quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Gambiarras literárias

Trocar inteiramente livros didáticos físicos por produtos digitais nunca foi uma boa ideia. Ainda que a tecnologia possa tornar as aulas mais atraentes, incorporando rico material de apoio, há uma montanha de evidências empíricas mostrando que a leitura em papel é mais eficaz do que a em tela. No suporte tradicional, o leitor dedica mais atenção à atividade e retém melhor as informações aprendidas.

Não é um efeito muito forte, mas ele aparece de forma consistente na maior parte dos estudos. Os livros da neurocientista Maryanne Wolf sobre o assunto são uma excelente fonte de dados e interpretações.

Uma parte do problema é fácil de explicar. O sujeito que vai ler um livro no computador ou no celular facilmente se deixa distrair pelas múltiplas tentações da internet. A luz oscilante das telas também torna a tarefa mais cansativa.


Quando passamos das telas para dispositivos de leitura como o Kindle, em que a internet não está tão disponível e que trocam a luz azul pela tecnologia do papel líquido, os efeitos adversos se reduzem, mas não desaparecem. Uma hipótese para explicar a persistência da diferença é que há fisicalidade na leitura.

Virar páginas e monitorar pelos olhos o avanço do processo ajudam o cérebro a montar os mapas mentais em que ele se apoia para realizar tarefas e memorizar informações. No caso da escrita, o vínculo entre a parte motora (desenhar as letras) e o aprendizado já está bem estabelecido.

Essas conexões inesperadas se tornam menos misteriosas se considerarmos que a leitura e a escrita, ao contrário da linguagem falada, são novidades em nossa história evolutiva. Ainda não desenvolvemos estruturas cerebrais especializadas para lidar com elas. O que fizemos foi cooptar outras estruturas. O reconhecimento de letras, por exemplo, se dá na mesma área que reconhece rostos. Desse amontoado de gambiarras e puxadinhos, aparecerão mesmo algumas surpresas.

O semelhante cura o semelhante

Adeptos da homeopatia, a Rainha Elizabeth, Paul McCartney e Bill Clinton são sua melhor propaganda. Tente supor quais as principais manchetes médicas da última edição da imprensa mundial com o necrológio da vida na Terra derretida pelo calor. Certamente, se resumiriam a cinco boas notícias sobre saúde dos últimos 3 mil anos: Nasceu a acupuntura; Descobriram a homeopatia; Inventaram a psicanálise; Criaram a penicilina ; Transplantaram um coração.

Originado em sistemas humanistas cuja vocação é se dedicar a escutar o sofrimento e ajudar as pessoas a restabelecer a saúde, sem as distrações que a medicina biotecnológica produziu no corpo e na mente, só deveria ser permitido o exercício da medicina a quem confia na energia vital do corpo posta em liberdade para agir sobre as moléstias. A pretensão obsessiva de curar você de si mesmo que a medicina industrial pratica é uma boa oportunidade para se decepcionar com quem a defende. Médico é quem se recusa a ver um só sintoma e não anula a missão do corpo e do desejo de viver e vencer os fenômenos mórbidos que cercam nossa vida.


A esperança de viver é mais forte do que pode imaginar a má medicina, e em muitos casos morre-se primeiro na UTI. Mas o jeito Revista Caras da inteligência atual está com a corda toda e faz crescer a disposição para falar bobagens e embarcar no élan de conquistar e destruir do cavador. Desfalecido de rir, aguarde o pau na fonoaudiologia, gelo na contusão, dedo no pulso para medir pressão, emplastro de tofu. A isca da denúncia não desmoraliza o anzol da criação nem confere ao boato a cortesia da verdade da opinião. A ciência poderia anunciar uma exuberante persistência vital, mas o uso torto do seu nome faz a vitalidade e a alegria desaparecerem dos corações. As ambições da ciência são indiferentes sobre o que será do mundo. Aborrecida com o espírito de liberdade e a perigosa aventura da ideia natural, ela vê o diferente como antagonista do progresso. E se coloca acima da vida do outro, por não estar à altura dela.

Há um quê de deleite em falar mal do que não é carceral, interdição e poder. E há um aspecto sombrio nos estudos que exalam raiva da liberdade afrouxando as exigências da medicina sobre si mesmo. Em qualquer profissão, conselhos corporativos sem controle externo são cartórios privados.

Vítimas conhecem melhor o que se fez delas. Estão aí as mortes provocadas por drogas legais e erro médico. Um escárnio que se tornou a parte que o povo menos vê e o que mais sente.

O que é a vida, o que é a matéria médica, Deus que nos acorde de tirar proveito de distorcer o direito. De onde vem esta condenação sem apelo às sessões demoradas de anamnese, médicos relíquia que tocam nos pacientes, acompanham famílias, crianças, idosos, seus odores, alucinações do olfato e dos humores. Acreditam no tratamento conservador das fraturas, conhecem os meridianos do corpo, sabem por que alguém tombou do lado errado, médicos que não são sócios de laboratórios e cirurgias. É carnavalesco não serem considerados ciência doses fracas, diluídas, agulhas, pomadas, infludo, alimentos convenientes – sólido na moléstia crônica, líquido nas agudas –, defesa intransigente da higiene. Dinamizações variadas, embrocações, talcos, supositórios, dietas. Uma equilibrada dose de nux vômica ajuda bem aos impulsivos temerosos de fracasso.

A homeopatia não está na farmácia popular pelo mesmo motivo que os ansiolíticos, anticonvulsivantes, antidepressivos e antipsicóticos também não estão. As práticas integrativas e complementares ameaçam a farmacoeconomia e irritam seus sócios prêt-à-porter. O que precisa ser preservado é a alta costura da saúde da população, a avant-garde de quem sabe do sucesso do diagnóstico que transcende a medicina que não foi sequestrada pela ciência.

A gloriosa inventividade da medicina popular não é cativa do jugo bruto do poder médico, embora sofra ataque de quem se dispõe a desmoralizar a medicina milenar. Não é para impedir, é para tirar a confiança. Profissão e vocação são coisas diferentes, confusão de quem quer encantonar o Ministério da Saúde para tentar desmoralizar a liderança do não médico, como foi José Serra e, agora, é Nísia Trindade.

Disparates? Com tantas coisas para enriquecer nosso povo, como se não as tivesse, o Brasil verídico é um estrondoso sucesso de fraudes encaixadas no baralho do poder. Objeto cobiçado, a sabedoria popular e dos menos deslumbrados com antibiótico e bisturi não perdeu seu atrativo. Não é dos consagrados saberes medicinais que o povo usa que o crítico não gosta, é do povo mesmo. Estudo médico com tom de julgamento civil aponta para doença das condutas, insinua interdição e perda de direitos.

Na riqueza das farmácias se descobre o segredo dos críticos da medicina milenar. Na vida real de quem precisa e recorre sem preconceito aos dois modelos de medicina, a balança nos diz que os defeitos da qualidade da alopatia, drogaria e psiquiatria são maiores que a qualidade dos defeitos da homeopatia, acupuntura e psicanálise.

Estamos condenados à barbárie?

Entre o final de julho e o começo de agosto, somaram 45 os mortos em operações policiais contra o tráfico de drogas na Bahia, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Do total, uma vítima era agente da lei. A tragédia escancara a brutalidade em que estamos imersos.

Em 2019, segundo o Observatório Global da Organização Mundial da Saúde, só dez países tinham taxas de homicídio maiores do que o Brasil. Formávamos um time da pesada com países a que não costumamos nos comparar: África do Sul, Lesoto e oito vizinhos latino-americanos ­—El Salvador, Honduras, Colômbia e Venezuela, além de quatro nações caribenhas.



No ano passado, a violência tirou a vida de cerca de 48 mil brasileiros. Em média, polícias foram responsáveis por 17 mortos a cada dia, informa o Anuário do Fórum Nacional de Segurança Pública. Como seria de prever, a barbárie não se distribui igualmente pela federação. Amapá, Bahia, Sergipe, Pará e Goiás lideram o rol de homicídios; somados ao Rio de Janeiro, também o do uso abusivo da força policial. Tampouco a matança atinge todos na mesma proporção: de ambos os lados do tiroteio, homens negros, jovens e pobres correm risco sempre maior.

As estatísticas ajudam a perceber o tamanho da catástrofe, mas não dão a medida do sofrimento das famílias atingidas, nem do medo dos ameaçados mais de perto, nem do sentimento difuso de insegurança dos que temem a violência letal, ainda quando é menor o risco de vir a sofrê-la. Também não medem o impacto da violência sobre a vida política democrática.

A direita há muito descobriu que a exploração do medo —diariamente cevado pela mídia sensacionalista— e a defesa da força bruta contra suspeitos rendem votos. A cada eleição cresce a "bancada da bala" na Câmara dos Deputados, assim como o número de eleitos saídos dos aparatos policiais nos estados. Para os paulistas, a defesa brandida pelo governador Tarcísio de Freitas dos desmandos cometidos pela Operação Escudo, em Guarujá, exuma os tempos de Paulo "bandido bom é bandido morto" Maluf.

Bolsonaro e seus seguidores não fizeram mais que entoar aos berros refrão bem conhecido.

Os democratas comprometidos com o social têm o desafio —e o dever moral— de recorrer às experiências bem-sucedidas de governos subnacionais e de organizações da sociedade, além dos confiáveis dados disponíveis, para implantar formas civilizadas de garantir a segurança pública.

Nos 14 anos em que governou o país, a centro-esquerda não se destacou por inovar nessa matéria. Tem agora nova oportunidade de mostrar que não estamos condenados à barbárie.