de política, de protagonistas. Outros não são tão catastróficos, detectando já no primeiro semestre de 2017 ligeira recuperação da economia e resgate da confiança de investidores. E há os incrédulos, aqueles que desfiam o mantra: “quanto mais muda mais fica a mesma coisa”.
No meio da algaravia que se forma, entre prestigitadores da palavra e senhoras de turbantes que lêem cartas e rodam bolas de cristal, figuras comuns em programas televisivos de fim de ano, emerge uma abordagem que merece reflexão por seu teor inusitado: “O Brasil precisa sair das mãos dos políticos”.
O autor dessa façanha, que soa mais como despautério do que tese acadêmica, é Roberto Justus, o garboso publicitário, mais conhecido pela performance no programa de televisão O Aprendiz, o mesmo que deu fama a Donald Trump, cujo alourado topete ocupará os espaços midiáticos nos próximos anos, eis que o bilionário comandará a maior democracia do mundo.
Para ser preciso (e justo) com o “Trump” de nossas bandas, que também carrega portentoso topete, devemos entender a frase dada em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo como boutade, uma tirada de efeito para chamar a atenção, algo muito comum do dandismo (o prazer de espantar) na política. E a razão é tão óbvia por se tratar de uma equação que não fecha.
A ideia de livrar o país da esfera dos políticos é a mesma coisa que desnaturar a política, descaracterizar a substância que a define – missão a serviço da polis -, conforme ensinaram Platão e Aristóteles, os pilares clássicos que sustentam o edifício da política.
As virtudes da temperança, da coragem e da sabedoria, na concepção platônica, são essenciais para a formação do Estado incorruptível, e inerentes aos escolhidos para fazer o Bem à coletividade. Já na visão aristotélica, o homem é, por natureza, um “animal político”, devendo, nessa condição, se estabelecer em função do Estado.
Os dois filósofos distinguiam nas virtudes do Homem uma forma de engrandecer o Estado. O despropósito da recomendação do publicitário que ensaia os primeiros passos na política – com vistas ao pleito de 2018, conforme ele próprio confessa – equivale a dizer: não se faz política com políticos ou, na mesma linha do paradoxo, o Estado não é coisa para políticos. Um disparate.
Demos outro sentido ao desastroso conceito do simpático publicitário: retiremos os políticos corruptos da esfera do Estado, limpemos a política de oportunistas, proxenetas, medíocres e trânsfugas da moral.
Sob essa linha de raciocínio, pode-se, até, concordar com ele. Afinal, como parafraseia José Ingenieros, em seu livro O Homem Medíocre, “cem políticos torpes, juntos, não valem um estadista genial... e políticos sem ideal marcam o zero absoluto nos termômetros da história”.
Mas o combate às mazelas que assolam a política, principalmente dentro de nossa cultura patrimonialista, não pode ser simplesmente trocado pela extinção da classe política.
Nesse caso, a quem o ex-apresentador entregaria as rédeas do Estado, seja na área da governança seja no âmbito da representação política?
Lembremos que os nossos representantes provêm de profissões diversas. São engenheiros, advogados, empresários, médicos, dentistas, agricultores, comerciantes, religiosos, metalúrgicos etc. Ao ingressarem no campo político-partidário, ganham o epíteto de políticos, sem, contudo, eliminarem das identidades a profissão original.
Nesse ponto, convém dizer que política é missão, não profissão. Teria esse sentido a reprimenda do empresário Roberto Justus? Se for assim, não há razão para contrariá-la.
Outro aspecto a considerar é que os profissionais de todas as áreas, ao adentrarem o terreno político, hão de se inteirar e se debruçar sobre todas as temáticas de interesse da comunidade nacional. Mesmo considerando a tendência de expansão de bancadas corporativas – ruralistas, religiosos, advogados, médicos - , na corrente de especialização que se espraia pela sociedade, os representantes nas casas congressuais se obrigam a defender as demandas do Todo e não apenas de uma de suas partes.
Enfim, por qualquer ângulo que se queira examinar, a tese de retirar o Brasil das mãos de políticos é coisa tão extravagante que chega a parecer piada mal contada.
Donald Trump ganhou o pleito nos EUA sem ser político? Ora, no momento em que decidiu se candidatar, teve de ser endossado por um partido político, ganhar prévias e discorrer sobre temas de interesse da Nação. Não era, até então, político, mas decidiu sê-lo. E irá conviver com política em todos os momentos de seu governo.
João Dória se elegeu prefeito de São Paulo martelando a ideia de não ser político e sob o refrão da boa gestão? Previsível. A comunidade dá as costas à velha política, com suas promessas mirabolantes, negócios escusos, representantes que aparecem perante o eleitor apenas no período eleitoral, roubalheira, corrupção etc.
Perfis imunes, diferentes, sem cargas de denúncias sobre os ombros, entram bem no figurino da atualidade. Ainda mais quando simbolizam ideários de grupos insatisfeitos, populações empobrecidas, núcleos conservadores (como foi o caso de Trump nos EUA) ou eleitores revoltados com a desorganização da cidade e indignação contra um partido identificado com o status quo (caso de Doria).
Conforme-se, sr. Justus, o Brasil não se afastará dos políticos. Mas as perspectivas apontam para a abertura de um ciclo mais racional na forma de praticar a política, com maior transparência e controles mais duros na administração pública. E, atenção, com menos firulas publicitárias, essas que engabelam o eleitorado, tentando inverter os territórios do bem e do mal e histórias de bandidos que se fazem de mocinhos e vice-versa.
Congresso já sente o cheiro das quentinhas de Curitiba...
Um dos maiores problemas do Brasil é que nunca corruptos poderosos tiveram medo de cadeia. A reação cangaceira no Senado de Renan Calheiros (codinome “Justiça” na planilha de corrupção da Odebrecht) e na Câmara de Rodrigo Maia (o “Botafogo”) contra a Lava Jato são tentativas desesperadas de voltar a esse passado.
A Lava Jato é hoje o único elemento integrador do país depois das mentiras e da recessão de Dilma Rousseff, da posse de um Temer suspeito e de seu gabinete podre e das demonstrações de corporativismo retrógrado do Congresso, com um batalhão de clientes do departamento de “operações estruturadas” da Odebrecht.
A Lava Jato é hoje o único elemento integrador do país depois das mentiras e da recessão de Dilma Rousseff, da posse de um Temer suspeito e de seu gabinete podre e das demonstrações de corporativismo retrógrado do Congresso, com um batalhão de clientes do departamento de “operações estruturadas” da Odebrecht.
A ordem do ministro do Supremo Luiz Fux para que a Câmara volte à estaca zero na análise do pacote de dez medidas contra a corrupção desfigurado pelos parlamentares pode parecer intromissão na “independência” de um Legislativo dependente de uma empreiteira.
Mas ela vai ao encontro do anseio das 2 milhões de assinaturas que apoiam as medidas. Assim como de outros milhões que protestaram nas ruas pela punição de corruptos e corruptores nos últimos meses.
Hoje temos, entre outros, Sérgio Cabral, José Dirceu, Antonio Palocci, Eduardo Cunha e Marcelo Odebrecht presos. As provas contra eles até aqui se mostraram irrefutáveis.
Renan “Justiça” ainda não foi condenado a nada. Mas age como se estivesse sentindo o cheiro das quentinhas ao querer intimidar os procuradores com tentativas de puni-los por abuso de poder. O projeto seria legítimo não fosse patrocinado pelo próprio Renan. E agora? Quem não deve não deveria temer, certo?
Denunciado na Lava Jato e alvo de outros 11 inquéritos diversos, o presidente do Senado tenta suas últimas cartadas para se proteger e angariar o apoio da turma de citados na operação.
Nas próximas semanas assistiremos ao “espetáculo do desespero”. Quando mais e mais delações mostrarem como uma empreiteira mandava no país financiando campanhas e a vida desses citados.
Com sua dinâmica própria, apoio popular e dezenas de delatores já pegos no anzol, a Lava Jato mostra ser cada vez menos provável que protelações e esperneio geral livrem seus investigados. Assim como não livrou, no final, o chefe da gangue, Marcelo Odebrecht.
Dizem que gênio solto jamais retorna à lâmpada. A Lava Jato está no caminho de confirmar essa regra.
Mas ela vai ao encontro do anseio das 2 milhões de assinaturas que apoiam as medidas. Assim como de outros milhões que protestaram nas ruas pela punição de corruptos e corruptores nos últimos meses.
Hoje temos, entre outros, Sérgio Cabral, José Dirceu, Antonio Palocci, Eduardo Cunha e Marcelo Odebrecht presos. As provas contra eles até aqui se mostraram irrefutáveis.
Renan “Justiça” ainda não foi condenado a nada. Mas age como se estivesse sentindo o cheiro das quentinhas ao querer intimidar os procuradores com tentativas de puni-los por abuso de poder. O projeto seria legítimo não fosse patrocinado pelo próprio Renan. E agora? Quem não deve não deveria temer, certo?
Denunciado na Lava Jato e alvo de outros 11 inquéritos diversos, o presidente do Senado tenta suas últimas cartadas para se proteger e angariar o apoio da turma de citados na operação.
Nas próximas semanas assistiremos ao “espetáculo do desespero”. Quando mais e mais delações mostrarem como uma empreiteira mandava no país financiando campanhas e a vida desses citados.
Com sua dinâmica própria, apoio popular e dezenas de delatores já pegos no anzol, a Lava Jato mostra ser cada vez menos provável que protelações e esperneio geral livrem seus investigados. Assim como não livrou, no final, o chefe da gangue, Marcelo Odebrecht.
Dizem que gênio solto jamais retorna à lâmpada. A Lava Jato está no caminho de confirmar essa regra.
Pacotinho para as elites
É preciso aguardar a reação das centrais sindicais, dos grandes sindicatos e dos partidos e entidades voltadas para o trabalhador. Só então saberemos se o pacotinho de bondades anunciado quinta-feira pelo governo foi nova manifestação dos donos do poder em favor das elites e das empresas, de preferência as grandes.
Porque em se tratando do trabalhador, nem paliativos. Nada com relação ao combate ao desemprego que atinge muito mais do que 12 milhões de pessoas.
Acesso mais fácil ao crédito dos que já se valem dele; abatimento e refinanciamento de dívidas empresariais e de valores devidos a prejuízos eliminação de multas no caso de demissões sem justa causa; cobrança de preços diversificados nas compras com cartão de crédito e outras iniciativas que, com muita justiça, contemplarão o capital no meio da crise. Agora, para o trabalho, nada.
É esse o retrato da administração Temer que dia a dia perde índices de popularidade. Levaram sete meses na gestação desse pacotinho que só irá favorecer as elites, mas nenhuma menção à abertura de frentes de trabalho para criar novos empregos.
Dirão os inocentes que a melhoria da situação das empresas, com o tempo, levará à diminuição do desemprego, o que é verdade. Mas essa equação capenga o palácio do Planalto continuará devendo aos que mais necessitam de ajuda no país. Ajuda imediata, por sinal.
Lamenta-se o silêncio do PT e penduricalhos. Pode ser estarem dedicando o fim de semana à exegese mais profunda das medidas anunciadas. Também pode ser que não.
Porque em se tratando do trabalhador, nem paliativos. Nada com relação ao combate ao desemprego que atinge muito mais do que 12 milhões de pessoas.
É esse o retrato da administração Temer que dia a dia perde índices de popularidade. Levaram sete meses na gestação desse pacotinho que só irá favorecer as elites, mas nenhuma menção à abertura de frentes de trabalho para criar novos empregos.
Dirão os inocentes que a melhoria da situação das empresas, com o tempo, levará à diminuição do desemprego, o que é verdade. Mas essa equação capenga o palácio do Planalto continuará devendo aos que mais necessitam de ajuda no país. Ajuda imediata, por sinal.
Lamenta-se o silêncio do PT e penduricalhos. Pode ser estarem dedicando o fim de semana à exegese mais profunda das medidas anunciadas. Também pode ser que não.
O homem que acende o cigarro em ônibus em chamas somos todos nós em 2016
Em 2016, muitas coisas aconteceram no Brasil. Foi destituída a presidenta e muito poucos sabem explicar por quais delitos exatamente; houve Jogos Olímpicos. Caiu um avião com uma equipe de futebol dentro. O novo Governo deu luz verde à austeridade mais crua; e, em outra ordem de coisas, a filha de Xuxa, Sasha, concedeu sua primeira entrevista à TV. Mas nenhum destes eventos resultou em uma imagem tão popular como a captada na terça-feira, 13, pelo fotógrafo Adriano Machado em Brasília.
Nela se pode ver um ônibus em chamas, resultado do enésimo enfrentamento entre a polícia e manifestantes neste ano, e, ao lado dele, um despreocupado homem, vamos chamá-lo de Sr. Passava por Aqui, que aproveita o fogo que sai do veículo para acender um cigarro.
A imagem foi vendida para a Reuters, que a publicou em uma de suas páginas no Facebook, onde até o momento foi compartilhada 4.500 vezes. Como observa um dos comentários com mais curtidas: “É como uma tela de videogame com Sim City, mas controlado por um psicopata. Ou seja, um resumo muito bom de 2016”.
O próprio fotógrafo tem dificuldade para explicar o que seus olhos viram. “Geralmente, pelo meu trabalho na Reuters, cubro muito política: e este ano isto significa que também cubro muitos protestos, onde se veem muitas coisas”, explica por telefone a EL PAÍS, na saída do Palácio do Planalto.
O 13 de dezembro foi um desses dias: o Senado aprovou, com pouco mais que os votos mínimos necessários, a PEC 55, o primeiro grande pacote de austeridade do novo Governo, que estabelece um teto para os gastos públicos durante os próximos 20 anos. Em um país em que a Constituição definia até agora um mínimo, e não um teto, para esse tipo de gastos, isso representa uma mudança fundamental: a manifestação que resultou disso foi especialmente destrutiva. “Vi muitos manifestantes mascarados que se dirigiam à Esplanada romperem uma barreira policial. Fui nessa direção e comecei a notar muito barulho, muitas bombas e muita fumaça. Ouvi os bombeiros. Vi uma torre de fumaça preta e a segui: vi que saía de um ônibus”, prossegue Machado. E logo chegou o Sr. Passava por Aqui.
“Não tinha nem ideia de onde esse homem saiu, mas ali estava. Todo tranquilo, despreocupado, de cara limpa, sem máscara, apesar das bombas de gás e do cheiro de plástico queimado. Como se nada fosse com ele. Eu não acreditava”, explica Machado. “Depois me dei conta de que o sujeito estava com os manifestantes, mas sua aparência sem dúvida não parece a de alguém que está aí para alguma coisa”.
A fotografia do homem andando ao lado do ônibus em chamas para acender o cigarro logo se tornou facilmente compartilhada nas redes sociais. “Acho que é pela combinação: a explosão é agressiva e o homem está tranquilo”, explica Machado. Para uns, é o resumo visual de 2016, o ano que saiu do avesso, rompeu tudo e nos deixou para que nos virássemos. Para outros, é o cúmulo do cool. Para os compatriotas de Mr. Passava por Aqui, é um símbolo da capacidade dos brasileiros de tirar proveito de qualquer situação, até das desgraças.
Em um tuíte com mais de 10.000 retuítes, que mostra a imagem, está escrito: “Um dia eu quero ser tão descolado quanto esse cara acendendo o cigarro nas chamas dum ônibus queimado por manifestantes ontem em Brasília”. Machado acha que a foto tem algo de metafórico, mas não sabe dizer muito bem o quê: “Parece lembrar que tudo chega, até para as pessoas que não se importam com nada, e que tudo passa”.
Nela se pode ver um ônibus em chamas, resultado do enésimo enfrentamento entre a polícia e manifestantes neste ano, e, ao lado dele, um despreocupado homem, vamos chamá-lo de Sr. Passava por Aqui, que aproveita o fogo que sai do veículo para acender um cigarro.
A imagem foi vendida para a Reuters, que a publicou em uma de suas páginas no Facebook, onde até o momento foi compartilhada 4.500 vezes. Como observa um dos comentários com mais curtidas: “É como uma tela de videogame com Sim City, mas controlado por um psicopata. Ou seja, um resumo muito bom de 2016”.
O próprio fotógrafo tem dificuldade para explicar o que seus olhos viram. “Geralmente, pelo meu trabalho na Reuters, cubro muito política: e este ano isto significa que também cubro muitos protestos, onde se veem muitas coisas”, explica por telefone a EL PAÍS, na saída do Palácio do Planalto.
O 13 de dezembro foi um desses dias: o Senado aprovou, com pouco mais que os votos mínimos necessários, a PEC 55, o primeiro grande pacote de austeridade do novo Governo, que estabelece um teto para os gastos públicos durante os próximos 20 anos. Em um país em que a Constituição definia até agora um mínimo, e não um teto, para esse tipo de gastos, isso representa uma mudança fundamental: a manifestação que resultou disso foi especialmente destrutiva. “Vi muitos manifestantes mascarados que se dirigiam à Esplanada romperem uma barreira policial. Fui nessa direção e comecei a notar muito barulho, muitas bombas e muita fumaça. Ouvi os bombeiros. Vi uma torre de fumaça preta e a segui: vi que saía de um ônibus”, prossegue Machado. E logo chegou o Sr. Passava por Aqui.
“Não tinha nem ideia de onde esse homem saiu, mas ali estava. Todo tranquilo, despreocupado, de cara limpa, sem máscara, apesar das bombas de gás e do cheiro de plástico queimado. Como se nada fosse com ele. Eu não acreditava”, explica Machado. “Depois me dei conta de que o sujeito estava com os manifestantes, mas sua aparência sem dúvida não parece a de alguém que está aí para alguma coisa”.
A fotografia do homem andando ao lado do ônibus em chamas para acender o cigarro logo se tornou facilmente compartilhada nas redes sociais. “Acho que é pela combinação: a explosão é agressiva e o homem está tranquilo”, explica Machado. Para uns, é o resumo visual de 2016, o ano que saiu do avesso, rompeu tudo e nos deixou para que nos virássemos. Para outros, é o cúmulo do cool. Para os compatriotas de Mr. Passava por Aqui, é um símbolo da capacidade dos brasileiros de tirar proveito de qualquer situação, até das desgraças.
Em um tuíte com mais de 10.000 retuítes, que mostra a imagem, está escrito: “Um dia eu quero ser tão descolado quanto esse cara acendendo o cigarro nas chamas dum ônibus queimado por manifestantes ontem em Brasília”. Machado acha que a foto tem algo de metafórico, mas não sabe dizer muito bem o quê: “Parece lembrar que tudo chega, até para as pessoas que não se importam com nada, e que tudo passa”.
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