“Hoje estou transmitindo a você a enorme responsabilidade de retomar o processo de transformação do Brasil, em benefício do povo”. A carta de Lula foi publicada no site do PT sob uma foto na qual ele aparece junto com Haddad.
À primeira vista, texto e imagem dizem a mesma coisa: a prosa inconfundível do caudilho que sagra um sucessor. Uma segunda leitura evidencia que, no fundo, escorrem em rumos opostos. A foto organiza-se no registro da seta do tempo: o tempo linear, que se desenrola no sentido do futuro. O texto, pelo contrário, organiza-se no registro do tempo cíclico: o tempo circular, de eterno retorno. A divergência entre uma e outro reflete as dificuldades da invenção do que se pode chamar lulismo tardio.
Na foto, Lula aponta o indicador esquerdo em direção a um ponto no infinito, para o qual Haddad olha fixamente. Seta do tempo: o mestre indica o lugar exato do futuro a seu discípulo, herdeiro e sucessor. A ideia da transmissão está condensada aí. É como se um dom pessoal se estendesse de um corpo a outro, como nas sucessões dinásticas do passado, de tal modo que o receptor se converte no corpo substituto do doador.
Nisso, não há genuína novidade. A carta, porém, não ordena que Haddad conduza o povo ao futuro, mas ao passado. “Você vai me representar nessa caminhada de volta à Presidência da República, para realizar novamente o governo do povo e da esperança”. Ciclo do tempo: o mestre faz do discípulo um instrumento de restauração de um passado glorioso, uma era perdida de ouro, leite e mel. Haddad não é, neste registro, nem mesmo um sucessor. É, única e exclusivamente, a máscara do próprio Lula.
“Tudo que lhe peço, querido amigo, é que cuide com muito carinho das pessoas, como eu gostaria de estar cuidando”. Abaixo da gosma paternalista, repousa a mensagem que, de fato, importa. Haddad deve mimetizar Lula —ou, melhor ainda, ser Lula. Jamais, na nossa história política, nem mes mo no caso de Dilma, a personalidade de um candidato foi tão completamente anulada. O paralelo possível, muito imperfeito, é com o peronista Héctor Cámpora. Indicado por Perón como seu “delegado pessoal” para representá-lo nas eleições de março de 1973, Cámpora presidiu a Argentina por escassos meses, até renunciar em julho, propiciando novas eleições e o retorno do caudilho ao poder.
O Lula oposicionista de 2002 prometia o novo, o futuro. O poderoso Lula de 2010, representado por Dilma, uma sucessora escolhida para ser efêmera, prometia o presente perpétuo. O Lula tardio de 2018, criminalmente condenado e eleitoralmente vetado, mergulha no lago dos mitos para prometer a reconstituição do tempo anterior à catástrofe.
Na “carta de transmissão”, o lulismo reescreve a história recente, produzindo um conto infantil. Nessa narrativa, uma era de ouro (o governo Lula) é interrompida por um evento cataclísmico (o impeachment), que provoca a descida ao abismo (o governo Temer). O voto em Haddad propiciaria a redenção —isto é, a restauração de um mundo perdido.
Na narrativa do lulismo tardio, um passe de mágica transforma a história em conto infantil: a abolição dos seis anos dilmistas. A “carta de transmissão” formulada como roteiro sintético de campanha, não menciona o nome da sucessora de Lula. Sem ela, eliminam-se os nexos que ligam a bolha de fartura (governo Lula) ao desastre fiscal (governo Dilma) e à depressão econômica (governo Temer). Por essa via, instaura-se a gramática do discurso mítico: a seta do tempo dá lugar ao ciclo do tempo.
O lulismo tardio é um caudilhismo singular, com traços milenaristas. “Que Deus te ilumine nessa caminhada”: orientado pelo indicador de Lula, iluminado pelo holofote divino, Haddad mostrará ao povo o caminho do retorno. O partido que nasceu cultuando a política depende, hoje, da negação sistemática do discurso político.
Eles fizeram de tudo para barrar o Lula e vão morrer na praia. Dia 7 será a morte desse projeto neoliberal que quer matar o Brasil
Fernando Haddad
Está sendo executado já há algum tempo no Brasil, de forma cada vez mais agressiva, um conjunto de ações que têm tido um efeito prático muito claro: tumultuar, desmoralizar e, no fim das contas, sabotar as eleições para escolher o novo presidente da República. O cidadão é alarmado, de cinco em cinco minutos, por bulas de advertência que afirmam que a eleição, a democracia e a Constituição estão sendo ameaçadas. Mas, por trás das notas oficiais e das outras mentiras prontas que são normalmente utilizadas para enganar o brasileiro comum, quem está realmente querendo destruir as eleições de outubro? Uma coisa é certa, segundo se pode verificar pelos fatos à vista do público: não são os generais do Exército, sejam eles da reserva ou da ativa, ou os oficiais de quaisquer das três Armas. A turma que quer virar a mesa, hoje, está exatamente do outro lado. Eles gritam “cuidado com o golpe”, com a “pregação do ódio”, com o “discurso totalitário” etc. etc. Mas parecem cada vez mais com o batedor de carteira que, para disfarçar o que fez, sai gritando “pega ladrão”.
É impossível cometer uma violência tão espetacular numa campanha eleitoral quanto a tentativa de assassinato praticada contra o candidato Jair Bolsonaro — mais que isso, só matando. O homem perdeu quase metade do sangue do próprio corpo. A faca do criminoso rasgou seus intestinos, o cólon, artérias vitais. Bolsonaro sofreu cirurgia extensa, demorada e altamente arriscada, e passará por outras. Só está vivo por um capricho da fortuna. Foi posto para fora da campanha eleitoral justo no momento mais decisivo. Poderia haver alguma agressão maior ou pior do que essa contra um candidato? É claro que não. O fato é que a tentativa de homicídio, cometida por um cidadão que foi militante durante sete anos da extrema esquerda, como membro do PSOL, desarrumou todo o programa contra a boa ordem da eleição presidencial. O roteiro, desde sempre, prevê que a esquerda fique no papel de vítima e Lula no de mártir, “proibido” de se candidatar e “perseguido” pela Justiça. Deu o contrário: a vítima acabou sendo justamente quem estava escalado para o papel de carrasco.
A opção da esquerda para enfrentar a nova realidade parece estar sendo “dobrar a meta”. Nada representa com tanta clareza essa radicalização quanto o esforço para fazer com que as pessoas acreditem que a tentativa de matar Bolsonaro foi apenas um incidente de campanha, “um atentado a mais”, coisa de um doidão que podia fazer o mesmo com “qualquer um” — na verdade uma coisa até natural, diante da “pregação da violência” na campanha. Ninguém foi tão longe nessa trilha quanto a responsável por uma “Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão”, repartição pública que você sustenta na Procuradoria-Geral da República. Depois de demorar quatro dias inteiros para abrir a boca sobre o crime, a procuradora Deborah Duprat soltou uma nota encampando a história de que houve “mais um ataque”. E quais foram os outros? Segundo a procuradora, o “tiro” que teria sido disparado meses atrás na lataria inferior de um ônibus no qual Lula circulava tentando fazer campanha no Paraná, escorraçado de um lado para outro pelos paranaenses.
Que tiro foi esse? Tudo o que se tem até agora a respeito, em termos de provas materiais, é um buraco na carroceria do ônibus — não há arma, não há autor, não há testemunha, não há nada. Mas a procuradora acha que isso é a mesma coisa que a agressão que quase matou Jair Bolsonaro. Acha também que a história se “conecta” com o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco — vítima, possivelmente, de um acerto de contas entre criminosos. Enfim, joga a culpa da facada no próprio Bolsonaro, por elogiar “o passado ditatorial” do Brasil e ser contra as “políticas de direitos humanos”. Não chega nem a ser uma boa mentira — é apenas má-fé, como a “ordem da ONU” para o Brasil deixar Lula ser candidato, ressuscitada mais uma vez. Se há um país que está em dia com as suas obrigações junto à ONU, esse país é o Brasil. Acaba de cumprir, entre 2004 e 2017, treze anos de missão de paz no Haiti, em que participaram 38 000 militares brasileiros — dos quais 25 morreram. Seu desempenho foi aplaudido como exemplar; não houve um único caso de violência ou desrespeito aos direitos humanos de ninguém, do começo ao fim da operação. Mas o Complexo Lula-PT-esquerda prega que o Brasil é um país “fora da lei” internacional, por não obedecer a dois consultores de um comitê da ONU que decidiram anular a Lei da Ficha Limpa. Estão, realmente, apostando tudo na desordem.J.R. Guzzo
A tosca brutalidade deste setembro foge às interpretações normais e se transforma em paradoxo de si mesmo. As contradições esbarram umas nas outras, disputando espaço.
Primeiro, o fogo que destruiu o Museu Nacional, no Rio, consumiu em poucos minutos o que fora acumulado em séculos, num retrato do incêndio geral que hoje perpassa o Brasil como tragédia. Depois, o candidato presidencial que propõe liberar o uso de armas e caça votos a partir da violência verbal foi esfaqueado em plena rua.
O crime jamais foi instrumento da política e, assim, a tentativa de assassinato em Juiz de Fora é repugnante em si. O fato de o criminoso ser um aparente desequilibrado não diminui a aberração. A insanidade atenua o tipo e o rigor da pena, ou exclui o caráter político da ação, mas não altera a sordidez do atentado.
No entanto, Jair Bolsonaro foi também vítima da própria ideia de violência constante, suporte de sua candidatura, que ele mesmo apregoou de norte a sul. Sua linguagem teve invariável tom destrutivo, como se ocultasse ódio interior. A insistência em armar a população para enfrentar a violência significaria abolir o próprio Estado, destruindo a polícia e a Justiça e, assim, criando o caos absoluto.
Cada proposta soava como chamamento a substituir o diálogo pela ferocidade da imposição de ideias, como nas ditaduras. Noutras ocasiões exibiu destemperado machismo – numa palestra no Rio contou ter quatro filhos homens e acrescentou: “No quinto, fraquejei e veio mulher”.
Por tudo isso tornou-se réu no Supremo Tribunal por “apologia do crime”, por “incitar ao estupro” e por “racismo e injúria”. O próprio ministro Marco Aurélio Mello relator dos processos, já indagou, publicamente, se “réu pode ser candidato”. Não pôs em dúvida o aspecto legal (aplicável aos condenados em segunda instância, como Lula da Silva), mas, sim, a legitimidade moral de um réu se candidatar a chefe de Estado e de governo.
Para parecer diferente dos políticos Bolsonaro evitou aliados, ainda que desde 1989 ele próprio viva dessa mesma política degradada. Foi vereador e quatro vezes deputado federal, passando por nove partidos.
Os desvarios e desequilíbrios atraem os desequilibrados e neles se multiplicam. A partir daí podem redundar em adesão fanática ou em inimizade gratuita, igualmente fanatizada. Em ambos os casos tudo é cego, como todo fanatismo. Ao ser preso, interrogado sobre quem o mandou esfaquear, o criminoso respondeu: “Foi Deus, lá de cima!”.
Invocar o nome de Deus em vão, como artimanha tática, foi usual também na campanha de Bolsonaro. Dias antes do atentado, os cartazes que o receberam em Presidente Prudente e noutras cidades proclamavam: “Deus acima de todos”. Mesmo assim, ele defendeu o uso de armas e se fotografou ao lado de crianças, esticando o braço como se as ensinasse a disparar um fuzil.
Que odioso deus o saudava? O amor é a única arma de Deus. Não há amor irado e a ira jamais serviu a nada, menos ainda ao ato de governar.
Esses pequenos “incêndios” na campanha eleitoral lembram a Alemanha de 1930 e o caos que, três anos depois, levou Hitler ao poder. Eram tempos de frustração e desesperança. Derrotados na guerra de 1914-18 e desabituados à democracia, os alemães desconheciam o debate de ideias e o diálogo político.
O partido nazista formou, então, “grupos armados” para “reerguer o orgulho da Alemanha”. Em 1933, pregando a violência, Hitler chegou ao poder pelo voto. Não buscava unir o país no diálogo para solucionar problemas. Ambicionava o poder para impor a violência.
O mais minucioso biógrafo de Hitler, o alemão Joachim Fest, lembra que a aceitação das absurdas ideias nazistas só ocorreu porque a Alemanha “era um país profundamente exasperado” e “sem rumo”.
O Brasil de 2018 é, também, um país exasperado e sem rumo. A corrupção gerada no conluio entre governantes e grandes empresários desacreditou a política e reduziu os políticos a cinza inservível.
A tática de Hitler, lembra seu biógrafo, “consistia em concentrar as energias para fugir do anonimato e destacar-se de qualquer forma dos concorrentes”. Assim, acrescenta, “tornou-se famoso pelo cinismo alucinante que foi sua característica”.
É a tática do “falem mal, mas falem de mim”, com que, aqui, Jair Bolsonaro saiu do anonimato e virou candidato. Foi assim que dias antes do atentado, reunido com ruralistas em Rondônia, prometeu reduzir as áreas de preservação ambiental e criticou a visão unânime da ciência sobre o perigo do desmatamento da Amazônia.
Hitler foi “uma mistura de excentricidades e gafes”, definiu seu principal biógrafo. Transpondo a 2018, basta estar atento para observar algo similar entre nós. Já lembrei aqui que Lula e Bolsonaro são iguais no tom místico e autoritário, na habilidade de nunca revelar o que são ao esconder-se mais ou ocultar-se menos.
Condenado e preso, Lula já não é candidato, mas segue em campanha como escudeiro de Fernando Haddad. Em árabe, Haddad significa “ferreiro”, mas ele quase nada forjou como ministro da Educação, além de entregar o ensino superior a grupos que comercializam ações na Bolsa de Valores. Não foi, também, violência?
O atentado de Juiz de Fora é alerta e advertência. A oca campanha eleitoral não pode ser substituída pela violência. Nem sequer em pequenos gestos, como o da foto de Bolsonaro no hospital levantando os dedos para simular um revólver.
Seria absurdo culpar a vítima pelo crime, mas no horror atual não há espaço para nenhum mártir. Não há nenhum Gandhi. Tudo é alucinação e, entre as cinzas da facada, só resta o velho adágio: violência gera violência.
Alvin Toffler, na década de 1980, lançou um livro com o título A Terceira Onda, no qual preconizava o mundo futuro da tecnologia, que substituiria em grande parte a mão de obra repetitiva da indústria e da agricultura, mostrando como a sociedade de serviços, que denominou “terceira onda”, dominaria o mundo. Não tinha dados suficientes para saber até que ponto, com o crescimento da população humana e a redução constante de mão de obra da indústria e da agricultura, seria esta substituída pelas oportunidades abertas na área de serviços, que teria como base uma considerável elevação do nível educacional e cultural dos empregados, no porvir.
No livro, todavia, havia uma séria preocupação quanto aos “integradores do poder”, expressão que utilizava para denominar os “burocratas”, aqueles que, com os políticos, governam os países.
Numa de suas reflexões declarava que, para se sustentarem no poder, os “integradores” geram novos “integradores” e criam novas exigências sobre a sociedade para que não perderem seus cargos, vaticinando que, no futuro, seriam mais importantes que os políticos. Isso porque estes passam e aqueles, não.
O Brasil, infelizmente, constitui a mais clara realização da profecia toffleriana, pois aqui os burocratas comandam o País, multiplicam as exigências sobre a sociedade, atrapalhando qualquer sonho de desenvolvimento, multiplicando-se de uma forma assustadora, com direitos que se auto-outorgam e devem ser suportados pelo povo a um custo que parece estar levando a Nação à Idade Média, quando os servos da gleba sustentavam, com seu trabalho e riqueza, o ócio dos senhores feudais e de sua casta.
Comecemos com o sistema tributário, irracional, confuso e de impossível interpretação científica pelos maiores especialistas. No momento em que se permite aos agentes do erário atribuir a qualquer operação empresarial a suspeita de planejamento tributário e, mesmo que o empresário siga rigorosamente a lei, mas não escolha o caminho mais oneroso de pagar tributos, deve ele ser considerado sonegador e apenado com elevadíssimas multas, cria-se fantástica insegurança jurídica. A função do fisco passa a ser não a de orientar o contribuinte, mas exclusivamente a de obter, legal ou ilegalmente, recursos para sustentar a esclerosada máquina burocrática, intocável em seus direitos “feudalísticos”. Não se pode esquecer que a carga tributária brasileira é superior à de EUA, China, Japão, Suíça, Coreia do Sul, México e de quase todos os países emergentes.
Assim é que 13,4 milhões de servidores públicos (ativos e inativos, civis e militares) – ou seja, 6,44% da população brasileira, sendo 2,2 milhões federais, 4,7 milhões estaduais e 6,5 milhões municipais – gastaram em 2017 o correspondente a 15,90% do produto interno bruto (PIB), vale dizer, consumiram 49,20% da carga tributária, que foi de 32,38% do PIB em 2016.
Por outro lado, os governantes brasileiros deste século, principalmente os dos 13 anos de domínio da esquerda, levaram ao poder seus aliados, prevalecendo a preferência ideológica à eficiência do servidor público. Catapultaram-se, dessa forma, espetaculares escândalos de corrupção (mensalão e petrolão), assim como se exacerbou o corporativismo dos enquistados no poder com monumental má aplicação de recursos, produzindo, nada obstante a elevadíssima carga tributária, uma queda no PIB, só nos dois últimos anos levemente recuperada, tendo havido uma lamentável redução no investimento para o desenvolvimento. Perdemos, pois, competitividade internacional, estando o País a navegar nas águas turbulentas da descrença generalizada, com 13 milhões de desempregados, à custa da preservação de todos os intocáveis privilégios dos burocratas brasilienses.
O pior, todavia, reside na instabilidade institucional criada. Sendo função da burocracia não auxiliar, mas complicar a vida do cidadão para se manter no poder, todas as reformas que objetivavam tornar todos os brasileiros iguais (governantes e povo), simplificar a legislação, torná-la compreensível para os que devem cumpri-la, reduzir a ineficiente máquina estatal, fazer que a que Federação coubesse no PIB foram boicotadas na “Versalhes brasileira do século 21” (Brasília), com o apoio de uma classe política acuada por investigações e denúncias decorrentes dos escândalos gestados desde o início do século.
E, à evidência, tudo isso regado com uma superinflação de leis criadas por políticos e burocratas. A todo momento alguma lei é descumprida e os salvadores da pátria, revestidos do sagrado dever de não permitir que nada desse arsenal legislativo seja atingido, põem sob suspeita todo e qualquer cidadão, utilizando-se sempre da estratégia de promover um escândalo público, via imprensa, para facilitar seu trabalho punitivo. Nesse quadro, a confiança de brasileiros e estrangeiros tem sido cada vez menor num país onde a racionalidade do poder há muito deixou de existir.
Um Poder Judiciário invasor de funções legislativas e executivas, um Legislativo em grande parte manietado por desvios e investigações, um Executivo dominado pela burocracia, uma carga tributária insuportável para sustentar a casta dominante e uma sociedade exaurida, isso é o que restou deste país exangue e dividido pela pior das ditaduras, que é a dos privilegiados, os únicos que podem mudar o curso da história, mas que não o fazem porque não desejam perder suas benesses.
Em meu livro Uma Breve Teoria do Poder, tristemente concluí que, através da História, a função do detentor do poder sempre foi não servir, mas manter o poder, representando, pois, o grande obstáculo que vivemos, na democracia brasileira, que, apesar de eleições sucessivas, continua sendo destruída pelo corporativismo burocrático.
A propaganda eleitoral do PT garante que, com a instalação de Fernando Haddad na Presidência, teremos “o Brasil feliz de novo”. Essa conversa fiada confirma que, para a seita cujo único deus é um presidiário, os eleitores destes trêfegos trópicos são um bando de idiotas.
“O Brasil feliz de novo”. É o que promete a tapeação forjada para induzir o eleitorado a acreditar que só depois do “golpe” desfechado por Michel Temer vieram o maior esquema corrupto da história, os 13 milhões de desempregados, os 12 milhões de analfabetos, a economia em decomposição e as relações incestuosas entre políticos e empresários, fora o resto.
Para quem vê as coisas como as coisas são, o eventual regresso ao poder dos celebrantes de missa negra seria a reedição mais cafajeste do pesadelo que durou 13 anos. “O Brasil feliz de novo” é coisa de vigarista. Mas pelo menos os governos de dois países, velhos comparsas do lulopetismo, caberiam com notável exatidão nesse slogan malandro.
Com Haddad no Planalto, teríamos a tirania venezuelana feliz de novo. Um governo do poste fabricado por Lula certamente engoliria sem engasgos os calotes bilionários que o parceiro bolivariano vem aplicando no vizinho perdulário. Também a ditadura cubana ficaria feliz de novo. A ilha presídio parou de pagar o que o BNDES enterrou no porto de Mariel há alguns meses. Haddad vai cobrar o cúmplice caloteiro? Ou vai deixar por isso mesmo?
O despachante de presidiário que virou candidato a presidente precisa ser forçado a dizer o que fará nos debates eleitorais e sabatinas que, finalmente, começará a enfrentar. Confrontado com perguntas sobre o tema, está desde já proibido de dizer que buscará respostas numa cela de cadeia em Curitiba.
Nos últimos quatro anos e meio, a política fez uma excursão do paraíso da impunidade para o inferno da Lava Jato. Agora, às vésperas de uma nova eleição geral, começam a surgir os primeiros sinais de que esse deslocamento pode ter sido uma viagem em círculos. Depois de tudo o que se soube, o caixa dois continua aberto em inúmeros comitês eleitorais.
O dinheiro de campanha, como se sabe, está no DNA da corrupção política. Quando a verba passa por baixo da mesa, cria-se um vínculo entre doadores e receptores. A mão que repassa a verba já recebeu, está recebendo ou ainda receberá a contrapartida. Nesse pacto demoníaco, você, que vive no caixa um, entra com o bolso.
Estão proibidas as doações de empresas. Verba de empresário, só na pessoa física. Há um fundo eleitoral público. Mas só os ingênuos acreditaram que 2018 estaria livre do caixa dois, eufemismo para corrupção. Ao expor o crime, a Lava Jato emitiu um sinal de maturidade. Ao reincidir na delinquência, a política acentua a decadência da democracia. O vício ignora até o risco. Hoje, bastam um procurador inquieto e um emissor de nota fria arrependido para inaugurar uma nova crise. Ela virá. É questão de tempo.
Aumentou muito a imprevisibilidade da campanha. O Brasil navega no nevoeiro. Não é sem razão que os mercados estão voláteis. Todos os grupos políticos enfrentam algum tipo de incerteza ou problema. No caso do líder das pesquisas, Jair Bolsonaro, a campanha está em crise pela incapacidade de decidir o que fazer nestas três últimas semanas. O PT está embalado pela esperança da transferência de votos, mas se o crescimento não for rápido, vão se aprofundar as divisões internas.
Sobre a campanha de Alckmin recai sempre a mesma pergunta: “Por que o candidato não decola?” Ele disse com bom humor ontem, na sabatina deste jornal, que queria ser jornalista, cobrir uma campanha, e que todos nós fôssemos candidatos para ele poder repetir essa pergunta. Sua resposta é que nesta eleição nada está decidido ainda e ninguém está garantido no segundo turno. Além de não decolar, Alckmin enfrenta a pressão das últimas investigações em torno de políticos do próprio PSDB.
Marina Silva, da Rede, enfrenta o temor da dispersão de aliados, colaboradores, apoiadores e, principalmente, eleitores com a sua queda nas pesquisas. As intenções de voto podem migrar para outros que pareçam mais viáveis, por isso qualquer erro pode ser fatal.
Ciro Gomes, do PDT, tem que lutar contra a possibilidade alta de Haddad convencer os eleitores de que é a alternativa mais segura contra Bolsonaro, além de atrair os que ficarem em dúvida sobre o apoio a Marina. Precisa ser o antiPT, mas com discurso de esquerda, e ser o antiBolsonaro, num momento delicado de saúde do concorrente.
Na campanha de Bolsonaro, desde o atentado da semana passada, ficou claro que a família, um grupo mínimo de amigos e o presidente do PSL fazem um cordão que não se alarga. Nesse círculo íntimo não entram o vice, general Mourão, nem o economista Paulo Guedes. Ele chegou a ir a Juiz de Fora e não o encontrou, apesar de Bolsonaro já ter recebido, e gravado vídeo, com o senador Magno Malta.
O candidato a vice, general Mourão, seria obviamente a pessoa adequada a substituí-lo em alguns eventos, mas não teve permissão para isso. Ele não tem traquejo para fazer os eventos de massa, mas poderia ter algum papel além de cumprir a própria agenda, que não tem muita visibilidade. Flávio Bolsonaro chegou a dizer que ele, Flávio, poderia ser o substituto de Bolsonaro em debates. Isso é um despropósito e sinal do problema desta campanha: sua estrutura é basicamente familiar. Quando o PRTB foi à Justiça, o partido queria apenas fazer uma consulta sobre a alternativa, caso fosse necessária, da substituição em atos de campanha, mas acabou deixando clara a fissura dentro do bolsonarismo. Os integrantes dessa cúpula precisam manter a campanha no ar, mas não sabem como fazê-lo sem Jair Bolsonaro.
Os outros candidatos não sabem muito bem qual é a melhor estratégia para combater o líder das pesquisas. Nas sabatinas do GLOBO, Marina e Ciro o criticaram, mas de forma bem calculada. O ataque mais duro de Ciro foi contra o general Mourão, a quem chamou de “jumento de carga”. Sobre a hipótese da vitória do capitão, disse que choraria e deixaria a política. Marina afirmou que a proposta de Bolsonaro para facilitar o acesso à arma foi desmoralizada por um ato, o feito contra o candidato. “Graças a Deus aquela pessoa não estava com uma arma”, disse Marina. Com a nova cirurgia, na noite de quarta-feira, redobraram-se os cuidados nas campanhas sobre o melhor tom da crítica a ele.
O candidato do PT, Fernando Haddad, está diante da perspectiva de subir nas próximas pesquisas, mas tem pouco tempo para lutar pela transferência de votos, sem seu poderoso padrinho ao lado. Além disso, Haddad tem problemas com seu discurso econômico. O programa foi preparado pelo mesmo pensamento da Unicamp deixado de lado em 2002, quando Lula escreveu a Carta aos Brasileiros. Ele precisa unir o partido em torno dele e, ao mesmo tempo, reduzir os temores sobre o seu caminho na economia.
Os próximos dias devem mostrar muita volatilidade nas intenções de voto. Neste denso nevoeiro de uma campanha que ficou mais incerta, o dólar sobe, o risco-país aumenta, os juros futuros se elevam. Seria estranho se não fosse assim.Míriam Leitão
A democracia não se defende sozinha. Só porque há eleições democráticas, não significa que candidatos e eleitores serão inclinados à democracia. Eleições democráticas fazem parte de um projeto muito maior de construção de um Estado pluralista, individualista e de Direito. Quando partes desse projeto começam a desmoronar, passamos a ver isso em candidaturas e na eleição deste tipo de indivíduos
Timothy Snyder, historiador americano
O México já tem sua primeira lei da era López Obrador. A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira um teto salarial para a alta burocracia. Nenhum secretário de Estado, governador, senador, deputado ou funcionário público poderá ganhar mais do que os 108.000 pesos (24.170 reais) pagos mensalmente ao próximo presidente do México. A norma também elimina as pensões pagas a cinco ex-presidentes. Estes eram dois dos eixos do programa de austeridade prometido na campanha pelo então candidato do esquerdista Movimento de Regeneração Nacional (Morena), que obteve um resultado histórico em 1º. de julho impulsionado por sua mensagem dirigida a acabar com os privilégios da classe política.
Os deputados aprovaram, por 246 votos a 111, a lei de remunerações de servidores públicos. A norma pretende acabar com uma velha e reiterada violação à Constituição mexicana, que indica em seu artigo 127 que nenhum funcionário pode ganhar mais que o presidente, que hoje tem um salário de 270.000 pesos mensais (60.450 reais). López Obrador, entretanto, prometeu em meados de julho que irá reduzi-lo a menos da metade depois da sua posse, em 1º. de dezembro.
Os deputados do Morena desempoeiraram uma norma de sete anos atrás para dar ao próximo Governo de López Obrador uma de suas vitórias mais precoces no Congresso. O partido, que agora controla amplamente a câmara baixa com 255 dos 500 deputados, mostrou sua pressa em agradar ao futuro presidente ao descongelar um projeto que dormia o sono dos justos desde 8 de novembro de 2011. Naquela ocasião, o Senado enviou o texto à Câmara dos Deputados que, controlada pelo PRI, nunca o discutiu.
Para aprovar a lei, o Morena apostou numa manobra pouco usada no Congresso e evitou que o projeto transitasse pelas comissões legislativas. A oposição respaldou a medida, que significa, na prática, um reajuste para baixo nos salários da alta burocracia no orçamento de 2019. Entretanto, a maioria dos partidos de oposição pediu emendas ao texto escrito no mandato de Felipe Calderón (2006-2012). “Não compartilhamos que se aprove sem mudanças, porque está desatualizado e não dá certeza jurídica”, afirmou Dulce María Sauri, deputada do PRI.
O PAN e o PRI, partidos rebaixados a segunda e terceira força no Congresso, respectivamente, disseram que a entrada da lei em vigor tal como está causará um problema judicial. Nestes sete anos foram criados órgãos e institutos autônomos de alta especialização que não são considerados pelo texto legislativo e cuja oferta salarial causará uma avalanche de recursos nos tribunais trabalhistas.
O Morena não cedeu e recusou-se a emendar a redação dos 17 artigos da lei, que inclusive impõe penas da prisão aos servidores públicos que emitirem cheques ou pagarem valores superiores ao limite estabelecido. O episódio serve para ilustrar a nova realidade do Congresso mexicano. “Coisas como esta vão continuar acontecendo. Vão continuar chocando. Faço um chamado a vocês para que entendam para onde sopram os novos ventos e se unam a essa ventania”, disse o deputado morenista Pablo Gómez, um dos principais defensores da nova lei.
Jamais se recupera plenamente um museu, porque eles sempre guardam peças únicas que expressam sua singularidade na natureza ou história. Assim, não interessa que haja doação para o Museu Nacional de outro sarcófago egípcio, porque Sha-amun-en-su está perdida para sempre, e não cabe substituição por uma réplica criada por artista plástico. Além disso, paredes, escadas, pisos e telhados da construção bicentenária talvez sejam refeitos, mas serão imitações de materiais do século XIX para edificação de palácios. Houve ainda destruição de exemplares de animais extintos, o que prejudicará elaboração de teorias sobre a evolução até aos seres vivos da atualidade. Assim, as cinzas do precioso acervo constituem um dano sem precedentes para a elaboração do conhecimento e o registro da produção humana.
O Brasil deve, portanto, penitenciar-se diante do mundo, porque demonstrou, no dia 2 de setembro de 2018, descaso pelo seu principal patrimônio histórico-científico criado por dom João VI, há 200 anos. Isso vem numa sequência de perdas irreparáveis, e, mesmo assim, muitos outros tesouros continuam padecendo de abandono e depredação, pois prevalecem a incúria administrativa e o desrespeito da população pelos bens da comunidade.
O Museu Nacional havia celebrado o bicentenário no dia 6.6.2018, sem a presença das autoridades maiores da República, apesar de convidadas. Tinha surgido como Museu Real, em 1818, no Campo de Santana, sendo transferido para o antigo palácio imperial, na Quinta da Boa Vista, em 1892. Desde o início, dedicou-se à produção de conhecimento, abrigando, nas últimas décadas, cursos de mestrado e doutorado em antropologia, arqueologia, botânica e zoologia, além de especializações em linguística e geologia. Ele atraiu sempre importantes nomes da ciência mundial, como visitantes e mesmo pesquisadores por vários anos.
A destruição desse ambiente de trabalho é especialmente dolorosa para a antropologia, porque consumiu a produção original de figuras ilustres desde Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), Heloísa Alberto Torres (1895-1977) e Luís de Castro Faria (1913-2004), que trabalharam ali por muitos anos, formando centenas de profissionais e traçando rigorosos métodos de investigação em diferentes temas sobre as populações indígenas e os brasileiros.
Houve gestos heroicos de pesquisadores que arrombaram portas para resgatar alguns tesouros, arriscando a própria vida. Criterioso rescaldo pode trazer de volta instrumentos, fósseis e minerais de inestimável valor, mas muitos estudantes e professores perderam, certamente, copiões de teses ou textos prontos para o prelo, sem exemplar em sua casa. Como retomar a normalidade? Como reconstruir tudo em outro ambiente?
Mesmo assim, o país não se emenda. Estão surgindo medidas para conferir a segurança de outros tesouros nacionais, mas o melhor acervo de história natural e de antropologia da América Latina está perdido para sempre.