segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Brasil sem queimadas


Um lugar errado no mundo

Se com Lula já era claro que a política interna vivia fortes condicionamentos externos, particularmente no que se refere a uma inserção do País na globalização, marcada por tensões ideológicas, sem considerar o nível de criminalização que em paralelo se praticou, com o governo Bolsonaro, excetuando aparentemente esta última ponderação, a dimensão internacional parece ser inescapável. O episódio da indicação do filho, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), é ilustrativo dessa evidência.


Com Bolsonaro acentua-se a percepção de que nos encontramos imersos naquilo que Giuseppe Vacca define como “conflito econômico mundial”, uma situação sistêmica que caracteriza o mundo desde a superação da guerra fria, posicionando-nos definitivamente no tempo da globalização. Trata-se de um conflito perene e global que envolve múltiplos atores em torno de decisões geopolíticas, econômico-financeiras, do mundo do trabalho e da cultura, questões tecnológicas, ambientais, etc.

Torna-se conveniente, assim, analisar o governo Bolsonaro a partir dessa perspectiva. Seu nacionalismo e seu notável reacionarismo são equivalentes ao que ocorre em diversos países e traduzem o lugar que Bolsonaro vê para o Brasil no contexto global. O que se apresenta nos EUA sob Trump ou na Hungria sob Orbán tem lógica similar aos posicionamentos de Bolsonaro, embora este possa talvez ser considerado o mais despreparado dentre tais líderes, tanto em termos pessoais como de assessoria imediata.

O momento que vivemos não recoloca na agenda mundial o retorno da guerra fria, mesmo porque não há duas potências orientando os vetores do “conflito econômico mundial”. A guerra fria foi um conflito forjado de dentro para fora das duas potências rivais, os Estados Unidos e a União Soviética, e representou um equívoco de ambas, já que nenhuma delas seria capaz de suplantar a outra e estabelecer um domínio efetivo a partir de uma suposta vitória militar sobre a adversária (G. Vacca, La Sfida de Gorbaciov – Guerra e Pace nell’Era Globale, no prelo).

Parece não haver espaço também para outros retornos cultivados no imaginário de muitos que ambicionam combater a extrema direita como um conflito do tipo “comunismo versus fascismo” – por evidente anacronismo, além do erro de avaliação que julgava ser tal disjuntiva a única alternativa que existia na década de 1930 –, ou uma confrontação do tipo “frente popular versus nazi-fascismo”, como sucedeu no século passado.

O bipolarismo morreu com a guerra fria, mas um multilateralismo compartilhado pelos principais países ainda não se consumou. O momento evidencia um avanço da extrema direita, até mesmo com a formação de entidades autônomas de orientação internacional de que participam representantes do governo Bolsonaro. Na outra ponta há forte desorientação da esquerda, com inclinações incompreensíveis para uma política de autoisolamento; a exceção surpreendente fica por conta da esquerda dita tradicional, que tem buscado uma renovação, ainda precária e inicial, mas que já dá alguns frutos, como os avanços eleitorais da social-democracia em alguns países europeus. Liberais, conservadores e liberal-democráticos vivem cada um sua própria crise, fustigados pelo iliberalismo da extrema direita, que põe em xeque os fundamentos da democracia liberal representativa. Nas recentes eleições europeias, a novidade foi a emergência de núcleos ecológicos, especialmente os verdes alemães, que difusamente atuam em busca de expressivas alternativas futuras, mas sem ainda alcançar capacidade orgânica e/ou institucional de se conformarem num peso forte no cenário mundial.

Mesmo de forma errática, Bolsonaro se posiciona claramente contra o globalismo e, pela via de um nacionalismo anacrônico, aposta na sua capacidade de anular a dinâmica e os efeitos da globalização entre nós. Trata-se de um equívoco: não há país que possa ficar de fora do “conflito econômico mundial”, que se expressa de forma global. O alinhamento ativo diante dessas circunstâncias – que Bolsonaro por seu viés ideológico de extrema direita não contempla – é a defesa de uma perspectiva de cooperação entre os países, advinda de uma nova orientação estratégica, isto é, de uma política de interdependência que favoreça a convivência entre diferentes e a busca de um destino comum para a humanidade. O regressismo de Bolsonaro é uma escolha que leva o País para o pior dos lados do “conflito econômico mundial”, numa posição subalterna ao atual governo norte-americano, além de vinculá-lo ao que há de mais reacionário na política europeia.

Por um lado, é inútil afirmar uma visão apologética ou catastrófica do novo cenário criado pela globalização. Por outro, no caso brasileiro não se trata apenas de retomar uma política externa equilibrada, uma das marcas da nossa História diplomática, mas de enfrentar politicamente o “conflito econômico mundial” e apresentar ao mundo uma orientação nova diante de um cenário novo. O passado pode, certamente, nos ajudar, mas não será a chave para um futuro de ampla cooperação, suplantando os vetores ideológicos.

É preciso politizar, em termos democráticos, tanto externa quanto internamente, o quadro de conflitos que se estabelece no mundo atual. Isso significa superar a noção tantas vezes mencionada de que vivemos um tempo em que “a política está morta”. Ao contrário, é preciso ultrapassar a antiga noção territorial de soberania nacional e buscar uma perspectiva inovadora para conectar cidadania, nação, interdependência e cooperação. E, com isso, avançar no sentido de recolocar a modernidade em novos termos, com seus ricos avanços e aberturas ilimitadas a novas subjetividades.

O regresso a um nacionalismo anacrônico manchado de reacionarismo não nos serve e pode malograr todas as expectativas de um lugar generoso no mundo para os brasileiros.

Volta dos que não foram

Nas últimas eleições, o eleitorado brasileiro se guiou mais pela raiva do que pelo desejo de autoritarismo. Pessoas votaram em Bolsonaro em parte porque ele prometeu atacar a elite e o status quo.
 
Mas é fato que há uma emergência de gerações que, trinta anos após a primeira onda de democratização pelo mundo, não lembram mais do autoritarismo. Pesquisas em países como a Polônia, Espanha e Brasil mostram que essa geração pós-autoritarismo está esquecendo as lições deixadas por pais e avós, o que é trágico
Steven Levitsky

Bando de cafonas

A Amazônia em chamas, a censura voltando, a economia estagnada, e a pessoa quer falar de quê? Dos cafonas. Do império da cafonice que nos domina. Não exatamente nas roupas que vestimos ou nas músicas que escutamos — a pessoa quer falar do mau gosto existencial. Do que há de cafona na vulgaridade das palavras, na deselegância pública, na ignorância por opção, na mentira como tática, no atraso das ideias.

O cafona fala alto e se orgulha de ser grosseiro e sem compostura. Acha que pode tudo e esfrega sua tosquice na cara dos outros. Não há ética que caiba a ele. Enganar é ok. Agredir é ok. Gentileza, educação, delicadeza, para um convicto e ruidoso cafona, é tudo coisa de maricas.


O cafona manda cimentar o quintal e ladrilhar o jardim. Quer todo mundo igual, cantando o hino. Gosta de frases de efeito e piadas de bicha. Chuta o cachorro, chicoteia o cavalo e mata passarinho. Despreza a ciência, porque ninguém pode ser mais sabido que ele. É rude na língua e flatulento por todos os seus orifícios. Recorre à religião para ser hipócrita e à brutalidade para ser respeitado.

A cafonice detesta a arte, pois não quer ter que entender nada. Odeia o diferente, pois não tem um pingo de originalidade em suas veias. Segura de si, acha que a psicologia não tem necessidade e que desculpa não se pede. Fala o que pensa, principalmente quando não pensa. Fura filas, canta pneus e passa sermões. A cafonice não tem vergonha na cara.

O cafona quer ser autoridade, para poder dar carteiradas. Quer vencer, para ver o outro perder. Quer ser convidado, para cuspir no prato. Quer bajular o poderoso e debochar do necessitado. Quer andar armado. Quer tirar vantagem em tudo. Unidos, os cafonas fazem passeatas de apoio e protestos a favor. Atacam como hienas e se escondem como ratos.

Existe algo mais brega do que um rico roubando? Algo mais chique do que um pobre honesto? É sobre isso que a pessoa quer falar, apesar de tudo que está acontecendo. Porque só o bom gosto pode salvar este país.

Fernanda Young (última crônica)

Rumo ao G7 a 1

A crise da Amazônia é o maior desastre da história diplomática brasileira das últimas décadas. Isso, filho, pede para o Olavo escolher o chanceler, vai dar certo.

O presidente da França, Emmanuel Macron, propôs o fim do acordo da União Europeia com o Mercosul. A Finlândia propôs um boicote à carne brasileira. O novo primeiro-ministro conservador do Reino Unido, Boris Johnson, e a alemã Angela Merkel devem garantir a sobrevivência do acordo, mas vão exigir providências brasileiras. Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, postou que defende o acordo, mas advertiu que sua “ratificação harmoniosa” será difícil se o governo brasileiro permitir a destruição da Amazônia.

E mesmo Donald Trump, quando ofereceu ajuda ao Brasil, contrariou o discurso oficial bolsonarista de que a crise era “fake news”.

Ficamos sozinhos, passamos vergonha.


O governo brasileiro tentou reagir à crise mentindo: o presidente mentiu que as ONGs haviam colocado fogo na Amazônia, vários ministros mentiram que a crise era uma conspiração de esquerdistas.

E todos ficaram chocados quando descobriram que as grandes potências são menos otárias do que a sua tia que caiu no conto da mamadeira de pinto do WhatsApp.

Na mesma hora, os militares e outros governistas (em rara sintonia) protestaram contra a violação de nossa soberania nacional.

Não, ninguém propôs nada que exigisse coragem ou sacrifício, mas o ministro do Meio Ambiente chamou Macron de “Mícrion”, o embaixador Eduardo Bolsonaro postou um vídeo chamando o francês de idiota, e o perfil oficial do presidente da República (que deve ser administrado pelo Carlos) riu de um comentarista que disse que Macron tem inveja de Bolsonaro porque sua mulher seria mais feia que dona Michelle.

Isso, moleques, vão nessa, acho que mais uma piada sobre o tamanho do Johnson do Boris e pronto, já garantimos nossa vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Essa palhaçada toda aconteceu enquanto o agronegócio brasileiro se desesperava com a possibilidade de sofrer sanções comerciais pelo aumento do desmatamento.

A crise diplomática mostra como o bolsonarismo enfraqueceu o Brasil.

Não há dúvida de que outros países podem se aproveitar da crise —que é real e gravíssima— para interferir na soberania brasileira. Mas essas intervenções são como ataques especulativos à moeda nacional: não acontecem contra países bem administrados.


A crise das queimadas não deve ser causada apenas pela política ambiental. Mas não estaríamos vulneráveis às ingerências internacionais se a política ambiental bolsonarista não fosse a pior do mundo.

E aí se entende o problema do bolsonarismo com o “globalismo”. Não é anti-imperialismo, muito pelo contrário. Bolsonaro entregou a base de Alcântara para os americanos e disse que uma das missões de seu filho é encontrar mineradoras americanas para explorar garimpos na Amazônia.

O que incomoda os bolsonaristas na globalização é o risco de que, conforme as trocas comerciais entre os países se desenvolvam, surjam normas internacionais de decência. O bolsonarismo só venceu no Brasil porque, em um dado momento de crise, as nossas se afrouxaram.

Celso Rocha de Barros
PS: o título da coluna foi tirado de um tuíte de @_tatarana

Ponte fora do mapa

Ponte clandestina que os madeireiros estão construindo, no Pará,
 para escoar toras roubadas (Imagem: Fantástico)

Queimadas à direita

Nossos corações pegam fogo com as queimadas na Amazônia. Não é só que o incêndio da floresta nos faz temer pelo futuro físico do Brasil e do mundo, como é natural que aconteça. Mas a fumaça, que nos faz anoitecer tão cedo, talvez nos torne incapazes de reconhecer o desmantelamento provável da nação que tentamos elaborar, ao longo da história recente.

Um dos orgulhos conceituais que nos sobrevalorizavam, um orgulho que nos ajudava a dar-nos uma importância vaidosa que talvez não merecêssemos, era justamente essa Amazônia agora em chamas, o “pulmão do mundo”. Pois era aquele pedaço do planeta que gerava ar e energia para o resto do mundo. Agora, o Brasil se vê massacrado por esse resto do mundo e nossa decepção começa por saber que, afinal de contas, nem ao menos somos mesmo o pulmão do mundo.

Sempre fomos objeto de uma narração hipócrita, começando pela colonização suspeita de desterrados da metrópole que implantaram, num espaço sem lei, o mais cruel regime autoritário de submissão dos povos originais e de escravização de povos trazidos de longe. Foi assim que criamos a civilização da preguiça e da crueldade contra quem tentasse perturbá-la. O Brasil se formou política, social, cultural e eticamente a partir dela, com um rigor de quatro séculos que não poderia desaparecer com uma simples canetada de Isabel.

Antes da princesa, Pedro II tentou nos dar um caráter nacional promovendo, durante seu longo reinado, uma ideia de Brasil em que os brasileiros acabaram por acreditar. Para nossas elites, passamos a ser o país da cordialidade, da fraternidade, do sorriso solar em qualquer circunstância. Mas continuamos a ser uma sociedade organizada com rigor hierárquico, onde qualquer pobre, índio, preto ou pardo nunca poderia ser dono de seu nariz. A liberdade, entre nós, sempre foi só um motivo para apanhar da polícia.

Nunca fomos gentis e cordiais, como a crônica dos viajantes queria. Nossos acontecimentos mundanos, assim como nossas guerras domésticas, sempre estiveram encharcados de sangue, como em qualquer outro lugar do mundo. Mas aceitamos vender uma imagem que nos tornava uma espécie de paraíso tropical para os espíritos da ordem universal que precisavam disso. Uma hipótese de humanidade que justificava paradoxalmente as crueldades praticadas por eles por aí. Hoje, além de aplaudirmos uma liderança que deseja que o mundo se dane, aprendemos também que não somos mais o seu pulmão.

Até recentemente, ninguém tinha coragem de se declarar de direita no Brasil e na maior parte dos países democráticos do mundo. Não era propriamente um problema político, muito menos uma decisão moral. Declarar-se de direita seria mais uma negação dos tempos em que se vivia, uma opção por algo sem valor na ordem social das coisas. Não se destacava junto ao resto da humanidade, que estava obcecada por um comportamento dito revolucionário, mesmo que não o fosse tanto assim. Antes de tudo, era de bom tom ser revolucionário.

Ser revolucionário significava negar o mundo em que vivíamos e propor alguma coisa diferente, nem que fosse apenas no estilo e nas roupas que então usávamos. Ser revolucionário era ter imaginação, não se submeter aos costumes vigentes, fosse qual fosse o seu sentido em relação ao que se pensasse do mundo. Vivíamos na suposição da liberdade, porque ela mesma de fato nos metia medo. Agora, os pregadores de velhas novidades não sabem mais em nome do que defender o que defendem.

Quando a direita chegou e disse seu nome para que a esquerda não pensasse que estava sozinha a tomar conta das esperanças da humanidade, ficamos perdidos e não entendemos nada. Quem tinha receio da esquerda e a ouvia por conforto, perdeu a confiança no que ela dizia, como se sua pronúncia tivesse mudado e, agora, eram eles os estranhos estrangeiros. A esquerda não sabia falar a língua de todos, porque inventou uma língua que ninguém falava.

No fundo, a direita veio para mostrar que o mundo não é bem assim. Não há nenhuma necessidade de raciocinar, o mundo deve permanecer ao sabor do que acontece, sem essa de querer entender porquê. Enquanto não inventarmos nada de realmente novo, distante dessa estúpida razão binária de direita e esquerda, não teremos o direito de tratar o Brasil como a esperança do mundo. Ah, não sei quanto tempo isso vai durar.

Cidadãos assassinos



A pátria é destruída constantemente. Os destruidores estão dentro de nós
Pablo Neruda, "Pelas praias do mundo"

Tranco no barranco

Presidente Jair Bolsonaro levou um tranco forte quando caminhava para a beira do barranco que poderia levar o Brasil ao fundo do poço onde residem párias internacionais, inimigos da civilidade na qual ocupa lugar de destaque o esforço global pela preservação do meio ambiente, vale dizer, da vida no nosso já tão castigado planeta.

Forçado pelas circunstâncias, recuou (temporariamente?) da negação beligerante com que trata uma questão em que se envolvem também enormes interesses políticos e comerciais.

Há muito oportunismo e desinformação no horizonte, mas o fato é que o presidente contratou o cenário de crise internacional com seu total despreparo para lidar com qualquer debate que requeira pensamento e argumentos mais elaborados. De onde prefere tratar o contraditório a bofetadas.

Precisou o mundo gritar para Bolsonaro enxergar a linha entre o que é permitido e/ou conveniente no exercício da Presidência. Mudou e baixou o tom. Foi obrigado a recorrer ao Exército depois de ter feito movimentos de desprestígio aos militares que pôs no governo. Para conferir peso à fala deixou de lado a internet e fez pronunciamento no veículo tradicional que tanto critica.

É de se conferir agora se, agastado pelo tranco, não vai recrudescer a retórica no trato de temas de interesse nacional sem tanto apelo mundial, a fim de manter a pose de valentão em seu orgulho de ser reacionário.

Crepúsculos precoces

De uma certa forma, tento falar disso há muito tempo: Bolsonaro não tinha noção das forças que enfrenta quando está em jogo o futuro da Amazônia. É algo que acontecia também com seu ministro Onyx Lorenzoni. Ele disse que não iria ver as queimadas na Amazônia porque há coisa mais importante para fazer.

Como assim? Pareciam ignorar até mesmo a repercussão internacional dessas queimadas. Grande parte do planeta preocupada com o tema; Onyx subestimava. Por muito menos, nas queimadas de Roraima, ministros se deslocaram para lá. Ver o que estava sendo feito, o que era preciso fazer.

Isso numa semana intensa, em que o crepúsculo precoce em São Paulo intrigou a população. Era resultado de queimadas, possivelmente da região de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Mas, de uma certa maneira, realçaram a preocupação com queimadas.


O secretário-geral da ONU se diz preocupado. Macron também se diz preocupado, embora use uma foto antiga e repita o mito da Amazônia pulmão do mundo.

Bolsonaro não inventou as queimadas. Existe uma estação anual do fogo. Mas sabotou muitas formas de combatê-la. Inicialmente, anunciou sua oposição às multas do Ibama, proibiu que fossem destruídos equipamentos clandestinos na mata, questionou os dados do Inpe, demitiu o diretor, rompeu com o Fundo Amazônia, hostilizou a Alemanha e a Noruega. Que, por sinal, financiam a prevenção às queimadas.

O nível de desmatamento sempre aumenta quando diminui a fiscalização. E todos que conhecem um pouco da Amazônia sabem da importância do fator subjetivo. Os desmatadores leem atentamente os sinais do governo. Bolsonaro sinalizou com enérgicas bandeiradas permissivas.

Caminhamos agora para uma grande turbulência. A ideia de refugiar-se no nacionalismo acaba fazendo do Brasil que deseja manter a floresta de pé uma parte da conspiração estrangeira para entregar a Amazônia.

Bolsonaro tende à aventura isolacionista. O caminho é reconhecer a importância planetária da Amazônia, conjugar esforços internacionais para preservá-la e valorizá-la pelo conhecimento.

Num programa de TV, o cientista Carlos Nobre mencionou o açaí, um caso de sucesso rendendo por hectare dez vezes mais que a pecuária. Nos Estados Unidos, o açaí virou moda e seu consumo certamente inspira pesquisas para melhorar e encarecer o produto.

Há pelo menos 400 plantas amazônicas que poderiam ser desenvolvidas, centenas com propriedades medicinais a serem pesquisadas.

Grandes equívocos ambientais são provocados pela busca da riqueza. A política amazônica do governo é um equívoco provocado pela busca da pobreza. Ameaça destruir a biodiversidade em busca de minério, ignorando que o maior valor está sendo destruído.

Se tudo se desse apenas num espaço da economia, já seria um erro. Diante dos olhos do mundo, o governo Bolsonaro se comporta como um aprendiz de feiticeiro. Inclusive com respostas patéticas. Bolsonaro divulgando vídeo de caça à baleia na Dinamarca e acusando a Noruega. Onyx afirmando que a pressão europeia se deve a interesses econômicos, sobretudo porque a esquerda no Pós-Guerra abraçou a ecologia. Macron não é de esquerda; muito menos Angela Merkel. O secretario-geral da ONU?

Desde o princípio, sabia que isso ia ser problemático para o Brasil. Bolsonaro não percebeu que, além das ONGs e dos políticos mundiais, existem milhões no planeta que consideram a Amazônia um bem da Humanidade.

Importante que saibam também que existem brasileiros contra a política de Bolsonaro. Mesmo porque depositam nas costas do brasileiro no exterior um fardo que não é dele. De alguma forma, é preciso mostrar que a visão do governo não é a visão do Brasil. Considerando as condições históricas, a política de Bolsonaro é apenas um desvario. Ela contraria até as forças que o apoiaram, como os setores do agronegócio.

No quartel, ouve-se às vezes o grito “meia-volta, volver”. De um modo geral, vem do oficial superior. Quem vai gritar “meia-volta, volver” para Bolsonaro será uma grande parte da Humanidade. Vamos testar o seu ouvido.

Infelizmente, já existe um desgaste para a imagem internacional do pais. É hora de reduzir os danos.

Paisagem brasileira

Johann Moritz Rugendas 

Bolsonaro silencia sobre volta de aliados às ruas

Jair Bolsonaro reagiu com um ruidoso silêncio à manifestação que seus simpatizantes fizeram neste domingo em duas dezenas unidades da federação. Foi a terceira incursão dos bolsonaristas às ruas desde o início do governo. Os atos foram menores que os anteriores, atiçados e celebrados pelo presidente nas redes sociais. Dessa vez, Bolsonaro e seu clã tomaram distância do meio-fio. Até a madrugada desta segunda-feira, o capitão não esboçara reação no Twitter nem no Facebook. Nenhuma palavra.

Há método no silêncio do capitão. Conforme já comentado aqui, Bolsonaro e o pedaço do asfalto que lhe é fiel passaram a trafegar em faixas opostas. O presidente frita Sergio Moro, gruda em Deltan Dallagnol a pecha de esquerdista, hesita em vetar artigos da lei de abuso de autoridade. Tudo isso e mais a proximidade com Dias Toffoli. A rua enaltece Moro, sonha com Deltan na chefia da Procuradoria, pede o veto integral à lei anti-Lava Jato. E ainda exige o impeachment de Dias Toffoli.

Como não tinha nada a dizer sobre as demandas dos seus apologistas, Bolsonaro se absteve de demonstrar seus paradoxos em palavras. Ao longo do final de semana, inúmeros internautas postaram comentários nas redes sociais instando o presidente a sintonizar-se com a rua. Um deles, identificado como Bunny Sam, conseguiu arrancar meia dúzia de palavras do presidente. Não deve ter gostado do que leu.


"Cuide bem do ministro Moro", escreveu o internauta. "Você sabe que votamos em um governo composto por você ele e o Paulo Guedes". Em sua resposta, Bolsonaro não disse se irá retirar Moro do micro-ondas. E ainda insinuou que não se considera um devedor do ex-juiz. "Com todo respeito a ele, mas o mesmo não esteve comigo durante a campanha".

Se conversasse com seus botões, Bolsonaro talvez retornasse às redes sociais, nesta segunda-feira, para dar respostas às demandas de seus súditos. Sob pena de transformar dúvidas em hostilidade.

Na sexta-feira, nas pegadas de manifestações de rua em defesa da Amazônia, Bolsonaro ocupou uma rede nacional de tevê para tratar da encrenca das queimadas. Conseguiu ressuscitar as panelas. Se continuar desprezando a opinião dos seus adoradores, arrisca-se a juntar numa próxima manifestação a turma do panelaço com a tropa dos desiludidos.

Tragédia ambiental do Brasil parece ter saído dos sonhos de destruição do mago Saruman

É meio apocalíptica a experiência de acordar, abrir as cortinas e perceber que há algo de muito errado com o céu. No cantinho do interior paulista onde vivo, com efeito, o cenário de fim do mundo não veio com a escuridão às 3h da tarde, como na Grande São Paulo, mas por meio do Sol avermelhado, com a mesma cara que teria num crepúsculo de inverno, às 7h30 da manhã. Para chegar até os olhos dos pobres Homo sapiens cá embaixo, a luz precisava atravessar uma sopa grossa de fumaça e nuvens. Saruman tinha triunfado.


“Saru” era um termo repleto de ambivalência para os anglo-saxões de mil anos atrás: incluía, em doses iguais, admiração pela engenhosidade e temor de que ela pudesse ser usada para o engano e a violência".

O nome, que talvez não seja conhecido de quem não leu “O Senhor dos Anéis” nem assistiu às adaptações cinematográficas do romance, é uma das grandes sacadas linguísticas do escritor britânico J.R.R. Tolkien (1892-1973). Em inglês antigo, significa algo como “homem de engenho” ou “homem matreiro”. “Saru” era um termo repleto de ambivalência para os anglo-saxões de mil anos atrás: incluía, em doses iguais, admiração pela engenhosidade e temor de que ela pudesse ser usada para o engano e a violência.

Foi a partir desse complexo de significados que Tolkien desenvolveu a figura do mago renegado Saruman, cuja sabedoria e poder são lentamente corrompidos por sua “mente de metal e engrenagens”, que passa “a não se preocupar com coisas que crescem, exceto até o ponto em que lhe servem naquele momento”, como diz um personagem de “O Senhor dos Anéis”.

Só um lunático poderia acusar Tolkien de ser um “melancia” (verde por fora e vermelho por dentro, ou seja, um comunista disfarçado de ambientalista; sim, é um dos insultos políticos mais imbecis já imaginados, mas releve). O velho professor da Universidade de Oxford era um católico conservador que sentia certa saudade da monarquia medieval – mas foi também um dos primeiros a enxergar com clareza o abismo gerado pela destruição ambiental.

“Em todas as minhas obras, fico do lado das árvores, contra todos os seus inimigos”, escreveu ele em carta ao jornal Daily Telegraph. “O som selvagem da motosserra nunca silencia onde quer que as árvores ainda possam ser achadas crescendo.” Saruman, assim como outros vilões tolkienianos, tem sua integridade corroída justamente pela tentação de passar feito um trator por cima do mundo natural, pelo desejo de submeter tudo o que existe ao projeto que o mago resume com três palavras: “Conhecimento, Governo, Ordem”.

A fortaleza do feiticeiro renegado já tinha sido “verde e repleta de alamedas com árvores frutíferas, mas nenhuma coisa verde crescia ali nos últimos dias de Saruman”.  Há outra coisa em comum entre Saruman e os acontecimentos desta semana trágica, porém. O mago era também um mestre da insinceridade política, da arte de pronunciar discursos nos quais o divórcio entre palavra e ação ganha ares surreais. Vimos alguns exemplos de linguagem sarumânica nestes dias, tais como a afirmação de que o governo brasileiro estaria “protegendo o ambiente com soberania e sem histeria”.

Eu disse que Saruman tinha triunfado? É o que parece, mas as reações contra o que tem acontecido no Brasil sugerem que a crítica de Tolkien ao sarumanismo moderno ajudou a lançar raízes profundas na imaginação das pessoas. A visão de que florestas são apenas estorvo para a prosperidade, por outro lado, é tão estéril, do ponto de vista imaginativo, quanto a terra calcinada que ela está ajudando a criar.
Reinaldo José Lopes

Como aumentam os crimes

Pessoas acham que um homem forte no poder pode diminuir o crime. Mas as ciências sociais já mostraram que isso não é verdade. Ditaduras não aumentam a segurança pública, assim cono não melhoram a economia nem diminuem a corrupção ao tirar os políticos e colocar os militares. Regimes autoritários são inclusive mais corruptos que democracias. A única coisa que trazem é repressão e falta de liberdade 
Steven Levitsky

Como o país pode recuperar imagem queimada

O Brasil enfrentou, ao longo da história, diversas ondas de críticas e indignação no exterior. No século XIX, os ataques eram à prolongada escravidão e ao tráfico de africanos. Joaquim Nabuco foi acusado de difamar o país porque condenava os crimes cometidos aqui. Na ditadura, a acusação era de tortura e morte de opositores. Na hiperinflação, o Brasil era ridicularizado como um país de economia bizarra. No caso do desmatamento, várias vezes elevou-se o tom das críticas ao Brasil. Em todos esses casos, só um método funcionou para recuperar a imagem queimada: ir às causas do problema para eliminar os motivos das críticas.


A Amazônia sempre estará no radar do mundo e, quando o desmatamento cresce, as críticas são fortes. Ocorreu nos governos Fernando Henrique e Lula, e a reação, nas duas administrações, foi ampliar os esforços de combate. Mesmo que tenha havido, no caso de Lula, críticas às críticas, o que de fato se fez, sob o comando da ministra Marina Silva, foi ampliar o esforço para reduzir o ritmo de destruição e só por isso é que a taxa anual de 2004 a 2012 caiu 80%.

Esta semana, no meio da nossa aflição, era possível apontar os aviões e até as roupas dos brigadistas comprados com dinheiro do Fundo Amazônia. Ele está sendo destruído agora pelo atual ministro do Meio Ambiente. Destruir é fácil, construir foi um caminho longo e árduo no qual houve a soma de forças de ONGs, cientistas, Ministério do Meio Ambiente, Itamaraty. A questão do pagamento por desempenho dentro das negociações do clima foi sugestão de ONGs, na COP-6, em Haia, em 2000. No Protocolo de Kyoto o pagamento era feito por floresta plantada. O debate que o Brasil sustentou foi o de receber por desempenho no combate ao desmatamento.

Nas reuniões seguintes, introduziu-se o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, com grande protagonismo do Brasil. A liderança da ex-ministra Marina Silva, a partir de 2003, foi fundamental para se firmar o conceito. O que ajudou foi a relação que ela estabeleceu com o ministro do Meio Ambiente da Noruega Erik Solheim. Só em 2007, em Bali, consolidou-se a ideia. O Fundo Amazônia já trouxe mais de US$ 3 bilhões ao Brasil. A maior parte do dinheiro foi para os governos estaduais, para financiar ações de proteção ambiental. Diversas ONGs trabalham nesse esforço. Há crime nisso? A sociedade se organiza assim nas democracias. Pode-se não gostar de uma, se entender com outra. O que não se pode é impedir que as pessoas se organizem em torno dos seus sonhos e projetos.

Houve inúmeras ações nos municípios que uniam o trabalho de ONGs com o de prefeituras, do Ibama, do Ministério Público, da Polícia Federal em ações de repressão ao crime da grilagem, desmatamento e queimada e de apoio aos produtores que implantavam as melhores práticas. Eu vi isso acontecendo em Paragominas, em 2008, e na Operação Arco de Fogo.

Foi assim também que se venceram outros momentos de dor e crise no Brasil. As conexões entre pessoas que compartilhavam o mesmo sonho civilizatório venceram a escravidão, a ditadura, a hiperinflação. Em cada um desses avanços houve alianças entre sociedade, governo, cientistas, artistas, sonhadores. A proteção da nossa preciosa floresta também se faz através de alianças.

Só quando a escravidão foi extinta no Brasil, as críticas pararam. Quando a tortura e morte de presos políticos foi encerrada, o assunto deixou de ser notícia na imprensa internacional. Quando o Brasil, ao final de uma verdadeira saga, encerrou seu longo período hiperinflacionário, o país passou a ser levado a sério. Sonho com o dia em que não haverá mais críticas ao desmatamento da floresta amazônica brasileira porque, nesse dia, teremos alcançado o ideal do desenvolvimento sustentável.

Certa vez, numa viagem de Pedro II a Paris, o jornal “Le Figaro” publicou uma série de reportagens de Adele Toussaint-Samson sobre o Brasil, país no qual ela havia morado por 10 anos e onde se escandalizara com o tratamento dado aos negros. A comunidade brasileira em Paris pediu que o imperador protestasse junto ao jornal contra as reportagens. Ele se negou a fazê-lo e explicou, segundo relato da autora, que “os povos, da mesma maneira que os indivíduos, não podem julgar a si próprios”.

Pensamento do Dia


Pobre soberania nacional

Cada sociedade deve resolver seus dilemas nacionais de forma autônoma, sem subordinação ou dependência. Mas não são poucos os governantes que vilipendiam a grandeza desse conceito, alegando ameaças à soberania da nação para esconder fatos, justificar erros, abusos e tiranias, reescrever a história e, de quebra, animar as tropas. 

Um traço que une Jair Bolsonaro a Lula e Dilma Rousseff, a Fernando Collor de Mello e a outros tipos como Nicolás Maduro, todos assíduos frequentadores da galeria dos que se dizem perseguidos por conspirações. 



A ameaça à soberania da região amazônica que os brasileiros não estariam enxergando “dói na alma” do presidente, que não vê motivos para a preocupação interna e mundial em torno da aceleração das queimadas e do desmatamento na maior floresta tropical do planeta. Assanhados por um misto de estímulo governamental e impunidade o Dia do Fogo no Pará patrocinado por fazendeiros bolsonaristas e anunciado previamente na mídia local que o diga -, os incêndios, sim, são as reais ameaças, e não aqueles que os denunciam.

Ainda que na sexta-feira em pronunciamento na TV tenha diminuído o tom, Bolsonaro continua considerando as labaredas como conspiração de ONGs que perderam dinheiro e uma “mentira europeia”, conforme verbalizou seu ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.

Pouco ou quase nada diferente de Maduro, que nega a existência de fome em seu país, taxando de “falsa desculpa” intervencionista a crise humanitária que condena milhões de venezuelanos ao estado de lastimável miséria. 

Maduro tenta convencer que tudo é resultado da ganância dos Estados Unidos para se apoderarem do petróleo venezuelano. Por aqui, os ianques seriam os mocinhos, dispostos a auxiliar o Brasil contra europeus inescrupulosos que querem explorar a floresta e ainda barrar a exportação de produtos agropecuários brasileiros.

Tardiamente perturbado com o impacto para o agronegócio de suas falas inescrupulosas e irresponsáveis sobre a Amazônia, Bolsonaro usa a soberania nacional como vacina contra eventuais sanções europeias. E espera contar com o aliado Donald Trump, o mais implacável defensor de sanções para resolver toda sorte de conflitos, como porta-voz para evitar que elas recaiam sobre o Brasil. 

A defesa enfática da soberania nacional também esteve na boca de Collor e de Dilma Rousseff, ambos depostos da Presidência da República. O primeiro pregava a “defesa da soberania com atitude positiva e consequente” dias antes de confiscar a poupança de todos os brasileiros. Dilma, com a cantilena do “golpe”, tentou transformar seu impedimento em ameaça à soberania do país. 

Na esteira das chamas amazônicas, Dilma reincidiu no alarde de agressão à soberania, aproveitando para condenar a privatização de “empresas públicas estratégicas, como a Petrobras”, sem, por óbvio, citar a ladroagem que quase destruiu a petroleira durante o seu governo e o de seu padrinho e antecessor.

Na semana passada foi a vez de Lula. Em carta escrita para o lançamento da campanha petista “Moro mente”, o ex disparou: “a Lava-Jato fez um grande assalto à soberania nacional”.

Surrada por quem a deveria fazer valer, a soberania nacional continua sendo esconderijo para governantes ineptos, não raro mentirosos e incapazes de enfrentar crises. Bolsonaro não só se encaixa nesta lista como agrega a ela o agravante de ser incendiário e, portanto, uma ameaça permanente.

Isso talvez explique o bater de panelas com menos de oito meses de governo. O povo é soberano.

Polícia do Rio de Janeiro nunca matou tanto

A letalidade policial nunca foi tão alta no Rio de Janeiro. O Instituto de Segurança Pública (ISP), que monitora o indicador desde 1998, contabilizou 194 mortes causadas por agentes do Estado somente no mês de julho. Na última década, apenas em 2018 um ano completo registrou mais casos do que nos sete primeiros meses de 2019, quando 1.075 pessoas foram vitimadas em ações policiais.

Os dados foram divulgados um dia após o sequestro de um ônibus com 39 passageiros na Ponte Rio-Niterói, que terminou com a execução do sequestrador, de 20 anos, por um atirador de elite da Polícia Militar. O governador Wilson Witzel chegou ao local de helicóptero, celebrando aos pulos o desfecho do sequestro.

Embora seja um caso deslocado da dinâmica de confrontos com criminosos ligados ao tráfico de drogas, Witzel aproveitou a ocasião para defender a ação ostensiva da polícia em favelas do Rio: "Se hoje esse foi abatido, por que os que estão de fuzil não podem ser abatidos?", indagou.

Desde que assumiu, em janeiro, Witzel prega o "abate" de criminosos como solução para os problemas de segurança pública do estado. Logo em sua primeira semana de governo, falou em utilizar seniores para executar quem estivesse portando fuzis em favelas do Rio. Mais recentemente, culpou as ONGs defensoras dos direitos humanos pelas "mortes de inocentes".

As sucessivas declarações em prol do enfrentamento aberto contra o crime organizado são acompanhadas pela presença do governador na apresentação do balanço de operações – em algumas ocasiões, com a farda da corporação responsável pela ação.

Em maio, ele participou de uma operação da Polícia Civil no município de Angra dos Reis. Imagens gravadas no interior do helicóptero onde estava o governador mostraram um agente disparando tiros de metralhadora contra uma tenda azul, num monte da região. Dias depois, soube-se que o local é um ponto de peregrinação para evangélicos locais.

A postura de Witzel, que é ex-juiz e trabalha nos bastidores para viabilizar sua candidatura à presidência da República em 2022, pode ser lida como uma estratégia de marketing político. Todavia, até que ponto sua abordagem estimula ações arbitrárias entre os agentes de segurança pública na ponta da cadeia de comando?

As operações policiais em favelas são parte da rotina do Rio há décadas. No governo atual, tornaram-se mais frequentes e letais, com uso de forte aparato repressivo. Em fevereiro, 15 cidadãos foram mortos nas comunidades do Fallet e Fogueteiro, no centro da capital. Uma ação da força de elite da Polícia Civil em maio deixou outros oito mortos na Maré, zona norte.

Em ambos os casos, registraram-se denúncias de execuções de vítimas já rendidas, tanto na Defensoria Pública da União e do Estado como no Ministério Público do Rio. No caso Fallet-Fogueteiro, a perícia da Polícia Civil já confirmou essa prática. Moradores das comunidades em questão também relataram outras ações abusivas dos agentes, como invasão de casas sem mandado judicial, agressões, furtos e prisões sem suspeita concreta.

A antropóloga e cientista política Jacqueline Muniz, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), lembra que o governador é comandante-em-chefe das polícias, sendo responsável pela autorização política das estratégias policiais. Nesse sentido, o salto nos indicadores de letalidade policial tem a chancela de Witzel, afirma.

"Ele legitima a lógica do 'matar primeiro'. É um governante que está empurrando o trabalho policial para um total amadorismo. Com cabeça quente, coração aflito e dedo nervoso, a polícia abandona a expertise, para se transformar em mais um bando armado", critica.

Muniz aponta que o governador do Rio se vale de um limbo normativo legal que regule o uso da força pela polícia. Soma-se a isso a vigência da súmula 70 no Tribunal de Justiça do Rio, que dá peso de prova ao depoimento do policial.

"O governador sabota a institucionalidade da polícia para ter capangas que agem sem nenhuma accountability e responsabilização. Assim, manobra a situação para o seu marketing político. Ele não aposta na repressão qualificada, porque cada velório é um palanque eleitoral."

Para o coronel reformado Robson Rodrigues, ex-comandante do Estado Maior da Polícia Militar do Rio de Janeiro, a postura de permissividade de Witzel encontra ecos no governo federal e gera um entendimento de liberalização. Porém ele acredita que a baixa eficácia dos instrumentos de controle da ação policial seja mais nociva do que os discursos do governador.

"O que o governador fala é verdade na prática, esse é o quadro. Se houvesse freio das instituições de controle, com responsabilização e punição exemplar, a inibição seria muito maior, porque é o que o policial vê na prática. Se o colega foi preso, vai pensar duas vezes antes de atirar sem necessidade."

Robson lembra que, especialmente nos anos 1990, secretários de Segurança que estimularam o enfrentamento seguiram carreiras políticas após deixar o cargo, enquanto policiais tiveram que responder criminalmente por suas ações. Entretanto a didática informal que prevalece nos batalhões não possibilitaria a consolidação dessa memória.

"Numa sociedade democrática, o policial deve ser o mais técnico possível e se blindar tanto do 'oba-oba' como das críticas infundadas. Isso passa pelo respeito à lei acima de tudo e pela busca da redução de riscos, sabendo que confrontos e mortes podem acontecer."

Em maio, após a morte de um professor de jiu-jítsu no Complexo do Alemão durante incursão policial, Witzel rebateu críticas à abordagem dos agentes: "A polícia não chega atirando. A polícia é recebida à bala com armas de guerra e, se a polícia não chegar, a facção adversária vai chegar e a guerra vai ser pior ainda", defendeu.

Em 20 de junho deste ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) enviaram um comunicado ao governador do Rio de Janeiro, questionando o uso abusivo da força contra comunidades pobres do estado.

No documento, as organizações destacam que, se confirmadas as denúncias, o governo do Rio pode estar violando artigos da Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos, da Convenção sobre os Direitos das Crianças, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Convenção Americana de Direitos Humanos.

"O estímulo oficial do que parece ser uma política deliberada de atirar para matar no contexto de esforços antidrogas e anticrime foi supostamente expressado em recentes declarações públicas do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel", consta no documento.

"Pedimos ao governo que alinhe sua legislação local aos parâmetros internacionais, em especial as preocupantes práticas ou políticas de segurança pública que incidem sobre suspeitos de crimes, incluindo afrodescendentes", requerem a ONU e OEA.

O primeiro tiro

Contei outro dia a um grupo de jovens que morei seis anos numa rua que não tinha luz. Digamos que estou exagerando. Cinco anos. Ou quatro. Sem uma única lâmpada. Aqui no Rio de Janeiro. Sim, senhor. Na freguesia da Gávea, como rezava a escritura. Numa casa construída com argamassa e sacrifício. Tijolo a tijolo e determinação. Os papagaios e a hipoteca. No começo não tinha porta. Nisto, parecia a casa do poema do Vinicius.

Muito engraçada, não tinha porta. Não tinha nada. A minha só não tinha porta. Porta da rua. Meu compadre Nicolai Fikoff desenhou uma bela porta de entrada. E de saída, claro. Na hora de tirá-la do desenho, foi aquela trapalhada. O marceneiro meteu as mãos pelos pés. As ripas ficaram meio soltas. E lá se foi a porta de volta para a oficina. Enquanto isto, a casa sem porta. E a rua sem luz. Era um loteamento novo. Bairro só de casas.


Com a ajuda dos vizinhos que iam chegando, eu pedia daqui e dali. Outro pioneiro, o meu amigo Marcus Vasconcellos, homem de sete instrumentos, arquiteto, tinha a sua casa na mesma rua. Recém-nascida, a casa dele ia ficar uma beleza quando crescesse. E ficou mesmo. Só que o Marcus, um bravo, não ligava pra rua escura. Houve até um crime, uma noite. O namorado matou a moça que namorava na escadinha. Namorava outro. O namorado errou na escolha da moça. Mas no escuro acertou o tiro. Um tiro só, no coraçãozinho dela.

Fora isto, foi a paz. Dois ou três meses e a nossa porta ficou pronta. Só faltava a luz. Eu me empenhava com a iluminação pública. Arranjava pistolão, insistia. Também sou brasileiro. Até que um dia, a rua já povoada, chegou um telegrama. Anunciava a instalação da luz. Postes já tínhamos. Quarenta e oito horas depois, fiz o cálculo e contei na televisão. O telégrafo era mais veloz do que a luz. Que só chegou muito depois. Com a iluminação, sumiram os macaquinhos.

Ou já não apareciam tantos, no poste, na árvore. Saguins, bem buliçosos. Isto está parecendo um trecho da carta de Pero Vaz de Caminha. Juro que é verdade. Os que me ouviam puseram em dúvida. No Rio? Acharam que pirei. Aí contei que uma noite eu ia chegando no carro do Pedro Gomes. Era um 12 de outubro, me lembro bem. Naquele exato momento começou a inana. Fomos assaltados por cinco rapazes que nos seguiam. Deram um único tiro, o segundo da rua. Daí pra frente, todo mundo sabe a história da megalópole.

Auschwitzel

Cena da semana: um saltitante governador dando murros no ar na ponte Rio-Niterói para comemorar o abate do jovem Wilson Augusto Santos, sequestrador de um ônibus com 39 passageiros. O ex-juiz Wilson Witzel, na condição de mandatário-mor, vibrava ao fim da tragédia, convencido de que acertou na sua orientação à segurança pública: “mirar na cabecinha e… fogo… matar o bandido! Para não errar”.

Deu certo. Esgotados os recursos para a dissuasão do sequestrador, restava o tiro. Foram seis. A imagem de sua Excelência se destacou pela extravagância. Ainda que se justifique a ação policial, comemorar a morte de um sequestrador é inapropriado para quem deveria conservar traços da nobre missão de administrar a justiça. Witzel se mostrou mais Rambo do que ex-juiz.

Essa estampa de violência levou um dos maiores juristas do país, o desembargador e professor de Direito Penal Walter Maierovitch, a lembrar o horror de Auschwitz, no qual os nazistas mataram 1,3 milhão de pessoas em seu maior campo de concentração. O populista Witzel ou o Auscwitzel?

O Rio é uma praça de guerra. No primeiro trimestre deste ano, 434 pessoas foram mortas por intervenção policial. Média de sete por dia, maior número desde 1998. A política de segurança pública tem se guiado pelo mote: “matar ou matar. Bandido bom é bandido morto”. A doutrina, encampada pelo presidente da República, desce como uma gigantesca cortina de sangue sobre o território, abrindo os portões dos cemitérios.

Foram 65.602 homicídios em 2017, aumento de 4,2% em relação ao ano anterior. Número recorde, equivalente a 31,6 mortes para cada 100 mil habitantes mais do dobro do Iraque, segundo a Organização Mundial da Saúde. A entidade considera epidêmicas taxas de homicídio superiores a 10 a cada 100 mil habitantes. Até o final do ano, devem estourar.

A “guerra civil” carioca mata três vezes mais que a violência nos Estados Unidos e mais que os conflitos étnicos. Em 30 anos, o número de mortos chega a mais de 1,2 milhões.

Nas prisões-depósito, germinam-se novas formas de violência, enquanto as gavetas se entopem de mandados de prisão de outros milhares de bandidos soltos nas ruas.

A brutalidade jorra e as paliativas soluções governamentais estão longe de um crescimento proporcional. Os cinturões metropolitanos, já saturados de lixões que ofertam um banquete pantagruélico para urubus, crianças e mães famintas, também servem para a exibição de corpos chacinados.

O Brasil está se tornando um dos maiores assassinos da humanidade. Pior: a violência aumenta a insegurança.

Sem ânimo, emoções envenenadas pelo vírus da angústia, os cidadãos entram no limbo catatônico. E assim o mais rico país do mundo em recursos biológicos se transforma no mais fértil país do mundo em registros necrológicos.

Nessa paisagem emerge o saltitante governador com sua estética nesses tempos macabros. E onde está a índole do juiz que Bacon tão bem descreveu?Os juízes devem ser mais instruídos que sutis, mais reverendos do que aclamados, mais circunspetos do que audaciosos. Acima de todas as coisas, a integridade é a virtude que na função os caracteriza.