terça-feira, 8 de outubro de 2024
A boa ajuda
Ninguém é responsável sozinho pelas misérias do mundo. Não contribuir para agravá-las já é boa ajudaJosé J. Veiga, "Objetos turbulentos"
Em Gaza, um ano de guerra gerou traumas e ruínas
"Em 7 de outubro, acordamos com o som de foguetes. O som era terrível, a situação era terrível, aí começamos a assistir ao noticiário e ficamos sabendo o que havia acontecido", relata Warda Younis por mensagem de texto, do norte de Gaza. "Daquele dia em diante, o medo mais profundo começou e nunca mais foi embora."
Desde os ataques do Hamas ao sul de Israel em 2023, nada mais foi o mesmo para os residentes da Faixa de Gaza. Até então, Israel e Egito controlavam rigidamente as fronteiras do enclave. Porém na madrugada de 7 de outubro, militantes liderados pelo Hamas lançaram mísseis e romperam as cercas da fronteira, invadindo comunidades e bases militares no sul de Israel.
Cerca de 1.200 morreram no ataque, e os radicais levaram 250 reféns para Gaza. Os militares israelenses retaliaram no mesmo dia, com pesados ataques aéreos e de artilharia em todo o enclave palestino.
"Perdi minha melhor amiga no terceiro dia da guerra. A casa dela foi completamente bombardeada, e eu me lembro que fiquei tão chocada, mentalmente esgotada", conta Younis, que morava no sétimo andar de um prédio de apartamentos do bairro de Sheikh Radwan, no norte da Cidade de Gaza.
Gaza está familiarizada com o conflito. Israel e o Hamas já travaram quatro guerras desde 2007, quando o grupo tomou o poder da Autoridade Palestina. Ainda assim, muitos não esperavam que a atual durasse tanto tempo e fosse tão devastadora.
De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, que não faz distinção entre civis e combatentes, mais de 41,4 mil foram mortos no enclave no último ano. Outros 96 mil ficaram feridos, e pelo menos 10 mil estão desaparecidos.
Os suprimentos de Gaza se esgotaram rapidamente nas primeiras semanas da guerra, quando Israel impôs cerco total. Durante meses, as Nações Unidas chamaram a atenção para o alerta de agências de ajuda humanitária sobre a fome iminente no norte de Gaza, o que foi desconsiderado por Israel.
Younis que não conseguiu encontrar farinha nem pão durante esse período. "Chegamos ao ponto de comer folhas de árvores e grama. Nunca na vida imaginamos que fosse possível comer isso."
Quando os primeiros comboios de ajuda chegaram ao norte, ela testemunhou disputas por comida e itens básicos que terminaram em violência e morte. Durante um tempo, organizações voltaram a realizar lançamentos aéreos, pois a pressão internacional não bastou para convencer Israel a abrir mais passagens para a entrega de ajuda.
"Eu costumava ir ao local onde a ajuda era lançada de balões todos os dias", relata Younis. "Eu corria para pegar alguma coisa, e no fim não conseguia nada, porque tinha bandidos controlando tudo." A disponibilidade de alimentos melhorou desde então, mas para ela o medo e a exposição diária à morte permanecem.
Nos últimos 12 meses, Younis e seus três filhos adolescentes foram deslocados nove vezes. Como muitos outros em Gaza, ela perdeu a noção do tempo enquanto buscava refúgio constantemente.
Em meados de outubro de 2023, as Forças Armadas israelenses ordenaram que os habitantes do norte de Gaza se deslocassem para o sul. Mas Younis decidiu permanecer, apesar de ter membros da família para acomodá-la e a seus filhos na cidade de Khan Younis, a cerca de oito quilômetros da fronteira de Gaza com o Egito.
O norte de Gaza agora está quase totalmente isolado do corredor Netzarim, uma estrada com postos de controle militares tripulados por Israel. A maioria dos 2,2 milhões de habitantes do enclave está agora desalojada, amontoada no sul de Gaza, e muitos dependem de assistência e de instituições de caridade, segundo as agências competentes.
Amjad Shawa sempre trabalhou no setor humanitário como chefe do grupo PNGO, que representa ONGs palestinas. Depois de ser evacuado, ele montou um novo escritório em Deir al-Balah, na região central de Gaza, como um centro para as agências de ajuda se reunirem, terem acesso à internet e um teto sob o qual trabalhar. Como muitos outros palestinos em Gaza, ele não queria deixar sua casa e seu escritório na Cidade de Gaza, quando chegaram as ordens de evacuação do Exército israelense, em 13 de outubro.
"Hesitei em sair, mas fomos sob a pressão da minha família. Eu disse a eles que seria apenas por algumas horas e que voltaríamos. Não levei nada de casa. Essas poucas horas, esses poucos dias se tornaram um ano agora."
O assistente social estima que haja cerca de 1 milhão de alojados em Deir al-Balah, muitos vivendo em tendas ou abrigos improvisados com lonas e plásticos. Outros encontraram apartamentos ou estão hospedados na casa de parentes.
"Posso ver isso nos rostos deles. A maioria está profundamente traumatizada. Elas perderam tudo. Muita gente perdeu entes queridos. A maioria perdeu sua renda, suas casas."
Shawa crê que muitos querem retornar para o norte de Gaza, mesmo que suas casas tenham desaparecido, mas isso depende de um acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas.
Ser um funcionário humanitário em Gaza é arriscado, afirma Shawa. Muitos morreram tentando ajudar outros necessitados ou perderam entes queridos: "Não podemos 'lidar' com isso. E na ausência de qualquer horizonte, às vezes é preciso criar alguma esperança para quem está ao redor."
Para ele, a Gaza onde nasceu e cresceu não existe mais. Mais de 60% das casas do território, já danificadas por guerras anteriores, sofreram novos danos no conflito atual. Escolas, hospitais e empresas também estão em ruínas. As Nações Unidas estimam que os ataques aéreos israelenses e os combates terrestres produziram 40 milhões de toneladas de entulho no território.
O assistente social destaca que muitos perderam a fé na ajuda de outros países e de organizações globais: "O que estamos testemunhando também se deve ao fracasso da comunidade internacional em acabar com essa guerra ou, pelo menos, em proteger os civis."
Rita Abu Sido e sua família não tinham essa proteção. Os primeiros meses da guerra continuam sendo um borrão para a jovem de 27 anos. Agora, ela está no Egito com sua irmã, Farah, recebem tratamento médico para ferimentos complexos sofridos em Gaza. Elas são as únicas sobreviventes do núcleo de sua família.
"O bombardeio aconteceu à meia-noite de 31 de outubro. Eu estava acordada e disse à minha irmã Farah que poderíamos morrer. Ela se lembra de tudo. Eu só sonho com isso", conta Rita por telefone, do Cairo.
A mãe de Abu Sido, suas duas irmãs mais novas, de 16 e 15 anos, e seu irmão mais novo, de 13, morreram naquela noite em Rimal, no centro da Cidade de Gaza. Ela e a irmã, uma comissária de bordo estagiária que estava visitando Gaza quando a guerra começou, foram levadas para o principal hospital de cidade, o Shifa, sem identificação.
Abu Sido sofreu convulsão pulmonar e queimaduras de terceiro grau, sua irmã teve a pélvis quebrada e ferimentos na coluna vertebral. Com a aproximação dos combates e devido à gravidade dos ferimentos, ambas foram transferidas para o Hospital Europeu em Khan Younis.
"Fiquei mal psicologicamente. depois que soube da perda de toda a minha família. Levei tempo para entender a localidade e a situação. Fiquei agressiva e nervosa."
Com a ajuda de amigos da família, em fevereiro as irmãs conseguiram sair de Gaza pela passagem de Rafah, para tratamento médico e reabilitação no Egito. Abu Sido está recuperando a voz, que perdeu por algum tempo, e sua irmã está fazendo fisioterapia. Mas ela crê que o trauma de perder a família a perseguirá pelo resto da vida.
Embora estejam seguras no Egito, sua situação é precária. A maioria dos habitantes de Gaza que conseguiu escapar para o país vizinho não tem status legal e depende do apoio de parentes ou de instituições de caridade.
Ainda não se sabe se Abu Sido poderá retornar a Gaza: é uma decisão política sobre a qual ela não tem controle. "Voltar a Gaza parece ser um desafio. Levará tempo. A próxima geração, a nossa geração, precisa ter a vontade de reconstruir."
Desde os ataques do Hamas ao sul de Israel em 2023, nada mais foi o mesmo para os residentes da Faixa de Gaza. Até então, Israel e Egito controlavam rigidamente as fronteiras do enclave. Porém na madrugada de 7 de outubro, militantes liderados pelo Hamas lançaram mísseis e romperam as cercas da fronteira, invadindo comunidades e bases militares no sul de Israel.
Cerca de 1.200 morreram no ataque, e os radicais levaram 250 reféns para Gaza. Os militares israelenses retaliaram no mesmo dia, com pesados ataques aéreos e de artilharia em todo o enclave palestino.
"Perdi minha melhor amiga no terceiro dia da guerra. A casa dela foi completamente bombardeada, e eu me lembro que fiquei tão chocada, mentalmente esgotada", conta Younis, que morava no sétimo andar de um prédio de apartamentos do bairro de Sheikh Radwan, no norte da Cidade de Gaza.
Gaza está familiarizada com o conflito. Israel e o Hamas já travaram quatro guerras desde 2007, quando o grupo tomou o poder da Autoridade Palestina. Ainda assim, muitos não esperavam que a atual durasse tanto tempo e fosse tão devastadora.
De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, que não faz distinção entre civis e combatentes, mais de 41,4 mil foram mortos no enclave no último ano. Outros 96 mil ficaram feridos, e pelo menos 10 mil estão desaparecidos.
Os suprimentos de Gaza se esgotaram rapidamente nas primeiras semanas da guerra, quando Israel impôs cerco total. Durante meses, as Nações Unidas chamaram a atenção para o alerta de agências de ajuda humanitária sobre a fome iminente no norte de Gaza, o que foi desconsiderado por Israel.
Younis que não conseguiu encontrar farinha nem pão durante esse período. "Chegamos ao ponto de comer folhas de árvores e grama. Nunca na vida imaginamos que fosse possível comer isso."
Quando os primeiros comboios de ajuda chegaram ao norte, ela testemunhou disputas por comida e itens básicos que terminaram em violência e morte. Durante um tempo, organizações voltaram a realizar lançamentos aéreos, pois a pressão internacional não bastou para convencer Israel a abrir mais passagens para a entrega de ajuda.
"Eu costumava ir ao local onde a ajuda era lançada de balões todos os dias", relata Younis. "Eu corria para pegar alguma coisa, e no fim não conseguia nada, porque tinha bandidos controlando tudo." A disponibilidade de alimentos melhorou desde então, mas para ela o medo e a exposição diária à morte permanecem.
Nos últimos 12 meses, Younis e seus três filhos adolescentes foram deslocados nove vezes. Como muitos outros em Gaza, ela perdeu a noção do tempo enquanto buscava refúgio constantemente.
Em meados de outubro de 2023, as Forças Armadas israelenses ordenaram que os habitantes do norte de Gaza se deslocassem para o sul. Mas Younis decidiu permanecer, apesar de ter membros da família para acomodá-la e a seus filhos na cidade de Khan Younis, a cerca de oito quilômetros da fronteira de Gaza com o Egito.
O norte de Gaza agora está quase totalmente isolado do corredor Netzarim, uma estrada com postos de controle militares tripulados por Israel. A maioria dos 2,2 milhões de habitantes do enclave está agora desalojada, amontoada no sul de Gaza, e muitos dependem de assistência e de instituições de caridade, segundo as agências competentes.
Amjad Shawa sempre trabalhou no setor humanitário como chefe do grupo PNGO, que representa ONGs palestinas. Depois de ser evacuado, ele montou um novo escritório em Deir al-Balah, na região central de Gaza, como um centro para as agências de ajuda se reunirem, terem acesso à internet e um teto sob o qual trabalhar. Como muitos outros palestinos em Gaza, ele não queria deixar sua casa e seu escritório na Cidade de Gaza, quando chegaram as ordens de evacuação do Exército israelense, em 13 de outubro.
"Hesitei em sair, mas fomos sob a pressão da minha família. Eu disse a eles que seria apenas por algumas horas e que voltaríamos. Não levei nada de casa. Essas poucas horas, esses poucos dias se tornaram um ano agora."
O assistente social estima que haja cerca de 1 milhão de alojados em Deir al-Balah, muitos vivendo em tendas ou abrigos improvisados com lonas e plásticos. Outros encontraram apartamentos ou estão hospedados na casa de parentes.
"Posso ver isso nos rostos deles. A maioria está profundamente traumatizada. Elas perderam tudo. Muita gente perdeu entes queridos. A maioria perdeu sua renda, suas casas."
Shawa crê que muitos querem retornar para o norte de Gaza, mesmo que suas casas tenham desaparecido, mas isso depende de um acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas.
Ser um funcionário humanitário em Gaza é arriscado, afirma Shawa. Muitos morreram tentando ajudar outros necessitados ou perderam entes queridos: "Não podemos 'lidar' com isso. E na ausência de qualquer horizonte, às vezes é preciso criar alguma esperança para quem está ao redor."
Para ele, a Gaza onde nasceu e cresceu não existe mais. Mais de 60% das casas do território, já danificadas por guerras anteriores, sofreram novos danos no conflito atual. Escolas, hospitais e empresas também estão em ruínas. As Nações Unidas estimam que os ataques aéreos israelenses e os combates terrestres produziram 40 milhões de toneladas de entulho no território.
O assistente social destaca que muitos perderam a fé na ajuda de outros países e de organizações globais: "O que estamos testemunhando também se deve ao fracasso da comunidade internacional em acabar com essa guerra ou, pelo menos, em proteger os civis."
Rita Abu Sido e sua família não tinham essa proteção. Os primeiros meses da guerra continuam sendo um borrão para a jovem de 27 anos. Agora, ela está no Egito com sua irmã, Farah, recebem tratamento médico para ferimentos complexos sofridos em Gaza. Elas são as únicas sobreviventes do núcleo de sua família.
"O bombardeio aconteceu à meia-noite de 31 de outubro. Eu estava acordada e disse à minha irmã Farah que poderíamos morrer. Ela se lembra de tudo. Eu só sonho com isso", conta Rita por telefone, do Cairo.
A mãe de Abu Sido, suas duas irmãs mais novas, de 16 e 15 anos, e seu irmão mais novo, de 13, morreram naquela noite em Rimal, no centro da Cidade de Gaza. Ela e a irmã, uma comissária de bordo estagiária que estava visitando Gaza quando a guerra começou, foram levadas para o principal hospital de cidade, o Shifa, sem identificação.
Abu Sido sofreu convulsão pulmonar e queimaduras de terceiro grau, sua irmã teve a pélvis quebrada e ferimentos na coluna vertebral. Com a aproximação dos combates e devido à gravidade dos ferimentos, ambas foram transferidas para o Hospital Europeu em Khan Younis.
"Fiquei mal psicologicamente. depois que soube da perda de toda a minha família. Levei tempo para entender a localidade e a situação. Fiquei agressiva e nervosa."
Com a ajuda de amigos da família, em fevereiro as irmãs conseguiram sair de Gaza pela passagem de Rafah, para tratamento médico e reabilitação no Egito. Abu Sido está recuperando a voz, que perdeu por algum tempo, e sua irmã está fazendo fisioterapia. Mas ela crê que o trauma de perder a família a perseguirá pelo resto da vida.
Embora estejam seguras no Egito, sua situação é precária. A maioria dos habitantes de Gaza que conseguiu escapar para o país vizinho não tem status legal e depende do apoio de parentes ou de instituições de caridade.
Ainda não se sabe se Abu Sido poderá retornar a Gaza: é uma decisão política sobre a qual ela não tem controle. "Voltar a Gaza parece ser um desafio. Levará tempo. A próxima geração, a nossa geração, precisa ter a vontade de reconstruir."
Mané todos os bichos
Em menos de uma década, o Brasil sofreu (e tem sofrido) o desafio de três pandemias: a COVID-19; os devastadores eventos climáticos – secas, incêndios e enchentes; e agora, a pandemia dos jogos de azar com a marca ERIA (Esperteza Real e Inteligência Artificial).
O primeiro desafio esbarrou no negacionismo estúpido das autoridades, porém ficou a lição para o mundo inteiro que ciência, prevenção e cooperação global são as armas para enfrentar catástrofes com dimensão universal.
O segundo desafio é a chegada da tragédia climática, com tamanho e data anunciada, a exigir redobrado esforço para que a emergência não nos imponha o ritual taoísta dos “Cachorros de Palha” que deu nome à obra clássica ao filósofo britânico John Gray. Nesta luta contra o tempo, o Brasil dispõe do valor estratégico de seus recursos naturais e, a despeito do retrocesso na política e na gestão, herdado do governo anterior, terá um papel decisivo no equacionamento da questão ambiental observado, espero, o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas.
O terceiro desafio: os jogos de azar viraram um surto pandêmico. É o assunto do momento. Há os que defendem a prática como entretenimento, aposta, considerando uma disputa em que o aleatório é o argumento da derrota ou da vitória dos disputantes. De outra parte, há os ferrenhos adversários brandindo evidências dos malefícios que os jogos de azar podem causar aos seus adeptos, arruinando pessoas, famílias e a comunidade.
No entanto, a jogatina tem origens remotas e marcam passagens em inúmeras civilizações. A etimologia árabe – al-azar – significa “dado” e, daí, advêm as múltiplas formas do jogo, inclusive, as definições de estratégias para responder com probabilidades aos “acasos”, abrigadas nas mais simples às mais sofisticadas infraestruturas para atender à crescente clientela.
Atualmente, os jogos envolvem fortunas e são considerados um vetor para o desenvolvimento da indústria hoteleira e do turismo. No seu entorno, “negócios paralelos” vicejam sobre a linha tênue da legalidade/crime, diversão/vício o que tem ocupado o noticiário, as redes sociais e um caloroso debate político sobre a regulamentação dos jogos de azar.
Com a votação e aprovação do PL 2234/2022 (por 14 a 12 votos) na Comissão de Constituição e Justiça, o assunto irá à deliberação do Plenário tão logo seja pautado pelo Presidente do Senado. O texto legaliza e regulamenta o jogo do bicho, o funcionamento de casa do bingo, jogos de cassino, corridas de cavalo, enfim, as normas chegam num momento sensível e relevante.
Sensível porque, na origem, está a Lei 3688 de 1941 (Lei das Contravenções Penais) que punia o jogo como uma atividade “degradante”; relevante porque suscita um sério debate sobre as “Bets”, que, ao invadir o mundo digital, empurram as pessoas para a compulsão do jogo: a ludopatia. Vale dizer, as pessoas carregam na mão uma casa de aposta e uma horda de “tigrinhos” que levaram, em agosto, três bilhões de reais dos beneficiários do bolsa família e mais de vinte bilhões de reais do consumidor brasileiro: tiram do bolso dos pobres ou viciados para encher o bolso da corrupção e do crime organizado.
É fundamental uma regulação inteligente e eficaz. Câmara Cascudo no Dicionário do Folclore Brasileiro” qualificava o jogo do bicho como um “vício irresistível” e acrescentava que a “repressão policial” apenas multiplicava a clandestinidade. E olhe que sou do tempo em que o jogo do bicho era tolerado e todo mundo, diariamente, fazia uma “fezinha”, modo delivery, em Vitória de Santo Antão.
Na hora do almoço, o cambista, forte, pele avermelhada atendia pelo apelido de “raça boa”e, de casa em casa, recebia as “pules” (o conjunto de apostas); registrava na caderneta com o papel carbono. Confiança era tudo: acertou, recebia.
Freguês fiel era o Seu Manoel, homem de poucas palavras, funcionário aposentado da prefeitura, respeitoso e carrancudo. Quase todo mundo na rua já havia ganho no jogo, pelo menos, no “grupo” ou na dezena. Seu Manoel, só gastava. Um dia com raro e leve sorriso de deboche, comemorava a notícia de que tinha ganho no grupo pela segunda vez. “Raça Boa” não segurou o segredo.
O jogo foi criado em 1892 para estimular a frequência do Jardim Zoológico de propriedade do barão de Drummond: cada visitante recebia um bilhete de entrada com a figura de um dos 25 animais, encoberto, e revelado no fim do dia o que valia um prêmio em dinheiro para o portador do bilhete. Foi um sucesso. Associados a um número, os animais compuseram séries numéricas, o jogo pegou e passou a ser praticado fora do zoológico. Deu samba!
Desde o Império, os jogos de azar eram proibidos no Brasil. Aqui, porém, a contravenção venceu. Segundo alguns intérpretes da alma brasileira, decorria da crença esperta de ganhar a vida sem trabalhar. Seu Manoel, no entanto, carregava a detestável pecha de azarado. E combinado o sigilo com o cambista, jogou um cruzeiro nos 25 bichos (probabilidade zero de não ser premiado), gastou 25 cruzeiros e ganhou 20 que era a recompensa pelo “acerto” no grupo. Prejuízo: 5 cruzeiros. Mas “ganhou”. E de quebra ganhou também o apelido dos vizinhos: “Mané todos os bichos”. “Raça Boa” desapareceu. Só retomou à rotina quando soube que seu “Mané” foi morar longe da rua.
Todo cuidado é pouco na regulamentação da atraente atividade. O Brasil adora a jogatina e, para cada cem brasileiros nascidos, segundo dados oficiais, 10 têm juízo, 10 são “espertos”, oitenta são otários.
O primeiro desafio esbarrou no negacionismo estúpido das autoridades, porém ficou a lição para o mundo inteiro que ciência, prevenção e cooperação global são as armas para enfrentar catástrofes com dimensão universal.
O segundo desafio é a chegada da tragédia climática, com tamanho e data anunciada, a exigir redobrado esforço para que a emergência não nos imponha o ritual taoísta dos “Cachorros de Palha” que deu nome à obra clássica ao filósofo britânico John Gray. Nesta luta contra o tempo, o Brasil dispõe do valor estratégico de seus recursos naturais e, a despeito do retrocesso na política e na gestão, herdado do governo anterior, terá um papel decisivo no equacionamento da questão ambiental observado, espero, o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas.
O terceiro desafio: os jogos de azar viraram um surto pandêmico. É o assunto do momento. Há os que defendem a prática como entretenimento, aposta, considerando uma disputa em que o aleatório é o argumento da derrota ou da vitória dos disputantes. De outra parte, há os ferrenhos adversários brandindo evidências dos malefícios que os jogos de azar podem causar aos seus adeptos, arruinando pessoas, famílias e a comunidade.
No entanto, a jogatina tem origens remotas e marcam passagens em inúmeras civilizações. A etimologia árabe – al-azar – significa “dado” e, daí, advêm as múltiplas formas do jogo, inclusive, as definições de estratégias para responder com probabilidades aos “acasos”, abrigadas nas mais simples às mais sofisticadas infraestruturas para atender à crescente clientela.
Atualmente, os jogos envolvem fortunas e são considerados um vetor para o desenvolvimento da indústria hoteleira e do turismo. No seu entorno, “negócios paralelos” vicejam sobre a linha tênue da legalidade/crime, diversão/vício o que tem ocupado o noticiário, as redes sociais e um caloroso debate político sobre a regulamentação dos jogos de azar.
Com a votação e aprovação do PL 2234/2022 (por 14 a 12 votos) na Comissão de Constituição e Justiça, o assunto irá à deliberação do Plenário tão logo seja pautado pelo Presidente do Senado. O texto legaliza e regulamenta o jogo do bicho, o funcionamento de casa do bingo, jogos de cassino, corridas de cavalo, enfim, as normas chegam num momento sensível e relevante.
Sensível porque, na origem, está a Lei 3688 de 1941 (Lei das Contravenções Penais) que punia o jogo como uma atividade “degradante”; relevante porque suscita um sério debate sobre as “Bets”, que, ao invadir o mundo digital, empurram as pessoas para a compulsão do jogo: a ludopatia. Vale dizer, as pessoas carregam na mão uma casa de aposta e uma horda de “tigrinhos” que levaram, em agosto, três bilhões de reais dos beneficiários do bolsa família e mais de vinte bilhões de reais do consumidor brasileiro: tiram do bolso dos pobres ou viciados para encher o bolso da corrupção e do crime organizado.
É fundamental uma regulação inteligente e eficaz. Câmara Cascudo no Dicionário do Folclore Brasileiro” qualificava o jogo do bicho como um “vício irresistível” e acrescentava que a “repressão policial” apenas multiplicava a clandestinidade. E olhe que sou do tempo em que o jogo do bicho era tolerado e todo mundo, diariamente, fazia uma “fezinha”, modo delivery, em Vitória de Santo Antão.
Na hora do almoço, o cambista, forte, pele avermelhada atendia pelo apelido de “raça boa”e, de casa em casa, recebia as “pules” (o conjunto de apostas); registrava na caderneta com o papel carbono. Confiança era tudo: acertou, recebia.
Freguês fiel era o Seu Manoel, homem de poucas palavras, funcionário aposentado da prefeitura, respeitoso e carrancudo. Quase todo mundo na rua já havia ganho no jogo, pelo menos, no “grupo” ou na dezena. Seu Manoel, só gastava. Um dia com raro e leve sorriso de deboche, comemorava a notícia de que tinha ganho no grupo pela segunda vez. “Raça Boa” não segurou o segredo.
O jogo foi criado em 1892 para estimular a frequência do Jardim Zoológico de propriedade do barão de Drummond: cada visitante recebia um bilhete de entrada com a figura de um dos 25 animais, encoberto, e revelado no fim do dia o que valia um prêmio em dinheiro para o portador do bilhete. Foi um sucesso. Associados a um número, os animais compuseram séries numéricas, o jogo pegou e passou a ser praticado fora do zoológico. Deu samba!
Desde o Império, os jogos de azar eram proibidos no Brasil. Aqui, porém, a contravenção venceu. Segundo alguns intérpretes da alma brasileira, decorria da crença esperta de ganhar a vida sem trabalhar. Seu Manoel, no entanto, carregava a detestável pecha de azarado. E combinado o sigilo com o cambista, jogou um cruzeiro nos 25 bichos (probabilidade zero de não ser premiado), gastou 25 cruzeiros e ganhou 20 que era a recompensa pelo “acerto” no grupo. Prejuízo: 5 cruzeiros. Mas “ganhou”. E de quebra ganhou também o apelido dos vizinhos: “Mané todos os bichos”. “Raça Boa” desapareceu. Só retomou à rotina quando soube que seu “Mané” foi morar longe da rua.
Todo cuidado é pouco na regulamentação da atraente atividade. O Brasil adora a jogatina e, para cada cem brasileiros nascidos, segundo dados oficiais, 10 têm juízo, 10 são “espertos”, oitenta são otários.
Lima Barreto e um século de eleições municipais
As eleições municipais sofreram grandes transformações em um século. Com a mudança de regime em 1891, o chefe do Executivo local passou a ser nomeado pelos governadores. Inicialmente, 12 dos então 20 estados adotaram a regra, só pacificada pela reforma de 1926. Com a Constituição de 1946, novas contestações, mas, nas capitais, estâncias, e bases militares, os prefeitos continuaram a ser nomeados. A primeira eleição para prefeito em São Paulo, a maior metrópole brasileira, teve lugar em 1953, e em Recife —a então terceira maior— em 1955. Em 1965, o regime militar reeditou a vedação que permaneceu até 1985, quando 201 municípios passaram a eleger prefeitos.
Prefeitos nomeados e Câmara de vereadores eleitos são o traço paradoxal das cidades brasileiras no século 20. Os conselhos municipais com forte autonomia vinham do período colonial. Os nomeados não sabiam sequer o nome da avenida principal das cidades, como debochou Lima Barreto, perplexo com "o interesse estranho que essa gente punha nas lutas políticas, nessas tricas eleitorais, como se nelas houvesse qualquer coisa de vital e importante".
Na voz de Policarpo Quaresma, "não atinava porque uma rezinga entre dois figurões [um governador e um senador] vinha por desarmonia entre tanta gente, cuja vida estava tão fora da esfera daqueles". Mas logo revelava o que estava em jogo: "Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos do Estado; não há lá político influente que não se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República".
A disputa pelo voto local era e continua sendo crucial para a política estadual e nacional, e nele o controle sobre o alistamento era a chave do processo. A partir da criação da Justiça Eleitoral em 1932, o alistamento tornou-se obrigatório, mas não o voto. Paradoxalmente, a medida reforçou a manipulação do eleitorado analfabeto majoritariamente rural até a década de 1970, e que não votava até o fim da proibição formal, em 1985.
O contraste aqui com as barreiras criadas para a população negra nos EUA como requisitos de testes de alfabetização, taxas de votação etc é marcante: nossas oligarquias nunca se opuseram à inclusão da massa da população no sistema eleitoral porque controlavam o alistamento. Como mostrei aqui, isto só mudou em 1955, com a introdução da cédula oficial substituindo a fornecida pelos partidos, e que exigia que os eleitores escrevessem o nome dos candidatos, o que acabava invalidando um terço dos votos. Apenas em 2000, com o voto eletrônico, os votos inválidos despencaram.
Lima Barreto apontou a relação entre crime e eleições na capital de Bruzundanga, mas não podia prenunciar que o crime organizado viria, um século depois, a ser séria ameaça nacional, através da coerção e violência sobre eleitores.
"O doutor-candidato vai neles com os mais cruéis assassinos da cidade, quando ele mesmo não é um assassino... A fisionomia aterrada e curiosa da cidade dá a entrever que se está à espera de uma verdadeira batalha; e a julgar-se pelas fisionomias que se amontoam nas secções, nos carros, nos cafés, e botequins, parece que as prisões foram abertas e todos os seus hóspedes soltos."
Prefeitos nomeados e Câmara de vereadores eleitos são o traço paradoxal das cidades brasileiras no século 20. Os conselhos municipais com forte autonomia vinham do período colonial. Os nomeados não sabiam sequer o nome da avenida principal das cidades, como debochou Lima Barreto, perplexo com "o interesse estranho que essa gente punha nas lutas políticas, nessas tricas eleitorais, como se nelas houvesse qualquer coisa de vital e importante".
Na voz de Policarpo Quaresma, "não atinava porque uma rezinga entre dois figurões [um governador e um senador] vinha por desarmonia entre tanta gente, cuja vida estava tão fora da esfera daqueles". Mas logo revelava o que estava em jogo: "Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos do Estado; não há lá político influente que não se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República".
A disputa pelo voto local era e continua sendo crucial para a política estadual e nacional, e nele o controle sobre o alistamento era a chave do processo. A partir da criação da Justiça Eleitoral em 1932, o alistamento tornou-se obrigatório, mas não o voto. Paradoxalmente, a medida reforçou a manipulação do eleitorado analfabeto majoritariamente rural até a década de 1970, e que não votava até o fim da proibição formal, em 1985.
O contraste aqui com as barreiras criadas para a população negra nos EUA como requisitos de testes de alfabetização, taxas de votação etc é marcante: nossas oligarquias nunca se opuseram à inclusão da massa da população no sistema eleitoral porque controlavam o alistamento. Como mostrei aqui, isto só mudou em 1955, com a introdução da cédula oficial substituindo a fornecida pelos partidos, e que exigia que os eleitores escrevessem o nome dos candidatos, o que acabava invalidando um terço dos votos. Apenas em 2000, com o voto eletrônico, os votos inválidos despencaram.
Lima Barreto apontou a relação entre crime e eleições na capital de Bruzundanga, mas não podia prenunciar que o crime organizado viria, um século depois, a ser séria ameaça nacional, através da coerção e violência sobre eleitores.
"O doutor-candidato vai neles com os mais cruéis assassinos da cidade, quando ele mesmo não é um assassino... A fisionomia aterrada e curiosa da cidade dá a entrever que se está à espera de uma verdadeira batalha; e a julgar-se pelas fisionomias que se amontoam nas secções, nos carros, nos cafés, e botequins, parece que as prisões foram abertas e todos os seus hóspedes soltos."
Custo da sanidade
Israel pode restaurar sua dissuasão e esmagar Gaza e o Líbano. O mundo continuaria a se surpreender com a profundidade da penetração da inteligência de Israel e seu alcance em Beirute, Damasco, Iêmen, Tul Karm, Jenin e até Teerã. Mas, no final das contas, muita força custará a Israel sua sanidade
Passado e futuro das eleições
Acabou? Ainda não acabou de todo. Mas já dá para afirmar que as eleições não são mais aquelas. Principalmente para mim, que participei diretamente de quase todas do período democrático.
Eu as achei mais tristes que outrora. Como candidato, caí em muitas ciladas. Cilada era ir a um evento programado para conquistar votos e encontrar apenas o autor do convite acenando alegremente uma bandeirinha. Escapar das ciladas com leveza e bom humor é uma arte necessária, porque elas são presentes mesmo na vida de quem não é candidato.
Agora, vi algumas pessoas tristes portando uma bandeira encardida, com nome e número. Eram pagas para isso, passaram horas solitárias numa esquina movimentada. Pareciam dizer:
— Meu candidato fará cemitérios limpos e acessíveis.
Os debates antes eram calorosos. Mesmo os que contestavam o sistema o faziam com elegância e rigor gramatical, como o Dr. Enéas. Lembro-me de um debate para o governo do Rio em que a angústia de Aarão Steinbruch me comoveu. Ele estava perto dos 70 anos, precisava ir ao banheiro, e o intervalo não chegava. Com a idade, passei a entender mais essa urgência. Aliás, o próprio Ulysses Guimarães dizia em suas viagens políticas:
— Sempre que houver um banheiro, use, pois não se sabe nunca quando aparecerá outro.
Outro dia, lembrei-me dos comícios de campanha. Sempre havia um bêbado interagindo ruidosamente com os oradores.
Tudo isso acabou. E, se me refiro a essa época com alguma nostalgia, é porque era mais leve. O traço distintivo talvez fosse este: achávamos que a democracia era irreversível e cada vez mais se aperfeiçoaria. Hoje surgiu a sombra do autoritarismo, a possibilidade de regressão, inexistente no quadro da democracia idealizada.
Naqueles anos já havia a globalização. Nos países mais ricos, uma classe média começava a se sentir ameaçada pela emigração que furava a fila nas suas pretensões de ascensão social. As lutas identitárias já existiam. Trabalhei com elas, mas ainda não levavam à severidade do politicamente correto. As reações à diversidade crescente ainda não encontravam a resistência dramática dos que experimentam a política como missionários e acham que existe apenas uma única visão de boa vida, extensiva a todos.
A verdade é que a política tão presencial do passado, o corpo a corpo cotidiano, se deslocou para as redes. Milhões de pessoas a seguem pelo WhatsApp. Ao mesmo tempo que se torna mais vulnerável, a democracia avança. Talvez isso explique a enigmática frase de Ulysses Guimarães quando se reclamava do nível do Congresso:
— Esperem o próximo. Vai ser pior.
Tive alguma esperança na eleição de São Paulo. Ela apresentou um aventureiro jogando na distância entre a política e o povo e acabou resultando em debates melancólicos. Pablo Marçal ficou fora do segundo turno.
As soluções nas grandes metrópoles são fascinantes. Copenhagen reduziu suas emissões de CO2 de forma drástica; Paris recuperou o Rio Sena; os chineses experimentam a ideia de cidades-esponja para enfrentar grandes chuvas.
Nós contribuímos com uma cadeirada cinematográfica no candidato. Apesar disso, alguns sinais sugerem que a tão decantada polarização não dominou tudo. Os grandes eleitores, Lula e Bolsonaro, não tiveram o papel que se projetava para eles. Novos e promissores quadros políticos têm surgido, ainda que não tenham conquistado vitória eleitoral.
Faltou a experiência de uma campanha sorridente, otimista, voltada para o futuro, como a de Kamala Harris nos Estados Unidos. É preciso esperar ainda o resultado das eleições americanas para ver se o antídoto à indiferença e ao ressentimento funcionam. O que acontece lá não se reproduz mecanicamente noutros lugares, mas dá uma ideia de como tratar essa onda de rancor que domina a política dos nossos dias.
Eu as achei mais tristes que outrora. Como candidato, caí em muitas ciladas. Cilada era ir a um evento programado para conquistar votos e encontrar apenas o autor do convite acenando alegremente uma bandeirinha. Escapar das ciladas com leveza e bom humor é uma arte necessária, porque elas são presentes mesmo na vida de quem não é candidato.
Agora, vi algumas pessoas tristes portando uma bandeira encardida, com nome e número. Eram pagas para isso, passaram horas solitárias numa esquina movimentada. Pareciam dizer:
— Meu candidato fará cemitérios limpos e acessíveis.
Os debates antes eram calorosos. Mesmo os que contestavam o sistema o faziam com elegância e rigor gramatical, como o Dr. Enéas. Lembro-me de um debate para o governo do Rio em que a angústia de Aarão Steinbruch me comoveu. Ele estava perto dos 70 anos, precisava ir ao banheiro, e o intervalo não chegava. Com a idade, passei a entender mais essa urgência. Aliás, o próprio Ulysses Guimarães dizia em suas viagens políticas:
— Sempre que houver um banheiro, use, pois não se sabe nunca quando aparecerá outro.
Outro dia, lembrei-me dos comícios de campanha. Sempre havia um bêbado interagindo ruidosamente com os oradores.
Tudo isso acabou. E, se me refiro a essa época com alguma nostalgia, é porque era mais leve. O traço distintivo talvez fosse este: achávamos que a democracia era irreversível e cada vez mais se aperfeiçoaria. Hoje surgiu a sombra do autoritarismo, a possibilidade de regressão, inexistente no quadro da democracia idealizada.
Naqueles anos já havia a globalização. Nos países mais ricos, uma classe média começava a se sentir ameaçada pela emigração que furava a fila nas suas pretensões de ascensão social. As lutas identitárias já existiam. Trabalhei com elas, mas ainda não levavam à severidade do politicamente correto. As reações à diversidade crescente ainda não encontravam a resistência dramática dos que experimentam a política como missionários e acham que existe apenas uma única visão de boa vida, extensiva a todos.
A verdade é que a política tão presencial do passado, o corpo a corpo cotidiano, se deslocou para as redes. Milhões de pessoas a seguem pelo WhatsApp. Ao mesmo tempo que se torna mais vulnerável, a democracia avança. Talvez isso explique a enigmática frase de Ulysses Guimarães quando se reclamava do nível do Congresso:
— Esperem o próximo. Vai ser pior.
Tive alguma esperança na eleição de São Paulo. Ela apresentou um aventureiro jogando na distância entre a política e o povo e acabou resultando em debates melancólicos. Pablo Marçal ficou fora do segundo turno.
As soluções nas grandes metrópoles são fascinantes. Copenhagen reduziu suas emissões de CO2 de forma drástica; Paris recuperou o Rio Sena; os chineses experimentam a ideia de cidades-esponja para enfrentar grandes chuvas.
Nós contribuímos com uma cadeirada cinematográfica no candidato. Apesar disso, alguns sinais sugerem que a tão decantada polarização não dominou tudo. Os grandes eleitores, Lula e Bolsonaro, não tiveram o papel que se projetava para eles. Novos e promissores quadros políticos têm surgido, ainda que não tenham conquistado vitória eleitoral.
Faltou a experiência de uma campanha sorridente, otimista, voltada para o futuro, como a de Kamala Harris nos Estados Unidos. É preciso esperar ainda o resultado das eleições americanas para ver se o antídoto à indiferença e ao ressentimento funcionam. O que acontece lá não se reproduz mecanicamente noutros lugares, mas dá uma ideia de como tratar essa onda de rancor que domina a política dos nossos dias.
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