segunda-feira, 6 de maio de 2019

Ideias feitas

As ideias feitas são um perigo. Elas nos dispensam de pensar. Como circulam sem contestação, tendemos a ouvi-las, aceitá-las e usá-las como se sobre elas não restasse a menor dúvida. Mas e se estiverem erradas? Eu próprio escorreguei em uma, outro dia (17/4). Referi-me à impressionante afirmação do presidente Jair Bolsonaro, de que onazismo era uma ideologia de esquerda, como uma ideia que, “como a jabuticaba”, só existia no Brasil. Ninguém discutiu a exclusividade brasileira da frase de Bolsonaro —onde mais alguém teria tal ideia? Mas, a da jabuticaba, sim.

Um leitor escreveu para alertar que a ideia de que a jabuticaba só existe no Brasil, que todos repetem, não é verdadeira. Segundo ele, encontram-se pés de jabuticaba também no México, Bolívia, Peru, Paraguai e nordeste da Argentina. Apanhado no contrapé, fui investigar. Consultei amigos com notório saber em jabuticabas —um já produziu um “paper” acadêmico sobre elas— e fui informado de que, de fato, nativa do Brasil, a jabuticaba saiu flanando por aí e pode ser encontrada nos países citados. Donde a famosa frase sobre ela é, no máximo, meia verdade.

A ideia feita, dependendo do assunto, resulta da arrogância, da pretensão ou da ignorância. Mas contará, quase sempre, com o aval da unanimidade —aquela que Nelson Rodrigues chamava de burra porque, quando pensamos com a unanimidade, não precisamos pensar.

No século 19, Gustave Flaubert começou a escrever um “Dicionário das Idéias Feitas”, que antevia como uma “enciclopédia da estupidez humana”. O livro saiu, mas incompleto, porque ele morreu antes. Tudo bem. Mesmo que tivesse vivido mil anos, Flaubert também não o concluiria, porque a estupidez não tem fim.

A jabuticaba fez bem em expandir seus domínios fora do Brasil. O Brasil é que está se esforçando para concentrar toda a arrogância, pretensão e ignorância mundiais.
Ruy Castro

Pedagogia da agressão

Por que a maioria das grandes reformas educacionais fracassa, e um pequeno número próspera? Esta foi a pergunta que moveu os pesquisadores David K. Cohen (Universidade Michigan) e Jal D. Mehta (Harvard) num estudo que já citei aqui, publicado em 2017 no jornal da Associação Americana de Pesquisa Educacional (Aera). Na pesquisa, Cohen e Mehta mapeiam quase todas as grandes propostas de mudança na política educacional dos Estados


Uma delas foi o fato de terem oferecido soluções para problemas que os profissionais da educação sabiam que tinham e queriam resolver. Outras foram bem-sucedidas quando, mesmo tratando de um problema que os professores não observavam, acabaram convencendo-os do desafio e oferecendo soluções. Algumas reformas em larga escala prosperaram porque havia forte pressão de um conjunto amplo de atores públicos em favor delas. Quase todas que deram certo foram eficientes também porque ofereceram a infraestrutura - ferramentas, materiais pedagógicos e formação - necessária para colocar as mudanças em prática.

Uma das principais constatações é que, sem diálogo com os professores, é muito mais difícil uma reforma prosperar, por melhor ou pior que ela seja. Isso não significa que mudanças que não atendam a interesses imediatos dos docentes estejam necessariamente fadadas ao fracasso, mas o estudo indica que seu caminho tende a ser muito mais árduo, ainda mais se não houver forte mobilização da sociedade em seu favor.

O governo Bolsonaro mostra-se despreocupado em criar qualquer uma das condições acima na educação. Pelo contrário, o setor parece ter sido escolhido como palco preferencial das batalhas ideológicas, tendo em geral os professores como alvo. Foi assim, por exemplo, quando o próprio Presidente publicou em seu Twitter um vídeo de uma discussão entre uma aluna e uma professora de cursinho em sala de aula, fato que foi seguido de uma declaração do ministro Abraham Weintraub de que aquele era um direito da estudante. Não era, como logo explicaram vários juristas. Pode-se até discutir se a professora ou a aluna estavam certas ou erradas, mas expor o vídeo no Twitter presidencial serviu apenas para elevar o clima de confronto.

A artilharia principal, porém, foi contra as universidades públicas. No início do mês passado, Bolsonaro já havia dito que poucas universidades faziam pesquisa, e que a maioria estava concentrada em instituições privadas. É justamente o contrário: mais de 90% da produção científica brasileira é feita em universidades mantidas pela União ou pelos Estados. Na sequência veio o ataque aos cursos de sociologia e filosofia, seguido da ameaça de punição do ministro a instituições que promovessem “balbúrdia”, e do corte em verbas de todas as instituições de ensino superior e do Colégio Pedro II. Diante da reação, Weintraub continuou alimentando o clima de confronto, dizendo que "quem conhece universidades federais, perguntar sobre tolerância ou pluralidade aos reitores (ditos) de esquerda faz tanto sentido quanto pedir sugestões sobre doces a diabéticos”.

Essa tática de confronto permanente serve para animar a militância radical do Bolsonarismo, mas ao mesmo tempo vai minando a capacidade de promover a partir do Executivo federal qualquer mudança profunda no setor. Mesmo em ações em que eventualmente parte da comunidade educacional possa estar de acordo, o custo de apoiar uma iniciativa de um governo em constante confronto com os professores torna-se altíssimo. A Pedagogia da Agressão, para quem quer realmente transformar a educação brasileira, é péssima estratégia.

Brasil na pista


Os rejeitados no poder

Devoto da seita olavista, o chanceler Ernesto Araújo prometeu pautar a política externa pela “fé cristã”. Na sexta-feira, ele revelou uma leitura peculiar do Evangelho. Em discurso para novos diplomatas, o ministro comparou Jair Bolsonaro a Jesus Cristo. Citando o Novo Testamento, descreveu o presidente como um rejeitado que virou “pedra angular” do “novo Brasil”.

“A pedra que os órgãos de imprensa rejeitaram, que a mídia rejeitou, a pedra que os intelectuais rejeitaram, a pedra que tantos artistas rejeitaram, a pedra que tantos autoproclamados especialistas rejeitaram, essa pedra tornou-se a pedra angular do edifício, o edifício do novo Brasil”, exaltou.

O tema da rejeição não aparece só nas palavras do chanceler. Ao se lançar candidato, Bolsonaro disse ser um “patinho feio” na política. “Não sou um patinho feio. Sou um patinho horroroso”, corrigiu-se, quando já liderava as pesquisas. Em outra ocasião, ele se apresentou como um “ilustre desconhecido do baixo clero”.


A descrição era correta, mas também continha um cálculo eleitoral. Ao se vender como um outsider indesejado, o presidenciável buscava a simpatia do eleitor que se sente rejeitado pelo sistema. Bolsonaro apostou no ressentimento, uma receita que tem ajudado a eleger populistas de direita em todo o mundo.

No poder, o sentimento de rejeição costuma produzir ações de vingança. É o que se vê no governo atual, que transformou a revanche em política de Estado. Intelectuais, artistas e professores estão na mira do bolsonarismo. Viraram alvo de ameaças, perseguições e cortes de verba.

A Cultura já havia perdido o ministério. Agora ficou sem sua principal fonte de receita. A amputação da Lei Rouanet, demonizada pelo Planalto, põe em risco a sobrevivência de grupos teatrais e instituições de arte. O governo não disfarça o objetivo. Quer retaliar a classe artística, majoritariamente contrária aos valores do presidente.

No Itamaraty, Araújo instalou um clima de caça às bruxas. Demitiu um embaixador que criticou o seu guru e despachou desafetos para países distantes. Três ex-chanceleres foram deslocados para postos de segunda classe. O recado foi claro: quem não rezar pela cartilha bolsonarista vai para a geladeira.

Na Educação, a arma de revanche é a asfixia financeira. O ministro Abraham Weintraub, que se dizia perseguido por “comunistas” na Unifesp, resolveu descontar em todo o ensino superior. Anunciou um corte de 30% nas universidades que, segundo ele, promoveriam “balbúrdia” e “eventos ridículos”. Alertado para o risco de processo, ele estendeu a tesoura a todas as federais.

No governo dos rejeitados, o mau exemplo vem de cima. Desde a posse, Bolsonaro estimula a guerra ideológica contra inimigos reais e imaginários. Já censurou propaganda de banco, atacou a imprensa e incitou sua milícia virtual contra adversários.

A valentia só não é a mesma quando a ameaça vem de fora. Na sexta, ele cancelou uma viagem a Nova York para fugir de protestos. O jantar marcado para homenageá-lo já havia mudado de lugar duas vezes, e ao menos três empresas desistiram de patrocinar os comes e bebes.

Espada sobre todos

Somos todos irmãos, não porque dividamos o mesmo teto e a mesma mesa: dividimos a mesma espada sobre nossa cabeça
Ferreira Gullar

Começa a balbúrdia

O velho casarão da Rua Lara Vilela, no bairro do Ingá, em Niterói, nos anos 1970, era considerado um antro de balbúrdia. Lá se estudava História, Ciências Sociais (Antropologia, Política e Sociologia) e Psicologia. No regime militar, já havia sido feita uma “limpa” geral nas universidades, depois do Ato Institucional nº 5, mas a Universidade Federal Fluminense (UFF), da qual fazia parte o Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF), ainda era considerada pelo ministro da Educação, Jarbas Passarinho, um reduto de subversivos. Não foi à toa que Fernando Santa Cruz, aluno da Faculdade de Direito e líder estudantil, foi sequestrado e assassinado pelos órgãos de segurança do governo Geisel.

Quem pode contar melhor essa parte da história é o atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, que, na época do sequestro de seu pai, tinha 2 anos. Sua mãe, Ana Santa Cruz, era aluna do IFHC. Entretanto, a balbúrdia na UFF não começou por causa do “desaparecimento” do líder estudantil. A motivação foi a reforma universitária preconizada pelo Acordo MEC-Usaid, assinado no governo Costa e Silva, que estava sendo implementado pelo ministro Passarinho, aproveitando a paz de cemitério que se estabeleceu nas universidades, literalmente.

Inspirada no modelo universitário norte-americano, a reforma era muito criticada, porque supostamente levaria à subordinação do ensino aos interesses imediatos da produção, à ênfase na técnica em detrimento das humanidades e à eliminação da gratuidade nas universidades oficiais, mais ou menos o que se desenha agora, para enfrentar o problema da crise de financiamento da Educação no Brasil. No caso da UFF, uma das medidas era acabar com os institutos e subordinar todos os cursos aos departamentos e centros administrativos, agrupando-os por ramo de estudos: humanas, biomédicas, tecnologia etc.


Houve enorme resistência de professores e alunos. A crise estourou no ICHF, liderada pelo decano de História Antiga e Medieval, professor Luiz Cézar Bittencourt Silva, que dividia a cátedra com o cargo de juiz da Primeira Vara Criminal de Duque de Caxias, à época, a cidade mais violenta do antigo estado do Rio de Janeiro (a fusão só viria ocorrer em 1975). Representante da velha elite liberal fluminense, insurgiu-se contra a reforma administrativa e os casos de espionagem em sala de aula, exclusão de professores com base em critérios ideológicos e perseguição a estudantes que estavam ocorrendo no instituto.

A crise prolongada no ICHF provocou uma greve dos alunos dos cursos de História e Ciências Sociais, em 1977, que decidiram perder o semestre em protesto contra a ameaça de expurgo de professores. A gota d’água fora o boato de que o professor José Nilo Tavares, autor do livro “Conciliação e radicalização política no Brasil” (um tema atualíssimo), seria demitido por supostas ligações com o antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB). O responsável pela “lista suja” fora o professor de Sociologia Ronaldo Coutinho, autor de “excelentes relatórios” para o Cenimar, o serviço de inteligência da Marinha, soube-se bem mais tarde.

A greve do ICHF transformou a UFF num polo irradiador da bagunça nas universidades do Rio de Janeiro, com a Pontifícia Universidade Católica (PUC), na Gávea, desaguando na onda de manifestações estudantis de 1977, provocada pela prisão de estudantes em maio daquele ano. Lutava-se também por mais verbas, mais vagas, melhores condições de ensino e liberdade de expressão. O mesmo fenômeno ocorria na Universidade de São Paulo, na Universifdade federal do Rio de Janeiro, na Universidade Federal de Minas Gerais, na Universidade Federal da Bahia e na Universidade de Brasília, onde a repressão era duríssima, com aplicação sistemática do Decreto 477, de 1969, que permitia a expulsão de estudantes, professores e funcionários considerados subversivos. A balbúrdia já era generalizada nas universidades e resultou na reorganização da proscrita União Nacional dos Estudantes, em maio de 1979, em Salvador (BA).

Hoje, a UNE é uma sombra do passado, mas renascerá das cinzas, cantando “olha nós aqui de novo”, devido ao corte de até 30% dos recursos destinados às universidades federais. O arrocho fora anunciado para três universidades — Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade de Brasília (UnB) —, que, segundo o ministro da Educação, Abraham Weintraub, promoviam “balbúrdia”. Depois, foi ampliado para todas as instituições federais de ensino, inclusive o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, fundado em 1837, pelo marquês de Olinda, que já passou por todo tipo de crise. O que se anuncia agora é uma balbúrdia sem fim. Durante o regime militar, bem ou mal, havia um projeto de reforma universitária. Agora, não há nada, somente um ajuste de contas, nos dois sentidos.
Luiz Carlos Azedo

Começa a bater um desespero

Economistas sorriem amarelo, sem graça com as previsões furadas de recuperação. Mais que isso, parecem desnorteados, sem explicações precisas para o fato de mesmo o broto verde e mirrado do PIB estar murchando.

Empresários parecem com medo, nervosos ou acham que a retomada de 2019 deu chabu, como disseram executivos da construção civilao Painel S.A. desta Folha.

Gente do governo começa a falar em “pacotes” e “medidas” para estimular o crescimento, mesmo em liberação de um troco extra das contas do PIS/Pasep.

Sim, no Ministério da Economia, técnicos fazem planos razoáveis de melhorias no crédito e no mercado de capitais. Mas nada disso tem efeito no curto prazo, ainda menos quando a economia está meio desmaiada por falta de ar, de demanda. Ainda assim, quando gente do Planalto chama essas coisas de “pacote”, é porque o caldo está entornando.

Começou a bater um desespero na praça, em suma.


Para dizer uma obviedade necessária, não há investimento para levar adiante algo que pareça uma recuperação (crescimento além de 2%). Dada a capacidade ociosa de produção em quase toda parte, na indústria em particular, não era de esperar resultado muito diferente.

A alternativa seria investimento em infraestrutura, público e por concessão à iniciativa privada (capital externo, o grosso). Mas o investimento público vai cair ainda mais, e o programa de concessões prometido desde a deposição de Dilma Rousseff continua malparado. Desde 2015, trituraram o investimento do governo, em parte por péssimos motivos, e não puseram nada no lugar. Assim, não vai.

É claro que a economia está muito arrebentada, talvez até mais do que imaginemos. Por exemplo, dados o desemprego e o subemprego ainda crescente, a gente pode especular que o mercado de trabalho tenha apodrecido em precarização duradoura. Talvez outra parte da indústria tenha afundado para sempre no brejo. Etc.

Mas a gente sabia dessa desgraça desde que fez estimativas de crescimento de mais de 2,5% para 2019, como era o caso até janeiro. Né?

É verdade que as previsões de PIB têm sido pelo menos neutras (acertam) ou otimistas mesmo nesta década enrolada. Mas a frustração deste 2019 tem sido feia e, de resto, estamos no sexto ano de uma depressão em geral imprevista.

Sim, há explicações pontuais para a nova rodada de Pibinho. Mas eram motivos conhecidos desde a primeira metade de 2018: crise argentina, piora de condições financeiras devida à eleição, solavancos financeiros mundiais.

Alguém pode dizer que o efeito da incerteza político-fiscal tem sido maior do que o estimado. Mas, então, a gente começa a entrar no terreno do vale-tudo da análise de conjuntura econômica, a incerteza como bode expiatório.

Há economistas que dizem ou parecem dizer que a taxa básica de juros está mais alta do que deveria, mas poucos se arriscam a afirmar que o Banco Central deva baixá-las, pelo menos não antes da aprovação da reforma da Previdência, com sorte lá pelo trimestre final do ano.

Ou seja, se vier uma redução da Selic de 6,5% para 5,5%, só terá efeito real, se algum, bem entrado 2020. Pouca gente assume a bola fora dos juros altos demais.

Essa recaída da economia nada teve a ver com Jair Bolsonaro. Não é bem uma boa notícia. O presidente causa tumulto e desconfiança sobre seu compromisso com reforma. O sururu que provocou no primeiro trimestre terá reflexos no segundo e o inverno está chegando.

Gente fora do mapa


Bolsonaro, rápido no gatilho

Bolsonaro deu um passeio no lado íntimo, falando de sexo, definindo o que pode ou não pode, sobre o número de pênis amputados.

Pensei em comentar o assunto, mas Bolsonaro é tão rápido no gatilho que desatualiza um cronista semanal. Diz tantas coisas polêmicas que, ao cabo de sete dias, ninguém se lembra das que abriram a série.

Bolsonaro disse que o turismo gay deveria ser proibido, por causa das famílias. Os gays lembraram a ele que não nasceram de chocadeiras, mas são filhos de família.

Os jornais enfatizaram que o turismo gay cresceu mais que os outros e ele acaba ajudando lugares arruinados como o Rio.

Bolsonaro disse que vir transar com a mulher brasileira pode. Recebeu críticas. Afinal, um presidente não deveria se meter em relações sexuais de adultos, nem para proibir nem para elogiar.

O que mais me surpreendeu em Bolsonaro é o fato de ter escolhido o tema e deixado de lado algo que realmente tem nos preocupado ao longo dos últimos anos: a prostituição infantil.

Com muitas campanhas, conseguimos reduzi-la. Já estive documentando isto em Fortaleza. Mas ainda assim um presidente deveria estar em sintonia com aquilo que realmente interessa e é fruto de trabalho conjugado de várias instituições.

Sobre o número de pênis amputados, Bolsonaro afirmou que se perdem por falta de água e sabão. É um tema que o preocupa pela sua experiência militar, vendo o drama de soldados pobres.

Mas Bolsonaro perdeu o ponto, embora água e sabão realmente sejam importantes. Não falou do saneamento básico, cujo marco legal deveria ser votado ainda neste semestre.

Reacendida a crise da Venezuela, tudo isso foi esquecido. Bolsonaro disse que a decisão de intervir militarmente ali seria, em última instância, sua.

Deve ter havido um ruído na comunicação. Ele mesmo sabe que a última palavra é do Congresso. Até para enviar tropas ao Haiti, em missão de paz, o Congresso foi consultado. É a lei.

Essa questão da Venezuela é muito complicada. Seria interessante um amplo debate. Bolsonaro destinou mais R$ 240 milhões para atender os refugiados. Creio que a esta altura já gastamos mais de meio bilhão com o tema.

O quanto não custaria uma intervenção militar? E quem garante sua eficácia? É grande a possibilidade de perdemos fortunas com ações militares e, simultaneamente, gastar mais ainda com os refugiados.

Maduro precisa cair. Tem de cair. Entre essa certeza e a prática, há uma longa reflexão tática e estratégica. Bolsonaro talvez não se lembre da invasão da Baía dos Porcos, no tempo em que Kennedy dirigia os EUA.

O fracasso da invasão acabou consolidando o poder dos Castro. Maduro anda mal das pernas, mas quase todas as tentativas precipitadas de derrubá-lo acabam renovando seu fôlego.

Faz tempo que não entro na Venezuela porque certamente vão confiscar minha câmera, prender ou expulsar. Mas creio que uma intervenção armada encontrará vários obstáculos.

A força aérea da Venezuela tem sido equipada pelos russos. Parte das missões militares russas pode ser até um gesto político. Mas existe uma base material para afirmar que, apesar da penúria econômica, seriam um duro adversário.

Milhares de venezuelanos foram armados pelo governo. Milícias motorizadas, treinadas pelos cubanos, atuam reprimindo manifestantes. E todo o sistema de inteligência também foi estruturado pelos castristas.

Essas condições não tornam impossível uma derrota militar dos bolivarianos. Mas, certamente, eles podem prolongar a guerra, torná-la mais cara não só em dinheiro, mas em vidas dos invasores estrangeiros. Estamos preparados para segurar essa onda? Os próprios americanos que viveram tantas experiências traumáticas topariam uma aventura desse tipo no começo de um período eleitoral?

Essa tese de que todas as opções estão sobre a mesa pode ter algum significado psicológico. Mas uma visão sensata do quadro afasta uma intervenção armada. O que não significa que a sensatez não possa ser vencida.

Ainda estou para dar um balanço. Mas creio que o fator crise da Venezuela é isoladamente o que mais atrasou o Brasil em termos externos nos últimos anos. Não só pelo custo do fluxo de refugiados, mas pela instabilidade e desconfiança que gera nos investidores interessados na América do Sul.

Não somos os atores principais nesse drama. Precisamos apenas reduzir os danos.

Preservação

Chama-se liberdade o bem que sentes,
Águia que pairas sobre as serranias;
Chamam-se tiranias
Os acenos que o mundo
Cá de baixo te faz;
Não deças do teu céu de solidão,
Pomba da verdadeira paz,
Imagem de nenhuma servidão!

Miguel Torga

Bolsonaro supõe que a mídia é livre graças a ele

Jair Bolsonaro, como se sabe, mantém um relacionamento inamistoso com a imprensa e os jornalistas. Mas não há meio de comunicação ou comunicador que lhe sonegue o direito de exercitar sua liberdade de expressão. Mesmo quando o capitão tem dificuldades para se exprimir —como num post em que falou sobre a mídia como se o livre fluxo de informações e opiniões fosse uma concessão do seu governo e de sua magnânima generosidade presidencial.

"Em meu governo a chama da democracia será mantida sem qualquer regulamentação da mídia, aí incluída as sociais (sic). Quem achar o contrário recomendo um estágio na Coréia do Norte ou Cuba."



Tomado ao pé da letra, Bolsonaro insinua que, se quisesse, poderia lançar mão de seus poderes imperiais para controlar a imprensa e as mídias que ele ajudou a tornar antissociais. A julgar pela forma como cultua a ditadura militar, não deve faltar vontade. Entretanto, a presunção do capitão é auto-ilusória e ofensiva.

Bolsonaro se ilude porque, a essa altura, já deve ter percebido que seu poder efetivo não vai muito além do Planalto e de um grupo de umas 50 pessoas. Sua manifestação ofende porque parte do pressuposto de que a sociedade brasileira é feita de imbecis.

Os últimos que cometeram esse tipo de equívoco foram os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Imaginando-se dotados de poderes autocráticos, os dois tentaram censurar notícia que deixava Toffoli mal. A reação foi tão devastadora que tiveram de recuar para não ser desautorizados por seus próprios colegas de tribunal.

Imagine-se o que ocorreria se Bolsonaro enviasse ao Congresso uma proposta de regulação da mídia, eufemismo para censura. O barulho seria instantâneo. As reações ecoariam dentro e fora do país. Hoje, seria mais fácil aprovar um pedido de impeachment do presidente da República.<

Deve-se a manifestação presunçosa do capitão a uma tentativa de se distanciar de posições anti-mídias sociais atribuídas ao general e ministro palaciano Carlos Santos Cruz. De quebra, o capitão estabelece um contraponto em relação a Lula.

Em entrevista à Folha e ao El Pais, o presidiário petista declarou: "Quando falam em autocrítica, eu acho que nós devemos ter muitos erros. Eu, por exemplo, tive um erro grave. Eu poderia ter feito a regulamentação dos meios de comunicação. É uma autocrítica que eu faço."

Quer dizer: para Lula, a liberdade de expressão não é senão uma lamentável negligência dos governos do PT. Ironicamente, ele fez tal insinuação a dois jornais que guerrearam no Judiciário para que ele pudesse se expressar mesmo estando preso. Foi preciso ouvi-lo por mais de duas horas para descobrir que ele tinha pouquíssimo a dizer.

Bolsonaro e Lula ainda se darão conta de que as duas coisas mais perigosas numa democracia são a imprensa livre e a sociedade consciente. Juntas, elas conduzem governantes ineptos à impopularidade e larápios à cadeia.

Solução de Guedes para dívida não funcionará, é preciso aumentar a receita

Na campanha, todos os candidatos sabiam que a dívida pública era o maior problema do país, mesmo assim jamais discutiram a questão. O favorito Jair Bolsonaro (PSL) não tocava no assunto, preferiu passá-lo ao economista Paulo Guedes, que apresentou uma proposta ilusória e inalcançável. Em entrevista para a Folha, disse Guedes: “No programa do Afif Domingos (PL) para presidente, em 1989, eu propunha privatizar tudo para zerar a dívida mobiliária, a dívida pública federal interna. […] O governo federal tem que economizar. Onde? Na dívida. Se privatizar tudo, você zera a dívida, tem muito recurso para saúde e educação. Ah, mas eu não quero privatizar tudo. Privatiza metade, então. Já baixa metade da dívida”.

Quer dizer, em 2019, Guedes apresentou a mesma solução de 30 anos atrás, quando a dívida ainda era pequenina, só iria realmente crescer no governo FHC, que até adotou a proposta dele, ao fazer aquele programa de privatização que não pagou dívida coisa alguma. E agora a cena se repete, Guedes quer privatizar tudo, mas é apenas um engodo, porque mesmo assim a dívida seguirá crescendo.


O petista Fernando Haddad também desprezou a dívida e até prometeu revogar o teto de gastos criado por Henrique Meirelles. Sua solução seria retomar obras públicas que estão paralisadas, para gerar emprego e aumentar a produtividade da economia. Dessa forma, Haddad dizia que o país iria crescer, arrecadar mais e a dívida ficaria sob controle, porque sonhar não é proibido…

Alvaro Dias, candidato do Podemos, estava preocupado: “Há uma reforma que pouco se fala, uma mudança fundamental, que é a mudança da administração da dívida pública. Eu considero nosso calcanhar de Aquiles. A equipe do governo Temer é competente, tem promovido alguns avanços, mas em nenhum momento falou da dívida pública, me parece ser refém do sistema financeiro”.

O candidato Ciro Gomes, do PDT, tinha um plano: “Sabe como é que eu fiz quando fui governador do Ceará? Tinha 36,5% de receita corrente líquida livres para investimento; fui então ao mercado e comprei 100% da dívida do Ceará com 20, 15 anos de antecedência no investimento”, disse, sugerindo que agora houvesse um teto para pagamento de juros.

Marina Silva, da Rede, ficou calada. Porém, seu mentor econômico Eduardo Gianetti afirmou que também pretendia pagar a dívida, mas criticou a afirmativa de Ciro Gomes de que o Brasil precisa de um teto para gastos com juros. “Isso é calote”, protestou Gianetti, alegando que Ciro estava somando juros e amortização, o que seria “uma maluquice”. No entanto, Ciro tinha razão, porque juros e amortização se somam e elevam a dívida. Mas quem se interessa?

De volta para o futuro, chegou a hora de Guedes dizer o que fará com a dívida. Ele continua calado, mas acaba de anunciar a solução para a dívida dos Estados. Seu projeto é autorizar que os governadores possam captar empréstimos internos e externos em condições mais favoráveis, porque os financiamentos terão a garantia do Tesouro. Em caso de calote, a União vai honrar a dívida. Com esse novo crédito, os Estados terão alívio para pagar funcionários e fornecedores.

Não vai resolver nada, apenas adia o problema. A solução somente virá através da rediscussão do pacto federativo. A máquina administrativa da União se agigantou, as despesas de custeio e rolagem da dívida federal são tão altas que dificultam os novos investimentos para ativar a economia.

Embora os Estados e Municípios sejam diretamente responsáveis pelo bem-estar dos cidadãos, a União fica com a maior parte da receita, que usa para rolar a dívida, pagar a Previdência e cobrir os gastos de custeio. Agora o governo da União precisa achar soluções criativas, como repasse de concessões federais aos estados e realização de obras de infra-estrutura que possam atrair investimentos externos e facilitar exportações. É preciso analisar caso a caso, em cada Estado.

Imagem do Dia

MERCEDES AÑOTO: Google+

O método Mobral do bolsonarismo

Um cronista 100% ensino público, praticamente um Xicobras do primário até a bravíssima Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sou obrigado a defender cada pão com ovo que comi na CEU, a Casa do Estudante Universitário daquele campus da Várzea, defender cada assembleia em peleja permanente contra os cortes do senhor reitor, defender cada passeata contra os coices do general João Baptista Figueiredo -o derradeiro dos ditadores do golpe militar de 64-, sou obrigado a defender a memória contra o obscurantismo tropical da nova ordem.

Óbvio que falo desse cego facão bolsonarístico que decepou 30% das verbas das federais. Inicialmente sob a desculpa da “balbúrdia” da UFF, UnB e UFBA -sexo, drogas e rock´n´roll?- e depois, quando a carapuça oficial da hipocrisia caiu, por uma “cuestão” de tremenda sacanagem contra qualquer facho de iluminismo e saber. Eis uma gente a favor das trevas. Um governo que não ensaia a cegueira, é a própria, um governo que venda (“literalmente’) a vista de quem não pode pagar caro por educação ou diploma.

Por cada bife de fígado que tracei no Restaurante Universitário (delícia de R.U.), gracias a la vida, eram bifões conquistados com política & poesia, com o médico e poeta Wilson Freire no martelo agalopado e este desditoso cronista com haikais e textos pornopunks. Vivíamos basicamente de manifestos e pão com ovo.

Poesia e política são demais para um só homem, dizia o cineasta Glauber Rocha naquele momento. A gente teimava em misturar as duas coisas. A causa era nobre: estava em jogo o próprio estômago e defender a gororoba do bandejão era proteger a universidade pública dos facões dos tecnocratas e militares.

O presente de horrores pede mais uma canfungada na memória. Agora estamos diante de um show da banda Mundo Livre S/A, Fred 04 manda “Samanta Smith”, um hino recifense sobre a Guerra Fria, o pau canta no campus, o senhor reitor manda recolher “A Brecha”, nosso potente veículo de imprensa rodado no mimeógrafo a álcool.

A universidade pública vivia sob ataque permanente desde 1964. O que a nova ordem bolsonarística põe em prática não tem ainda a violência militar de forma explícita, mas o golpe nas verbas é um dos maiores da história. Corta, corta, corta.

No que me vejo, flahsback, adentrando as salas de aula da UFPE na companhia do destemido bode Bakunin, nas mobilizações pelo ensino público. Óbvio que tirei a ideia de recitar poemas com caprino à tiracolo do Pablo Neruda. Acabara de ler “Confesso que vivi”. Tudo bem, havia sim algo a considerar no protesto da zoologia fantástica: o poeta chileno andava com um boi, um touro, nas suas apresentações. Humildemente reconheço a inferioridade na comparação animal, mas não deixei de cumprir a minha parte com meu bodinho representante-mor da resistência da Nação Semiárida.

Obrigo-me, novamente, ao grito mínimo contra essa mesquinhez de castigar o ensino em nome do nada, pior, em nome do ódio a quem aprende, pesquisa e colabora com o desenvolvimento do país.Triste quem acha que governa na lousa do ressentimento. Esse quadro de borrões fascistas é a visão de um desmaio patriótico.

Tristes trópicos obscurantistas, donde muita gente boa largou de vez a ideia da coisa pública e, mesmo formado nas velhas universidades federais ou estaduais de guerra, agora defende o não-acesso, o muro. Que gente é essa?

Pelo visto, a ideia de governo é que ninguém passe do Mobral, o movimento brasileiro de alfabetização criado pela Ditadura, uma espécie de anticartilha Paulo Freire, cujo bê-a-bá decorativo não respeitava sequer as diferenças regionais das palavras. Lembro dos meus parentes, lá no grupo escolar do sítio das Cobras, município de Santana do Cariri (CE), tentando soletrar a palavra mandioca diante do que, para todos nós, se tratava de uma macaxeira. Tudo, tudo menos consciência do seu lugar na vida e no significado das raízes do Brasil.

Será preciso um festival nacional de “balbúrdia”, meu caro bode Bakunin, para barrar a destruição da universidade pública no Brasil. Pena que você não está mais entre nós. Seria um mascote extraordinário. Se não temos o bravo caprino, antes de tudo um pai-de-chiqueiro da potência erótica, recorremos ao não menos mitológico Serafim Ponte Grande: “A felicidade do homem é uma felicidade guerreira. Tenho dito. Viva à rapaziada! O gênio é uma longa besteira!”
Xico Sá 

Descarados e malevolentes

O que há por trás desta vontade de homens públicos de esconder o que são, levando-os a censurar ou ao menos controlar o que deles se diz? Esta vontade só não é maior do que a de parecer o que não são em entrevistas, declarações e outras estratégias e táticas de ocultar algumas coisas para proclamar outras.

É tão importante atuar em nome dos outros que talvez fosse recomendável aos nossos homens públicos instalar confessionários onde cada qual pudesse contar os pecados contra o público, antes de alguns poucos serem revelados por jornalistas.

Diversas religiões consolidaram usos e costumes constantes de lições ministradas há muitos séculos. Atos importantes requerem purificação prévia, como de resto toma-se um bom banho, acrescido das providências de praxe antes de qualquer convívio, cerimonioso ou privado.

Mas confessar-se a quem? A um dos pares? Neste caso, não poderia ser confissão em privado, mas confissão pública.

Como começou a confissão, este ato sublime, que estabelece uma rede de confiança mútua entre confessores e confitentes? Se quebra houvesse no sigilo da confissão, seria punida com excomunhão, a mais grave das penalidades, a ponto de constituir-se num dos mais irreparáveis insultos chamar alguém de excomungado.

No início, ao formalizar os ritos da confissão, a Igreja teve alguns problemas. No caso das confissões femininas, como o sacramento desde seus primórdios era e continua sendo prerrogativa masculina, ao confessar-se a confitente podia lançar-se desesperada nos braços do confessor, surgindo daqueles abraços pecados ainda maiores do que os confessados.


Foi, então, providenciada uma nova tecnologia, obra de competente e imaginoso marceneiro para atender à encomenda eclesiástica. Assim, o mesmo século que descobriu o Brasil, também descobriu o confessionário.

O móvel do confessionário é um recurso estratégico do barroco e da contrarreforma, contexto histórico e artístico no qual o Brasil foi descoberto e formado.

Antes, sentado numa cadeira simples, ao lado de um banco onde estavam os fiéis, o confessor atendia os confitentes um a um. Aos cochichos, para não ser ouvido pela fila dos aguardantes, muito menos por toda a igreja, cada qual desfiava os seus pecados. Alguns acabavam por confessar também os dos outros, dadas as eficientes perguntas do manual dos confessores.

A confissão, formalizada pelo Concílio de Latrão em 1215, deixou de ser optativa e passou a obrigatória. Como nem todos os padres sabiam alugar as orelhas adequadamente, surgiram os manuais. Entre os Séculos XV e XVI, na grafia do português antigo temos o "Tratado de Confissom" e o "Breve Memorial dos pecados e cousas que pertencem ha confissam". Quanto aos manuais, inicialmente escritos em latim, ganharam depois edições em línguas vernáculas.

Tal como se faz hoje em sistemas judiciários de todo o mundo, inclusive no Brasil, as penas eram negociadas também: “vós me contais, eu vos perdoo”, restava entredito em diálogo mudo. A Igreja fazia dos confessores seus bastantes procuradores para ouvir e repassar às autoridades, não as identificações, mas as faltas, com o fim de rever seu planejamento.

Esta prática de bisbilhotagem das almas foi sempre antecedida do ato de contrição. A etimologia da palavra contrição não deixa dúvidas sobre a tarefa: mais do que espremer, consiste em triturar, apertar, fazer com a pessoa o que se faz com o trigo a fim de transformá-lo em farinha.

Cada um deveria ser o moleiro de si mesmo e preparar-se para despejar a farinha dos pecados nos ouvidos do confessor, entretanto oculto atrás de uma treliça, pequeno tapume de ripas de madeira destinadas a filtrar os pecados ditos em sussurro e a impedir o reconhecimento do pecador.

Resta dizer que, conquanto o desejo e a luxúria, isto é, os pecados de sexo, fossem tratados com excessivas curiosidades, vindas de perguntas feitas por homens castos em busca de usufruir pelo menos as respostas, sobretudo de mulheres, havia um cenário geral para todas as faltas: os sete pecados capitais.

Por serem tantos, eram resumidos na sigla SALIGIA: soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e acédia. Este último pecado consolidou-se com outro nome, preguiça, em virtude de acídia ou acédia designar no grego e no latim antigos o mal-estar dos funerais, o luto imobilizante sobrevindo com a morte de alguém muito querido.

Os manuais demoravam-se em alguns pecados, mais graves do que outros. Um dos mais frequentes neste campo, ontem como hoje, era a soberba, que consiste em vangloriar-se de feitos que não são seus, em parecer o que não é, pondo-se acima dos outros, inatingível, ofendendo a Deus e ao próximo.

E assim os cronistas, ontem como hoje, ao contar as coisas como as coisas são, fazem o perfil de alguns homens públicos que tentam esconder-se de qualquer modo.
Deonísio da Silva

No verso petista

A economia não anda porque o Brasil ficou caro, ideologicamente ultrapassado em termos de agenda. Vemos no Brasil um clima de ódio, é o PT de ponta-cabeça
Geraldo Alckmin

'Parceria Público-Privada' para o crime ambiental

O crime ambiental, verdadeiro atentado contra o patrimônio da sociedade brasileira, costuma orientar sua dinâmica pelos sinais emitidos por Brasília. Após o registro de altas taxas de desmatamento na Amazônia, o Brasil adotou, a partir de 2004, uma política de Estado, com a atuação direta de mais de dez ministérios, denominada Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). Sua estruturação se deu em três eixos: ordenamento territorial, com o reconhecimento de terras indígenas e criação de unidades de conservação no bioma; monitoramento e controle ambiental, com a intensificação da fiscalização contra crimes ambientais; e fomento às atividades produtivas sustentáveis, destinado a garantir alternativas econômicas às atividades ilegais. O esforço estatal foi tamanho que a aplicação da política não demorou a produzir resultados notáveis, com benefícios econômicos e sociais diretos ao País, além de amplo reconhecimento internacional: o desmatamento na Amazônia caiu continuamente entre 2004 e 2012, passando de 27.772 km² para 4.571 km² — uma redução de 84%.

O ano de 2012 marca a retomada do crescimento do desmatamento no bioma. As seguidas altas refletiram um incremento de 73% entre 2012 e 2018 (7.900 Km²), o dobro da meta climática brasileira para 2020. Entre outros fatores, contribuíram para esse expressivo aumento a contínua redução dos investimentos estatais no PPCDAm, a ofensiva contra áreas protegidas e a aprovação do novo Código Florestal em 2012, o qual, segundo o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux, relator das ações sobre o Código, “ao perdoar infrações administrativas e crimes ambientais pretéritos, (...) sinalizou despreocupação do Estado para com o Direito Ambiental, o que mitigou os efeitos preventivos gerais e específicos das normas de proteção ao meio ambiente.”


Se os rumos pareciam tortos nos últimos anos, a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência parece significar a mais drástica ruptura na política ambiental brasileira, rumo à condecoração e ao incentivo do crime ambiental. Desde a campanha eleitoral, afirmou que acabaria com a “festa” da “indústria da multa” do IBAMA e do ICMBio e que pretendia “tirar o Estado do cangote de quem produz”, além de cogitar a extinção do Ministério do Meio Ambiente. Com sua provável vitória, medições oficiais detectaram um aumento de 39% no desmatamento da Amazônia durante o período eleitoral, inclusive em Terras Indígenas (62%) e Unidades de Conservação (95%), onde a atividade é essencialmente ilegal.

Nos primeiros quatro meses de governo, o que se viu foi uma avalanche de ações que, ao final, representam verdadeiro convite ao crime ambiental: nomeação de um ruralista para a pasta ambiental, condenado em primeira instância judicial pela adulteração de plano de manejo de unidade de conservação, cujas ações representam uma das principais fontes de ameaça ao meio ambiente; esvaziamento das funções do ministério, como a exclusão das competências de combate ao desmatamento e às mudanças climáticas; cortes orçamentários profundos, afetando principalmente a fiscalização; vacância de cargos diretivos no ministério; deslegitimação dos dados oficiais do INPE e desprezo às considerações da comunidade científica; perseguição a servidores dos órgãos ambientais federais por cumprirem sua missão legal, com exonerações e instauração de processos disciplinares; menor índice de autuações lavradas pelo IBAMA em vinte e quatro anos; extinção de conselhos de meio ambiente e indisponibilidade de informações públicas essenciais, como o mapa de áreas prioritárias para a conservação, reduzindo a transparência e a possibilidade de controle social; anulação do processo administrativo relativo à multa aplicada a Jair Bolsonaro, quando deputado, seguida da exoneração do agente autuante; liberação de leilão para exploração de petróleo em Abrolhos, à revelia de pareceres técnicos dos órgãos ambientais; disposição em acatar pleitos de extinção ou redução de unidades de conservação; possível extinção do ICMBio; e o simbólico episódio em Rondônia, no qual o Presidente desautorizou operação do IBAMA e defendeu o descumprimento da lei contra atividade madeireira ilegal dentro da Floresta Nacional do Jamari, com prejuízo a empresa que atua legalmente na área.

Se o meio ambiente encontrava-se combalido nas gestões anteriores, na atual, o crime ambiental, cujo combate é dever constitucional do poder público, parece ter encontrando no governo seu parceiro de primeira ordem.

Mauricio Guetta e Antonio Oviedo (Instituto Socioambiental)