terça-feira, 18 de maio de 2021

A tribo dos idiotas

Fica em casa, usa máscaras, vai à rua apenas para o essencial, lava muiiito as mãos, não economiza álcool em gel, foge de aglomerações como o diabo da cruz. Já soma mais de ano sem abraços. Teme o vírus, respeita a vida – a sua, a dos outros.

São os “idiotas”, segundo o inominável presidente da república. Assim mesmo com letra minúscula. Em dois anos de mandato, o indigitado reduz e desqualifica a Presidência e a República.

Como se o ouvido da república fosse penico, o desqualificador bravateia besteiras diárias. Sempre deselegantes, chulas, rastaqueras.

Ganhou permissão para os abusos quando, em abril de 2016, ao votar pelo impeachment da presidente Dilma, no plenário da Câmara, homenageou um torturador. Não saiu preso. Nem foi oficialmente repreendido.
conteudo patrocinado

O Brasil admitia o sem limite da autoridade constituída, eleita.

Cinco anos depois, aqui estamos a assistir o prazer no desrespeito diário ao cargo, à população que ainda guarda algum sentido de amabilidade e cortesia.

Sorridente, o abusador chefe exibe gosto em avacalhar o bom senso e atiçar os que ainda distinguem espontaneidade de falta compostura, desfaçatez.


Triste assistir suas costumeiras afrontas reproduzidas em milhares de páginas diárias das grandes e pequenas mídias, das sérias, das fakezeiras – essa praga que batizou de mito o nada*.

E ele sabe que desfruta da visibilidade que jamais sonhou, nem merece, porque é uma coisa**. Disso não passará. Na História ficará mesmo como o coiso, um sujeito sem educação, nem postura, que um dia sentou na cadeira de presidente e coisificou o país.

Pois então. Quando precisamos de competência e sobriedade de um estadista, temos esse que se define como imorrível, imbroxável, incomível.

Tocados como “idiotas”, chegamos à liderança mundial de mortos na pandemia – 435 mil ou 0,22% da população, que o imorrível deve considerar uma merreca de morríveis, broxáveis e comíveis. Os que, na tribo dos idiotas, tiveram o “CPF cancelado”.

Difícil não ser monotemático.

Dicionário:

*Nada – substantivo masculino – significando: coisa nula, sem valor; o que não existe; o vazio. Categoria filosófica que representa o não-ser, a ausência de existência.

**Coisa – substantivo feminino, significando: objeto ou ser inanimado.

Este é o 'seu' Exército

Penso que o Ministério da Defesa tem uma posição muito especial no contexto dos ministérios e que não é conveniente a manifestação em eventos de caráter político. Claro que ministro é um cargo de natureza política, mas o ministério não pode ser politizado. E muito menos passar a ideia de politização dos seus componentes, as Forças Armadas, que são instituições de Estado e não de governo. Forças Armadas não são instrumentos de intimidação ou de pressão política. As Forças Armadas não são ferramentas a utilizar em disputas partidárias e em projetos de poder pessoal, de grupos e de partidos políticos

General Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Bolsonnaro

Nem liberal nem conservador

Que o governo de Jair Bolsonaro não é liberal na economia, todos já sabem. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, queixou-se recentemente da falta de “aderência” a seu projeto de redução radical do Estado, anunciado na campanha eleitoral de 2018 por Bolsonaro e claramente frustrado após mais de dois anos de mandato.

A cada dia que passa, no entanto, o governo tampouco consegue ser o campeão dos valores conservadores, conforme também prometido por Bolsonaro nos palanques.

O presidente não é conservador; é apenas reacionário. O conservadorismo não se opõe a mudanças e reformas, como faz Bolsonaro, e sim às rupturas revolucionárias, especialmente aquelas motivadas por utopias que só podem resultar em autoritarismo e na anulação do indivíduo. Ademais, o conservadorismo defende o respeito às instituições democráticas e luta por sua estabilidade; defende a liberdade política e econômica, dentro da ordem constitucional; defende a igualdade de todos perante a lei, que é o verdadeiro lastro da estabilidade; defende a política como a “arte do possível”, fruto de ampla negociação; e, finalmente, defende a coesão social baseada em valores morais comuns, sobretudo o respeito, a responsabilidade e a honestidade.


Lamentavelmente, Bolsonaro viola esses princípios de forma sistemática desde que ganhou os holofotes da vida pública, quebrando o decoro sem constrangimento, tomando a coisa pública como se fosse privada e atacando os pilares da democracia.

Poucas vezes na história brasileira as instituições foram tão vilipendiadas por um presidente da República. Poucas vezes um chefe de Estado foi tão indiferente às leis e à Constituição, considerando-se frequentemente acima delas. Poucas vezes um governante desprezou tanto o diálogo político, demonizando a oposição e menosprezando partidos. E poucas vezes um presidente transgrediu de forma tão desabrida os valores morais comuns da sociedade, especialmente ao rejeitar a responsabilidade por seus atos e omissões e ao ofender e ameaçar quem o contesta.

Nesse cenário, a linguagem chula de Bolsonaro é, por incrível que pareça, o menor dos problemas – embora, frise-se, só isso já bastasse para constranger os movimentos que se dizem conservadores e que apoiam o presidente, notadamente os religiosos.

Bolsonaro julga ter recebido dos eleitores o poder de fazer o que bem entende – e, se as instituições republicanas e os valores morais se tornam obstáculos ao exercício desse poder sem limites, pior para as instituições e para os valores.

O presidente já se confundiu com a Constituição (“eu sou a Constituição”), um ato falho que traiu seu desejo de transformar sua vontade pessoal em lei. E anunciou, desde a campanha, que a “verdade” não era a realidade, mas uma revelação mística que ele profetizou nos palanques, transformando em slogan eleitoral o versículo bíblico “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8:32).

No seu governo, vale o Führerprinzip, isto é, o princípio da supremacia do líder sobre qualquer outra consideração, pois o presidente julga encarnar o “povo”. Por essa razão, demanda-se lealdade absoluta a Bolsonaro, seja de seus ministros, seja de seus eleitores, e o que quer que o presidente estabeleça como verdade deve ser aceito sem contestação.

Assim, a verdade dos fatos, cujo respeito é princípio central no credo conservador, não tem lugar no mundo bolsonarista. Nesse universo fantástico, o presidente não pode ser refutado quando declara não ter nenhuma responsabilidade sobre os mais de 435 mil mortos pela pandemia de covid-19, tampouco pela desastrosa situação econômica, e muito menos pela morosidade das reformas e das privatizações. Questionar Bolsonaro equivale a violar um mandamento.

Isso obviamente nada tem a ver com o espírito do conservadorismo cuja representação Bolsonaro reivindica. É, ao contrário, uma violação explícita. Os conservadores que se alinham a Bolsonaro supostamente por afinidade de valores deveriam repensar esse apoio, pois correm o risco de se confundir com a desonestidade bolsonarista.

Pensamento do Dia

 

Oguz Gurel (Turquia)

General com medo de depor na CPI humilha o Exército

Nada mais humilhante para um militar da ativa ―e ainda mais para um general três estrelas como Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde― do que revelar medo e covardia. E o pior é que essa imagem de medo pode acabar afetando a imagem positiva que a instituição militar vinha tendo até agora. Ver um general como Pazuello incapaz de enfrentar uma CPI de peito aberto tem que humilhar até os simples soldados, que devem se sentir desconcertados.


Já pouco importa o que o general ex-ministro diga ou silencie. Seu comportamento de medo que o levou a se refugiar em um habeas corpus preventivo no Supremo para permanecer mudo ante as perguntas dos senadores já é uma demonstração de confissão de culpa.

Se, como já havia confessado Pazuello, ele se limitou a cumprir ordens do presidente Bolsonaro, considerado naquele momento seu superior hierárquico, bastava, como fizeram os ministros anteriores, pedir demissão e voltar ao Exército. Atribuir a atitude do general à sua personalidade difícil parece estranho para quem deveria dar exemplo, não apenas de uma pessoa que não teme a verdade, mas que também tem orgulho de aceitar que errou.

Ainda não sabemos como acabará a novela do general que pediu que permanecesse calado no Senado. Nem mesmo se ela acabará sendo escrita em sua testa por sua atitude de medo, a maior desonra para um militar ―ainda mais da sua categoria.

O general, hoje preso em sua narrativa nebulosa de comportamento, teria apenas uma forma de resgatar sua dignidade humilhada. Seria, ao chegar ao Senado, aceitar todas as perguntas que pudessem ser feitas, respondendo com lealdade militar, embora para isto precisasse revelar verdades durante seu período à frente do Ministério da Saúde, correspondente ao maior número de mortos por covid-19, mesmo que elas pudessem comprometer gravemente a imagem do presidente. Uma imagem já mais do que desgastada de um chefe de Estado que acaba de ser visto, internacionalmente, como um dos que pior geriram a pandemia entre os 14 líderes políticos mais importantes do mundo.

Bolsonaro e sua procissão de seguidores fanáticos com instintos de morte passarão, e o Brasil recuperará sua normalidade democrática depois do hiato tenebroso ao qual foi arrastado por um capitão frustrado do Exército. Ele sairá de cena, como indicam as últimas pesquisas, enquanto a instituição das Forças Armadas continuará sendo vital na defesa dos valores democráticos e da Constituição, como foi nos últimos 20 anos com Governos de diferentes tendências políticas.

O Brasil só pode desejar que a hierarquia do Exército ajude seu general, hoje questionado, a demonstrar que o medo não existe no dicionário militar. A responsabilidade de um desastre ou de uma conduta ditada pelo medo do general na CPI poderia acabar prejudicando gravemente a credibilidade do Exército. O resultado da conduta do ex-ministro em sua convocação à CPI poderá ter consequências inesperadas para o futuro deste país, hoje visto como um fracasso mundial de governo. Não por acaso, faltando 18 meses para as eleições presidenciais, a imprensa mundial continua atenta e preocupada com seu possível resultado e temendo que o bolsonarismo destruidor possa continuar no poder, o que traria problemas não só no cenário já turbulento da América Latina, mas no mundo. De fato, o Brasil é visto como um elemento-chave não apenas na economia, como potência mundial que é, mas também no cenário de descrédito da democracia, com o crescimento dos movimentos negacionistas e nazifascistas nos cinco continentes.

O Brasil ―mais especificamente, a CPI da Pandemia― poderia levar à saída de Bolsonaro do Governo, que revolucionaria as eleições do próximo ano. O país vive momentos difíceis, que poderiam ter repercussões negativas para várias gerações. Sabemos como as guerras tradicionais começam, mas não como terminam. O mesmo acontece com as crises políticas. E não é nenhum segredo que no Brasil, governado hoje por um presidente considerado o pior e mais imprevisível de sua história, a responsabilidade do Exército seja crucial, pois do seu apoio ou não ao capitão com vocação de ditador poderá depender o futuro deste país.

Nem vale a desculpa para os militares do medo do comunismo, já que hoje qualquer cidadão minimamente informado sabe que nem o PT nem Lula representaram, nem representam hoje, o comunismo. Basta lembrar as boas relações de Lula em seus Governos com o mundo empresarial e os bancos, que nunca ganharam tanto quanto com ele. Sem contar suas relações estreitas com os partidos conservadores e de direita, que chegaram a preocupar o grupo mais progressista e sindicalista do partido.

O temor da volta de Lula, hoje mais conservador que ontem, não deveria justificar a defesa e o apoio ao capitão agora rechaçado pela maioria da população, que apoia um impeachment do presidente. O Exército pode hoje apoiar candidatos conservadores de direita, que podem governar tranquilos, sem o perigo de uma involução do Brasil para uma aventura como a venezuelana pela ânsia patológica de Bolsonaro, que já deu provas irrefutáveis de incapacidade profissional e psíquica para governar o quinto maior país do mundo.

O Exército brasileiro está em uma encruzilhada histórica, da qual depende sua credibilidade. Seu comportamento diante da tão esperada conduta do general Pazuello na CPI da Pandemia poderá arrastar as Forças Armadas para uma grave crise no já obscuro panorama político e econômico deste país.

Salário dos militares do governo pode chegar R$ 80 mil com teto duplex

Militares não se aposentam. Foi assim que sempre argumentaram as Forças Armadas para se livrar da equiparação das regras previdenciárias com civis.

Militares se aposentam: e os ministros militares do governo são aposentados. É o que buscou a Defesa para se livrar do limite remuneratório (conhecido como teto). Argumenta-se que esses generais devem poder receber acima do limite/teto acumulando “aposentadoria” e o salário de ministro.

Estariam, assim, incluídos nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União (TCU) que permitem – excepcionalmente nesses casos – que o teto remuneratório seja dobrado, aplicado separadamente a cada um dos pagamentos, e não à soma deles (aposentadoria+salário).

Deixa de valer, assim, o limite de R$ 39,2 mil, o salário de ministros do Supremo que é a remuneração máxima no serviço público. Com a dobra do limite feita, o chamado “teto duplex” iria para quase R$ 80 mil. É 70 vezes o soldo dos recrutas. A mudança decorre de uma portaria do Ministério da Economia (que, aliás, não diz como vai pagar, violando a Lei de Responsabilidade Fiscal).

Militares da reserva com cargos no governo serão beneficiados, porque até então o acúmulo de salário e aposentadoria esbarrava no teto. Agora, o limite será o teto dobrado. Haverá aumentos para o presidente, mas principalmente para os generais. Segundo jornais, o vice Mourão receberia mais de R$ 63 mil mensais a partir de agora, os ministros Braga Netto, da Defesa, R$ 62 mil; Heleno, da Segurança Institucional, R$ 63 mil; e Ramos, da Casa Civil, R$ 66 mil.

A alegação para a portaria seria o cumprimento de uma decisão do STF, que permitiu que o limite remuneratório de R$ 39,2 mil seja observado separadamente para aposentadoria e para salário. Seria, assim, um limite para cada vínculo. Mas militar na reserva perde o vínculo?

A Constituição prevê que a aposentadoria afasta o vínculo com o empregador, seja na iniciativa privada ou no governo. Só que militares sempre justificaram que não se aposentam, que há apenas uma “transferência para a reserva remunerada”, que seguem à disposição do Estado e que podem ser convocados.

O TCU também havia decidido em anos recentes que, “na hipótese de acumulação de aposentadoria com a remuneração decorrente de cargo em comissão, considera-se, para fins de incidência do teto constitucional, cada rendimento isoladamente”. A expressão usada é aposentadoria, o que não se aplicaria aos generais.

Mesmo no STF, a discussão no julgamento da questão não parece ter levado em conta os militares. Por exemplo, o ministro Lewandowski, para quem o teto de R$ 39,2 mil sobre aposentadoria+salário violaria a dignidade da pessoa humana, observou que a aposentadoria é contraprestação por décadas de contribuição.

Mas militares não contribuem para a transferência para a reserva (ou “aposentadoria”), porque esta não seria um benefício (já que ainda estão à disposição etc.). Não é exagero do colunista: nenhum dos generais na reserva contribuiu sequer com um centavo em qualquer mês da carreira militar para o que agora querem considerar uma aposentadoria.

O argumento de que militar não se aposenta foi usado historicamente para evitar a imposição de idades mínimas para aposentadoria (90% sai da ativa com menos de 55 anos, 50% antes de 49), de contribuições de aposentados (como no serviço público civil) e de cálculo de aposentadoria com base na média salarial (como no INSS). Militares ainda têm a integralidade: vão para a reserva com 100% do maior salário. “Os militares nunca tiveram e não têm um regime previdenciário” escreveu Mourão em 2017 no texto “Por que os militares não devem estar na reforma da Previdência?”. O vice prometeu doar o dinheiro.

Agora, para pegar carona nas decisões do TCU e do STF autorizando o limite duplo para aposentados que recebem salário, o governo editou portaria estendendo o limite duplo para “militares na reserva”. As decisões não trataram desses casos, que exigiriam uma emenda à Constituição – já que é controverso o status dos militares da reserva. Qual o limite dos generais?

Bolsonaro em um cavalo cercado de ministros é lamentável

Patética e mambembe, para dizer o mínimo, a cena desqualificante protagonizada neste sábado, 15, pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, ao chegar montado em um cavalo – e acompanhado de quatro ministros – para participar de protestos promovidos por seus apoiadores e ruralistas na capital federal. Em períodos normais já seria um lamentável despropósito e uma desconfortante imagem para o país e para o mundo. No momento sombrio de pandemia e horrenda crise social e humanitária – com mais de 430 mil vidas ceifadas no Brasil, até aqui – o espetáculo se assemelha mais a um escárnio intolerável contra uma nação agredida e desolada.


À distancia , de Salvador, a primeira reação do jornalista – ao ver o capitão e seu séquito de governo descer do animal e, sair, sem máscara e em completo desrespeito às recomendações médicas e da ciência, abraçando, beijando e fazendo selfies com adeptos na manifestação contra a CPI da Covid , os membros do Supremo Tribunal Federal e os adversários, em especial o ex-presidente Lula, a quem volta a chamar de “ladrão de nove dedos” e “o maior canalha da história do Brasil” – é pensar na antológica composição do grande compositor baiano, Batatinha, “Todo mundo vai ao Circo”.

Que diz: “Todo mundo vai ao circo, menos eu, menos eu… A minha vida é um circo, sou acrobata na marra, só não posso é ser palhaço, senão eu fico sem graça”. Grande e saudoso Batata!


Mas observo um pouco mais: “Patacoada”, imagino escreveria o imortal alagoano, Graciliano Ramos, ao ver o capitão presidente, no centro de Brasília, acompanhado dos ministros Ricardo Salles, do Meio Ambiente, Tereza Cristina, da Agricultura, e Gilson Machado, Turismo, e Tarcísio Gomes, da infraestrutura. E mandar descer metade das pessoas pessoas que estavam no trio elétrico para que ele e seus membro do primeiro escalão subissem no veículo, para saudar os presentes. De cima do trio, comunicou, sob aplausos ruralistas e adeptos, que está, “cada vez mais, legalizando armas no Brasil. Nenhuma palavra sobre vacinas nem sobre o clamoroso horror da mortandade pela covid no País. Depois, pasmem, sobrevoou o protesto em um helicóptero do Exército.

No fim, lembro do poema “Gaúcho”, de Ascenso Ferreira, o notável pernambucano nascido na Paraíba:

Riscando os cavalos!
Tinindo as esporas!
Través das coxilhas!
Sai de meus pagos em louca arrancada!
— Pra quê?
— Pra nada!

Vitor Hugo Soares 

Há muito escrito


Na minha rua mora um general,
Cara de mau,
Como convém a todo general.
Ninguém sabe em que batalhas
Ganhou a série de medalhas
Que ostentam sobre o peito varonil.
Também, pra que saber?
Viva o Brasil!

Max Nunes, "Uma pulga na camisola"

'A Peste' brasileira

Que me perdoem Camus, seus estudiosos e milhões de admiradores, peço licença para repetir aqui algumas de suas palavras, do clássico “A Peste”, de reivindicar tua audácia, uma ousadia à imagem das tuas, para me ajudar neste momento de súplica rebelde, deste espasmo de “combat” e de “combattant“, diante de atos desumanos e suas terríveis consequências.

Como brasileiro, como tantos outros e perante o mundo, assumo aqui que estamos habitados, sitiados, nestes tempos sombrios de nossa história, por mais de uma terrível peste. Este duplo flagelo, cujas devastações são apenas o acréscimo de nossos próprios erros coletivos, que pode contaminar muito além de nossas fronteiras.

Além da “Peste” biológica, epidemia pessimamente gerida, causadora da maior crise sanitária da história do Brasil, temos outro mal, que no longo prazo pode deixar terríveis sequelas ainda mais profundas. A peste antidiplomática que nos isola, a peste que corrói a Amazônia, o meio ambiente e persegue os que a protegem, o mal que distancia a vigilância e permite passar a boiada, aceita garimpos em reservas indígenas, que prefere troncos deitados a vê-los em pé, vivos, pragas cúmplices dos responsáveis por estes crimes. Também a peste que castra liberdades, ameaça a democracia e resgata a censura, a peste preconceituosa que promove a intolerância, a homofobia, o machismo e a violência.


Enfim, a Peste que nos destrói, destrói a razão e o bom senso, que perturba nossa essência, nossa consciência e nega a ciência. A Peste que promove o ódio é inimiga das artes e da cultura. Ela, que tem suas próprias variantes, é obra de um clã. Associada ao distanciamento, ao negacionismo, a desinformação, a mentira, acaba por reprimir, mesmo que temporariamente, nossa revolta, resistência e indignação.

Citamos Camus: “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: ‘Não vai durar muito, seria estúpido’. Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos sempre em nós”

Sim, aqui do outro lado do Atlântico, este oceano que nos separa e nos aproxima, amigo francês, vemos de tudo. Da “ocupação” de boa parte de nosso espírito, até ideias muito próximas de um nazismo medíocre, ao menos de um ideal genocida de poder, que se pretende genocida de ideias, mesmo que para isso a morte de concidadãos enteja no caminho, nem que para isso aconteça um massacre humanitário, desnecessário, com centenas de milhares de mortes evitáveis.

O mal está espalhado: meio ambiente, relações internacionais, Fundação Palmares, direitos humanos. Chegamos ao cúmulo de assistirmos um certo secretário de Cultura parafraseando em rede nacional o discurso de Joseph Goebbels, ministro de Adolf Hitler antissemita, maldita alma da pior das ideologias.

“Tinham visto morrer crianças, já que o terror, há meses, não escolhia, mas nunca lhes tinham seguido o sofrimento minuto a minuto, como faziam desde essa manhã”.

No nosso caso (que revoltaria ainda mais os personagens de Camus), morrem inocentes por falta de oxigênio, e/ou por falta de leitos.

É preciso então, mais que resistir. Contra este peste brasileira que veste um terno sombrio com seu sorriso astuto, ataca seus adversários com repressão, agressão e perseguição, resgatando “sobras legais” herdadas da ditadura, como a lei de segurança nacional. Nosso Brasil, depois de ter passado por 20 anos de torturas, assassinatos, censuras, pensávamos nunca mais sofreríamos deste mal.

Ainda Camus: “O padre dizia que a virtude da aceitação total de que falava não podia ser compreendida no sentido restrito que lhe era habitualmente atribuído, que não se tratava da banal resignação, nem mesmo da difícil humildade”. “Era por isso – e Paneloux afirmou ao seu auditório que o que iria dizer não era coisa fácil – preciso querê-la, porque Deus a queria”.

“O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos” Este era o slogan da última campanha presidencial, esta que acompanhou a vitória do inominável. Alguns de nós já imaginávamos que por detrás destas palavras, se escondia a carne do mal coberta pela fake pele de um fake salvador da pátria, uma clara tentativa de iludir cidadãos de boa-fé, evangélicos, fiéis e crentes de Deus, já feridos e traídos em sua cidadania, querendo fazer crer que toda e qualquer atitude de seu governo segue princípios divinos.

Pois me diga, que Deus seria este que destrói e coloca a vida humana em um plano tão desprezível?

“Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”.

E me permita completar, e em meu país, perigosamente distraído.

O Brasil que queremos e que o mundo precisa, também negou o horror que se aproximava. E, portanto, há décadas os ratos já estavam aqui mostrando seus rostos e dentes, de olhos revirados, afiando suas unhas. E não nos atentamos. Será que nós, concidadãos, e sobretudo nosso parlamento, também somos negacionistas/cumplices, ao não querer enxergar o tamanho do perigo, ao nos sujeitarmos a este poder já manchado de sangue e de crimes?

Eu sei que longo prazo, e seja qual for o país, o homem corajoso, o cientista, o resistente conseguirão juntos derrotar o mal. Aqui, não será tão simples assim, porque carregamos nas nossas costas a histórica extrema desigualdade, econômica, social e educacional que esteriliza alguns comportamentos e aniquila a vontade de ruptura.

Toda Peste causa separações profundas e dolorosas. E olhem nós aqui, já isolados, tratados como pária do mundo… mas, sobretudo, separados de nós mesmos, desviados do Brasil que viemos para ser, do nossa essência, da nossa natureza, do país do futuro e de um mundo mais humano e justo. Do país exuberante, da alegria de viver que faz sonhar, que dança, brinca, canta e encanta. Porém, ao nos rendermos ao mal, passivos, mostramos o que temos de pior. O país da miscigenação não pode ser o da negação do seu próprio destino!

“O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam?”

Como fazer para se livrar deste pesadelo? Sobretudo não fiquemos anestesiados, amordaçados por esta “angústia muda”. Fora com este mal maior, fora a estupidez que desencoraja o uso de máscaras, que dificulta o combate ao vírus, que mata e deixa morrer, e ainda insiste!

Vacinemo-nos uma vez por todas! Vacinemo-nos também para expulsar de nós o mal maior, que vai muito além do agente infeccioso microscópico, que gangrena nosso “corps social“.

Porque não basta identificar o sequenciamento do vírus que nos impõe suas leis e viola nossos direitos, devemos agora encontrar o antídoto. Vacina sim! Ele não! Ele nunca mais! Fora Bolsonaro! Caso contrário, nos tornaremos a nossa própria peste.

“A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós”.
Raí  (Texto publicado originalmente no jornal francês Le Monde)

Pra frente, Brasil...

 


O marisco sempre se dá mal

“Hoje, 19 de julho de 1936, está declarado estado de guerra em Salamanca e, com a ajuda de Deus, em toda a Espanha.” Essa é a primeira fala do excelente filme “Enquanto a guerra durar”, de Alejandro Amenábar. Assim, em nome de Deus, da pátria e dos bons espanhóis, começou a Guerra Civil Espanhola, deixando mais de um milhão de mortos nos 3 anos que durou.

Quando os militares, o clero e a elite conservadora espanhola se recusaram a aceitar o governo de esquerda eleito pela maioria, amigos, vizinhos e membros da mesma família se dividiram entre dois extremos. Quem discordava da República era fascista, e quem a apoiava era comunista. Discussões se tornam brigas, que logo se transformam em fuzilamentos mútuos nos campos de batalha. A intolerância paralisou a sociedade como uma lanterna faz com um jacaré.

Com apoio do regime fascista italiano e da Alemanha nazista, as Forças Armadas declararam uma cruzada moderna contra as forças liberais e democráticas republicanas. À República se aliaram os anarquistas, comunistas, socialistas e bolcheviques do mundo inteiro, para destruir o movimento que o General Franco chamou de Nacional Catolicismo. A Espanha inteira virou a arena onde os radicais de todo o mundo se encontravam para lutar até o último homem sobrar de pé.

O filme conta essa história por meio de um personagem da época tão interessante quanto controverso: o reitor da Universidade de Salamanca, escritor e pensador basco Miguel de Unamuno. Eu o conhecia como autor do livro “San Manuel Bueno, mártir”, um padre fictício de uma pequena aldeia, sempre pronto para ajudar e consolar sua paróquia. Amado por todos, ao morrer foi canonizado por sua santa bondade. Porém ele escondia de todos uma angústia que o perseguia: não tinha fé, nem acreditava na imortalidade da alma. Queria apenas levar o consolo da religião a seus paroquianos. Tirar a espiritualidade e a ilusão de uma vida eterna seria uma crueldade com o povo simples da sua aldeia.

Uma das frases mais conhecidas de Miguel de Unamuno é sobre uma igreja presa a rituais e dogmas inquestionáveis: “Uma fé que não duvida é uma fé morta”. Duvidar de dogmas e ideologias virou hábito. Ele ajudou a destronar o rei e a fundar a República para se decepcionar, ao perceber que tanto os valores espanhóis quanto a liberdade e a democracia começavam a se diluir num governo com tantas ideologias importadas, tantos “ismos” diferentes lutando entre si. Pelas críticas ao saco de gatos ideológico, foi destituído do cargo de reitor pelo governo republicano. Retornou ao cargo graças à junta militar do governo provisório depois de apoiar a revolta, acreditando na ilusão de uma volta à ordem institucional pelas mãos do Exército.

Ao ver a sede de sangue da extrema direita raivosa clamando por uma guerra santa contra o “câncer da esquerda”, se voltou, talvez tarde demais, contra o fascismo desenfreado. Perdeu amigos e alunos para o regime de terror que caçava “maus espanhóis” para ser fuzilados em valas ao redor de Salamanca.

Como reitor, sentou-se a contragosto à mesa diretora numa cerimônia sobre a celebração da raça espanhola na Universidade de Salamanca. A plateia formada de falangistas gritava “Viva la muerte”, enquanto ouvia deliciada discursos sobre o câncer da esquerda e como “precisava ser extirpado com um frio bisturi, mas com ardor patriótico”.

Decidiu então falar, convencido de que o silêncio seria sinal de conivência: “Hoje vivemos um suicídio coletivo entre partidários do fascismo e comunismo, dois lados da mesma doença mental. Vocês fascistas desejam a morte da vida. Ganharão porque têm a força bruta. Mas vocês não convencerão. Porque, para convencer, é preciso persuadir e, para persuadir, vocês precisam de algo que não têm: razão e direito”. Antes de quase ser linchado, saiu escoltado, para logo ser destituído do cargo de reitor, dessa vez pelo já generalíssimo Franco.

Num país radicalizado, preso num conflito entre extremos, fica difícil achar um caminho pelo meio. Miguel de Unamuno tentou, mas não achou. Morreu só, em prisão domiciliar. Não como um jacaré paralisado pela lanterna da ideologia, mas como um marisco. Aquele que sempre se dá mal na eterna briga entre o mar e o rochedo.
Marcello Serpa

Paladinos ilegais e profetas infiéis, heranças seculares e perigosas

O advogado, escritor, político e revolucionário Maximilien Robespierre conquistava simpatizantes com posições humanistas, era contrário à escravidão, à pena de morte e defendia a participação política de todos os cidadãos, independentemente de seu lastro financeiro.

Ele se tornaria líder dos jacobinos, ala revolucionária mais radical, e rapidamente sua parcimônia seria substituída pelo autoritarismo, que em nome da causa decapitaria amigos por divergências de toda ordem. Mas da ala dos descontentes um estruturado revés levaria também sua cabeça para rolar na Place de la Concorde.

Na democracia, os reveses que inquietam por alternar extremos ideológicos também principiam nas insatisfações, porém se concretizam nas urnas, sem ferimentos democráticos. Uma vez empossado, o novo mandatário deve abandonar a belicosidade eleitoral e encontrar os caminhos para validar suas promessas, sem distanciamento dos crivos institucionais e do sentimento popular, sob o grave risco de decapitação no pleito seguinte, ou durante o vigente.

É alternativa condenável o aparelhamento do sistema administrativo para, em seguida, mutilar as instituições e modular o governo longe da participação popular. Essas estratégias, ou tentativas, para linhas à direita ou à esquerda, ensaiadas ou implementadas, nunca deixam bons saldos.

Outra tática para dominar as massas e os consequentes triunfos políticos contempla alinhamento por arrimos religiosos, não faltando habilidosos articuladores que se utilizam, para suas próprias pretensões, da fé incondicional dos seguidores. As religiões têm variadas teceduras em suas origens, provavelmente a frágil pequenez humana perante o universo tenha sido detectada muito cedo por nossos ancestrais e, desde quando nós encontramos registros, nossa jovem espécie tem seus credos.


A adoção do cristianismo, em 323, por Constantino, no Império Romano, foi simbiótica, crucial para estender a sustentação imperial, porém ainda mais importante na imensa propagação da religião cristã. Mas a frente única de doutrinas seria contestada em sua hegemonia quase 12 séculos depois, por Martinho Lutero, principiando dissidências que se estabeleceram em diversos nomes.

Importante marco das cisões internas no cristianismo, e notório exemplo da relação entre religião e poder, se deu quando Henrique VIII oficializou a Igreja Anglicana em substituição à Católica. A atitude do rei, em 1534, foi tomada em retaliação ao papa, que não lhe concedera o divórcio de sua primeira esposa, a rainha espanhola Catarina de Aragão. Henrique estava decidido a se casar com Ana Bolena.

A partir de então, a Grã-Bretanha viveria séculos de terror nos grandes duelos entre cristãos de uniformes diferentes, enquanto na França, do mesmo modo, se verificavam muitos massacres e sangue antes e depois da permissão para o culto protestante.

A mistura de religião e poder é cáustica e perigosa, emotiva e raramente racional, míope quando homogênea e segregante, assim como tempestuosa, se é impositiva. Por outro lado, o elo entre a religiosidade e as soluções de enfermidades permanece no imaginário humano, e aqui não se discutem suas bases, mas a ciência caminha bem por quase todas as crenças. São bastante pontuais afrontamentos religiosos perante condutas ditadas pela ciência, e propositadamente não enunciarei nenhum deles.

Muito embora alguns credos, em raras ramificações, contemplem sacrifícios, em geral sucede o contrário, buscam dádivas que intercedam em sobrevivências ameaçadas, habitualmente em favor da vida.

Sobraram vozes consonantes, em Legislativos e Executivos de todas as nossas esferas governamentais, para o desesperado manifesto de alguns líderes religiosos solicitando exceção para execução de cultos, em oposição contundente às então orientações das autoridades sanitárias. Buscavam apoio oficial para convocar fiéis à aglomeração, chamamento que já verificava em ato clandestino, desumano e inaceitável para os propósitos dessas instituições.

Fosse a arrecadação dos dízimos para quitar os débitos de R$ 1,9 bilhão inscritos na Dívida Ativa da União, seria ao menos compreensível, embora equivocado. Contudo o argumento se derramava no que entendem como necessário louvor a Deus, sugerindo incapacidade do ser supremo quanto à onipresença nos lares e quinhões planetários.

Por aqui, todos os dias surgem Robespierres de inúmeras tribos com a promessa paladina de uma inadiável limpeza institucional, mas perdem a mão ou pelo exagero, rasgando o Código Penal, ou desmantelando (aparelhando) a estrutura para estender o domínio, sem nos distanciar do caos. Na mesma esteira são muitos os candidatos a Henriques VIII, resolvendo suas dores com os suores e vidas de seus fiéis e/ou eleitores.

Preocupa muito que em breve escolhamos nas eleições os representantes do empresariado, da indústria, do mercado financeiro, do setor imobiliário, de frações religiosas, de facções criminosas e de grupos de extermínio, mas não elejamos ninguém que defenda os interesses coletivos.

Aqui a morte é tanta

Mesmo ainda sem saber de sua morte, Eva Wilma me emocionou, quando vi anteontem um vídeo em que, cerca de dois anos atrás, ela declamava de cor, sem vacilar, sentada na primeira fila da plateia, um texto de mais de dois minutos de “Antígona”, de Sófocles, no Teatro Poeira, de Andrea Beltrão e Marieta Severo. A personagem, como se sabe, é uma trágica heroína grega que enfrenta um tirano, assim como nossa atriz lutou contra a ditadura militar. “Ainda não acreditamos que no final o bem sempre triunfa, mas começamos a crer que o mal nem sempre vence.” Quando encerrou recitando “O mais difícil da luta é escolher o lado em que lutar”, a atriz foi ovacionada. O público tinha entendido o recado, muito atual.

O vídeo me fora enviado pela minha amiga, escritora e juíza Andréa Pachá, depois de um longo papo por telefone, em que eu contava que grande parte das pessoas com quem tinha conversado ultimamente se queixava de depressão, inclusive eu. Dizia que, se o Ancelmo me entrevistasse para sua pesquisa para escolher “a palavra do ano”, não havia dúvida quanto ao meu voto. Bruno Covas ainda não tinha morrido, mas seu quadro era irreversível, e mais uma vez me veio à memória um verso do belo e pungente poema “Morte e vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto: “Como aqui a morte é tanta”. Estava pensando, claro, nos milhares de brasileiros exterminados pela pandemia.


A manchete de ontem da coluna de Patrícia Kogut, baseada em pesquisas, é “Brasileiros em peso se interessam por CPI da Covid”. Ela acrescenta que está todo mundo assistindo e comentando. Amanhã, então, a audiência deverá bater o recorde, pois, palpito eu, as pessoas querem saber se Pazuello blindará o presidente, atraindo para si toda a responsabilidade dos malfeitos na pandemia, como a falta de medicamentos do kit entubação, a crise de oxigênio em Manaus e a indicação de remédios ineficazes no tratamento da Covid-19. Será interessante acompanhar os malabarismos que o general fará para se equilibrar entre o direito de ficar em silêncio garantido pelo habeas corpus e a obrigação de não mentir.

O senador Renan Calheiros, relator da CPI, declarou domingo à noite na GloboNews que a comissão está tranquila, pois nem todos perceberam que o habeas corpus só permite que o ex-ministro da Saúde fique calado em relação ao que possa incriminar a si próprio. Isso os outros depoentes farão. A ele caberá a obrigação de incriminar terceiros. Quem deve estar tenso é o presidente, arrependido de não ter protestado — ao contrário, riu satisfeito —quando o general, subserviente, disse, apontando para o capitão e garantindo: “Um manda, o outro obedece”.

Está previsto para depois de amanhã o depoimento da secretária de gestão do trabalho e da educação na saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, conhecida como “Capitã Cloroquina”. Seus advogados apresentaram um pedido de habeas corpus preventivo, mas até a noite de segunda não se sabia o resultado.

É preciso comer Jair Bolsonaro

Jair Bolsonaro, com a graça e elegância que lhe são próprias, disse hoje àquela gente pitoresca que se acotovela na saída do Palácio da Alvorada que ele é “‘imorrível”, “imbrochável” e “incomível”. Bolsonaro quis bancar o impagável, apenas no sentido da comicidade, visto que no outro já não aparenta ser faz tempo, mas é mesmo intragável.

Ele, no entanto, tem razão: permanecerá “incomível” até 2022, se a CPI da Covid não recomendar a abertura imediata do processo de impeachment. O simples envio das provas obtidas pelos senadores ao Ministério Público, para abertura de investigações criminais, não basta. É preciso que a CPI resulte em processo político sumário, sob pena de Jair Bolsonaro continuar sabotando o combate à pandemia. Hoje, por exemplo, ele chamou de “idiotas” quem recomenda às pessoas para ficar em casa, sob o falso argumento de que as medidas de combate à pandemia são ruins para a economia, quando são justamente o contrário: ajudam a que as atividades sejam retomadas com mais segurança e mais rapidamente.

Já existem provas abundantes de que Jair Bolsonaro atentou contra a saúde pública. O depoimento do presidente regional da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, à CPI da Covid foi por si só devastador. Cerca de 3,5 milhões de brasileiros a mais poderiam ter sido vacinados com o imunizante do laboratório americano até o final de junho, se o governo não tivesse sido ignorado cinco propostas da Pfizer feitas em 2020. Num cálculo muito conservador, feito pelo epidemiologista Pedro Hallal, pelo menos 14 mil cidadãos teriam sobrevivido à doença, caso Jair Bolsonaro e seus cúmplices tivessem aceitado a oferta.

Todos os fatos já elencados são suficientes para o início de um processo de impeachment que independe do trabalho a ser feito pelo Ministério Público, ao final da CPI da Covid. Para além de Jair Bolsonaro insistir em sabotar as medidas restritivas, ele deliberadamente não quis evitar a contaminação e morte de milhares de brasileiros. Ao que tudo indica, buscou — e busca — a propalada “imunidade de rebanho” por meio do sacrifício de vidas. Matar deliberadamente um povo é genocídio. Sou cuidadoso com as palavras, mas acredito que a tipificação do crime vai muito além da desídia: existiu — e ainda existe — a intenção de matar em massa uma determinada população. A nossa.

Senadores e deputados fazem cálculo eleitoreiro ao deixar o carniceiro no Planalto. O pretexto de que não daria tempo para o impeachment é falso. A desculpa de que o impeachment tumultuaria ainda mais o ambiente no país é imoral. Trata-se de iniquidade deixar Jair Bolsonaro sangrando na Presidência da República, como se o sangue fosse apenas o metafórico, não o real das vítimas da Covid. A imoralidade é absoluta e os parlamentares serão cúmplices dela se nada fizerem de concreto para tirar de cena personagem tão abjeto. É preciso comer Jair Bolsonaro. Não em 2022, mas agora.