sábado, 12 de abril de 2025
Coragem dos ignorantes
Donald Trump não é um político tradicional. Ele frequenta a categoria dos homens corajosos porque desconhecem os problemas que o cercam. São os destemidos ignorantes. Ele avançou e chegou a preocupar o mundo das finanças quando as letras do Tesouro dos Estados Unidos começaram a ser vendidas em grandes quantidades e os compradores começaram a exigir juros mais elevados. Isso significa, na linguagem de quem lida com o assunto, que a confiança tinha acabado. Ao mesmo tempo, verificou-se grande quantidade de ordens de compra de títulos do governo alemão. As bolsas despencaram, e o previsível caos se anunciava no final da jornada. Diante da catástrofe iminente, Trump recuou. Limitou sua guerra a um alvo: a China.
Seu recuo de 90 dias, três meses, concede um prazo razoável para o mundo entender melhor aonde o presidente dos Estados Unidos quer chegar. A sua proposta de substituição de importações, velha política latino-americana sugerida pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), parece fora do tempo. As indústrias norte-americanas que migraram para a China também se modernizaram no país que as recebeu. Os trabalhadores foram substituídos por robôs. Se a política de Trump tiver algum resultado positivo, nos próximos anos será representada por nova geração de robôs que vão trabalhar em fábricas norte-americanas. Mas nada disso acontecerá no curto prazo, nem dentro de um mandato presidencial de quatro anos.
O mundo conseguiu um prazo para respirar. Os europeus, que já tinham decidido retaliar na mesma proporção do agravo, resolveram aguardar 90 dias. A maioria dos países se contentou com esse novo prazo e passou a assistir de arquibancada à luta entre os dois gigantes do comércio mundial. Os chineses jogam xadrez. Responderam vendendo 50 bilhões de dólares em títulos do Tesouro norte-americano, o que provocou a desvalorização do papel e quebrou a confiança internacional naquele investimento. Os americanos acusaram o golpe e recuaram imediatamente. Mas taxaram os produtos chineses em absurdos 145%.
Guerras tarifárias não costumam consagrar vencedores ou vencidos. Costumam dar motivos para guerras de verdade, tiros e bombas para todos os lados. As últimas duas guerras mundiais estão repletas de exemplos de tributação excessiva que degenerou em conflito bélico. A condenação da Alemanha a pagar vultosas multas após a primeira guerra resultou na indignação do país, na consequente preparação bélica que desaguou no conflito que produziu mais de 50 milhões de mortos.
A irracionalidade dos dirigentes políticos não é recente, nem original. As pessoas suspeitavam que os novos e mais eficientes meios de comunicação produziriam melhores líderes, mais bem informados. Não é verdade. Trump é um legítimo representante do pensamento dos anos 30 do século passado. Além disso, ele é contra a educação nos Estados Unidos — persegue estudantes que façam crítica ao governo norte-americano e a Israel —, expulsa migrantes sem qualquer critério, nem julgamento. Coloca gente de outro país em prisão em El Salvador, a troco de um generoso pagamento. Ataca o Judiciário, não respeita as leis, além de ter traído a confiança de grandes eleitores, que contribuíram com milhões de dólares para sua campanha. Destruiu a aliança ocidental e quebrou o cristal da confiança que o governo de Washington inspirava no mundo. Demitiu milhares de funcionários públicos.
Um espanto. Trump é uma espécie de Nero moderno, com sua pinta de galã dos anos 30, sem qualquer verniz intelectual. O Brasil, com exceção de umas poucas empresas grandes estabelecidas em várias partes do mundo, está protegido das loucuras do homem forte do Norte por ser pequeno e não pertencer a nenhum bloco que possa ser severamente penalizado. Talvez haja algum embaraço na reunião do Brics, quando deverá ser realizado algum tipo de desagravo em relação à China. Mas, o histórico subdesenvolvimento nos protege, porque não há muito o que discutir com o Brasil, que mantém a balança comercial deficitária com os Estados Unidos. Recebeu uma taxa recíproca básica de 10%, mas poderá se beneficiar no eventual aumento de comércio com a China e outros países asiáticos. Até os europeus já admitem a possibilidade de ratificar o acordo Mercosul-União Europeia.
Mas ninguém duvida de que Trump é um personagem da mídia. Ele adora frequentar as manchetes de jornal, estar diante dos holofotes de televisão. Faz qualquer negócio para aparecer sempre. Ele prometeu acabar com a guerra da Ucrânia e com o conflito entre Israel e palestinos. Tudo em uma semana. Não acabou nem com uma nem com outra guerra. Mas apareceu nos jornais do mundo inteiro.
Seu recuo de 90 dias, três meses, concede um prazo razoável para o mundo entender melhor aonde o presidente dos Estados Unidos quer chegar. A sua proposta de substituição de importações, velha política latino-americana sugerida pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), parece fora do tempo. As indústrias norte-americanas que migraram para a China também se modernizaram no país que as recebeu. Os trabalhadores foram substituídos por robôs. Se a política de Trump tiver algum resultado positivo, nos próximos anos será representada por nova geração de robôs que vão trabalhar em fábricas norte-americanas. Mas nada disso acontecerá no curto prazo, nem dentro de um mandato presidencial de quatro anos.
O mundo conseguiu um prazo para respirar. Os europeus, que já tinham decidido retaliar na mesma proporção do agravo, resolveram aguardar 90 dias. A maioria dos países se contentou com esse novo prazo e passou a assistir de arquibancada à luta entre os dois gigantes do comércio mundial. Os chineses jogam xadrez. Responderam vendendo 50 bilhões de dólares em títulos do Tesouro norte-americano, o que provocou a desvalorização do papel e quebrou a confiança internacional naquele investimento. Os americanos acusaram o golpe e recuaram imediatamente. Mas taxaram os produtos chineses em absurdos 145%.
Guerras tarifárias não costumam consagrar vencedores ou vencidos. Costumam dar motivos para guerras de verdade, tiros e bombas para todos os lados. As últimas duas guerras mundiais estão repletas de exemplos de tributação excessiva que degenerou em conflito bélico. A condenação da Alemanha a pagar vultosas multas após a primeira guerra resultou na indignação do país, na consequente preparação bélica que desaguou no conflito que produziu mais de 50 milhões de mortos.
A irracionalidade dos dirigentes políticos não é recente, nem original. As pessoas suspeitavam que os novos e mais eficientes meios de comunicação produziriam melhores líderes, mais bem informados. Não é verdade. Trump é um legítimo representante do pensamento dos anos 30 do século passado. Além disso, ele é contra a educação nos Estados Unidos — persegue estudantes que façam crítica ao governo norte-americano e a Israel —, expulsa migrantes sem qualquer critério, nem julgamento. Coloca gente de outro país em prisão em El Salvador, a troco de um generoso pagamento. Ataca o Judiciário, não respeita as leis, além de ter traído a confiança de grandes eleitores, que contribuíram com milhões de dólares para sua campanha. Destruiu a aliança ocidental e quebrou o cristal da confiança que o governo de Washington inspirava no mundo. Demitiu milhares de funcionários públicos.
Um espanto. Trump é uma espécie de Nero moderno, com sua pinta de galã dos anos 30, sem qualquer verniz intelectual. O Brasil, com exceção de umas poucas empresas grandes estabelecidas em várias partes do mundo, está protegido das loucuras do homem forte do Norte por ser pequeno e não pertencer a nenhum bloco que possa ser severamente penalizado. Talvez haja algum embaraço na reunião do Brics, quando deverá ser realizado algum tipo de desagravo em relação à China. Mas, o histórico subdesenvolvimento nos protege, porque não há muito o que discutir com o Brasil, que mantém a balança comercial deficitária com os Estados Unidos. Recebeu uma taxa recíproca básica de 10%, mas poderá se beneficiar no eventual aumento de comércio com a China e outros países asiáticos. Até os europeus já admitem a possibilidade de ratificar o acordo Mercosul-União Europeia.
Mas ninguém duvida de que Trump é um personagem da mídia. Ele adora frequentar as manchetes de jornal, estar diante dos holofotes de televisão. Faz qualquer negócio para aparecer sempre. Ele prometeu acabar com a guerra da Ucrânia e com o conflito entre Israel e palestinos. Tudo em uma semana. Não acabou nem com uma nem com outra guerra. Mas apareceu nos jornais do mundo inteiro.
Balas de Prata
Anda tudo doido com a série. Dizem que é boa. Que é a chave de todos os mistérios e angústias da juventude contemporânea. A razão que explica o inexplicável. A bala de prata.
Eu não vi “Adolescência”. Não verei. Tenho horror a unanimidades. E, reparem: é preciso uma série de televisão para diagnosticar o óbvio? O problema não é subtil, esfíngico. Está à nossa frente, a berrar como um palhaço embriagado num coreto. Está nas mãos, nos bolsos, nos nossos olhos mortos: o telemóvel, esse milagre estúpido que há-de dar cabo de nós.
Outro dia, o João Miguel Tavares — homem inteligente — apresentou uma tese elegante no Público — mas errada. Segundo ele, depois da BD nos anos 50, da televisão nos anos 60, dos jogos de vídeo nos anos 80, os telemóveis são apenas o novo capítulo de um velho pânico. Mudam-se os tempos, mudam-se os brinquedos. A histeria é sempre a mesma. Talvez. Talvez à superfície.
Mas o próprio João Miguel, que desconfia de balas de prata, acaba por disparar a sua. Em cheio na testa. A tese de que tudo se repete é uma dessas soluções milagrosas que ele próprio condena. Mas não é assim. Há uma diferença gritante e melancólica: o telemóvel não é um brinquedo. É arma. É um amplificador de misérias. Especializámo-nos em descobrir o pior uso possível para seja o que for — e praticá-lo com esmero. Há paralelos? Há. Mas sempre piores. Neste caso, o telemóvel é uma nova categoria de alienação.
Somos todos crianças com um telefone na mão. É um mal muito democrático. Passamos uma hora a olhar para o vazio e juramos que é importante. Falar disto como se fosse problema exclusivo dos mais novos é um erro. Não é. Se um pai está a olhar para o telefone em vez de estar a fazer um desenho, o filho não vai querer desenhar.
O telemóvel esburaca-nos a existência. E por esses orifícios entram demónios que nem o mais degenerado de 1950 imaginaria. E nós, com um sorriso aparvalhado, partilhamos essa janela com os filhos. Como quem dá bagaço a um recém-nascido. Para depois escrevermos textos resignados, suspirando que é a vida, mais do mesmo, etc.
“Têm de aprender”, dizem. “O mundo é feito de computadores”, insistem. Mas basta um dedo gorduroso para deslizar pela infâmia rectangular. Qualquer avozinho semeia milho no Facebook. Qualquer analfabeto tem a perícia de uma lagartixa iluminada. Não é preciso licenciatura para isto. Há um abismo entre ciência computacional e ser capaz de mexer nas tábuas brilhantes que veneramos como sacrários.
Perdeu-se o instinto de defesa; perdeu-se a vergonha. O mal espalha-se e tratamo-lo com regulamentos de piscina municipal. Quantas escolas proibiram verdadeiramente o telemóvel? Uma? Duas? “Não se usa o telemóvel durante as aulas”, dizem — como se fosse aceitável trazer veneno no bolso, desde que não se beba à frente do professor.
Sei de colégios onde, durante o recreio, os campos estão sem ninguém. As árvores não têm crianças. As calças não se esfolam. Tempo bizarro: miúdos a rebentar foguetes ou a pôr sapos a fumar cigarros parecem agora uma esperança.
O buraco, o verdadeiro, é o vazio. O homem precisa de enchê-lo e tem horror ao silêncio, à vida sem estímulo. E o telemóvel é a máquina portátil de fabricar distracções — infinita, irrelevante, irredimível.
O velho Godard dizia que no cinema elevava-se a cabeça e com a televisão passámos a baixá-la. Pois agora só vemos a barriga. A queda não é figurada. A queda é física, mesmo.
O mais simples é dizer que os tempos agora são outros, que tem de ser e pronto. Mas cada acto de resignação é um acto colaborativo. Com um disparo. De uma bala de prata. Contra nós.
Explicar por que razão o telemóvel é mau não resolve nada. É como explicar porque é que a fome dói: quem tem fome já sabe.
Mas nem sempre sabe isto: ao contrário do que achamos, não escolhemos. Perante vinte impulsos, achamos que decidimos, — mas é o impulso que nos decide a nós. É o par de sapatos da montra que nos compra. A imagem que nos empurra. A pornografia que nos devora.
A única saída — e nisto a bala de prata do João Miguel aponta na direcção certa — é a de sempre.
O verdadeiro caminho da liberdade é desconfiar de si mesmo. Conter-se. Fechar os olhos.
Fechar os olhos. Só isso.
Eu não vi “Adolescência”. Não verei. Tenho horror a unanimidades. E, reparem: é preciso uma série de televisão para diagnosticar o óbvio? O problema não é subtil, esfíngico. Está à nossa frente, a berrar como um palhaço embriagado num coreto. Está nas mãos, nos bolsos, nos nossos olhos mortos: o telemóvel, esse milagre estúpido que há-de dar cabo de nós.
Outro dia, o João Miguel Tavares — homem inteligente — apresentou uma tese elegante no Público — mas errada. Segundo ele, depois da BD nos anos 50, da televisão nos anos 60, dos jogos de vídeo nos anos 80, os telemóveis são apenas o novo capítulo de um velho pânico. Mudam-se os tempos, mudam-se os brinquedos. A histeria é sempre a mesma. Talvez. Talvez à superfície.
Mas o próprio João Miguel, que desconfia de balas de prata, acaba por disparar a sua. Em cheio na testa. A tese de que tudo se repete é uma dessas soluções milagrosas que ele próprio condena. Mas não é assim. Há uma diferença gritante e melancólica: o telemóvel não é um brinquedo. É arma. É um amplificador de misérias. Especializámo-nos em descobrir o pior uso possível para seja o que for — e praticá-lo com esmero. Há paralelos? Há. Mas sempre piores. Neste caso, o telemóvel é uma nova categoria de alienação.
Somos todos crianças com um telefone na mão. É um mal muito democrático. Passamos uma hora a olhar para o vazio e juramos que é importante. Falar disto como se fosse problema exclusivo dos mais novos é um erro. Não é. Se um pai está a olhar para o telefone em vez de estar a fazer um desenho, o filho não vai querer desenhar.
O telemóvel esburaca-nos a existência. E por esses orifícios entram demónios que nem o mais degenerado de 1950 imaginaria. E nós, com um sorriso aparvalhado, partilhamos essa janela com os filhos. Como quem dá bagaço a um recém-nascido. Para depois escrevermos textos resignados, suspirando que é a vida, mais do mesmo, etc.
“Têm de aprender”, dizem. “O mundo é feito de computadores”, insistem. Mas basta um dedo gorduroso para deslizar pela infâmia rectangular. Qualquer avozinho semeia milho no Facebook. Qualquer analfabeto tem a perícia de uma lagartixa iluminada. Não é preciso licenciatura para isto. Há um abismo entre ciência computacional e ser capaz de mexer nas tábuas brilhantes que veneramos como sacrários.
Perdeu-se o instinto de defesa; perdeu-se a vergonha. O mal espalha-se e tratamo-lo com regulamentos de piscina municipal. Quantas escolas proibiram verdadeiramente o telemóvel? Uma? Duas? “Não se usa o telemóvel durante as aulas”, dizem — como se fosse aceitável trazer veneno no bolso, desde que não se beba à frente do professor.
Sei de colégios onde, durante o recreio, os campos estão sem ninguém. As árvores não têm crianças. As calças não se esfolam. Tempo bizarro: miúdos a rebentar foguetes ou a pôr sapos a fumar cigarros parecem agora uma esperança.
O buraco, o verdadeiro, é o vazio. O homem precisa de enchê-lo e tem horror ao silêncio, à vida sem estímulo. E o telemóvel é a máquina portátil de fabricar distracções — infinita, irrelevante, irredimível.
O velho Godard dizia que no cinema elevava-se a cabeça e com a televisão passámos a baixá-la. Pois agora só vemos a barriga. A queda não é figurada. A queda é física, mesmo.
O mais simples é dizer que os tempos agora são outros, que tem de ser e pronto. Mas cada acto de resignação é um acto colaborativo. Com um disparo. De uma bala de prata. Contra nós.
Explicar por que razão o telemóvel é mau não resolve nada. É como explicar porque é que a fome dói: quem tem fome já sabe.
Mas nem sempre sabe isto: ao contrário do que achamos, não escolhemos. Perante vinte impulsos, achamos que decidimos, — mas é o impulso que nos decide a nós. É o par de sapatos da montra que nos compra. A imagem que nos empurra. A pornografia que nos devora.
A única saída — e nisto a bala de prata do João Miguel aponta na direcção certa — é a de sempre.
O verdadeiro caminho da liberdade é desconfiar de si mesmo. Conter-se. Fechar os olhos.
Fechar os olhos. Só isso.
Feminismos contra o fascismo: de que lado você está?
Por que tão poucas mulheres participam dos cargos políticos? Por que as que ousam entrar nessa arena são violentadas, agredidas moralmente, têm suas vidas ameaçadas? O que e quem impede as mulheres de exercerem a plena cidadania consagrada na Constituição de 1988?
Para analisar essas questões, fui convidada a participar da 1ª Audiência Pública Mulheres e Cidadania, organizada pela Escola Judiciária Eleitoral do Tribunal Eleitoral da Bahia, cujo corajoso objetivo era diagnosticar a violência política de gênero e ampliar a participação política das mulheres. Foi a primeira vez que se propôs uma audiência publica por iniciativa de importantes autoridades da Escola Judiciária: os desembargadores Abelardo Paulo da Matta Neto e Moacyr Pitta Lima Filho, além de uma ativa equipe de profissionais – homens e mulheres. Destaco que, pela primeira vez ao longo de minha longa participação pública, presenciei um evento cujos proponentes – homens e desembargadores – permanecerem do começo ao fim, até a leitura da Carta de Salvador, apontando os problemas e soluções propostos pela audiência.
Mas façamos algumas reflexões sobre a presença/ausência das mulheres na formação sociopolítica brasileira recente.
Desde os primeiros dias do século 21 enfrentamos crises, golpes, notícias falsas, governos de tom liberal e outros que flertam com o fascismo. Esse cenário sintetiza a herança do passado recente, as consequências de duas guerras mundiais, o esfacelamento do comunismo e a diversificação do capitalismo. Herdamos mudanças nas relações sociais de gênero, pois as guerras forçaram as mulheres a ocupar atividades econômicas antes desempenhadas pelos homens deslocados para atividades bélicas, das quais, aliás, nunca se livraram. Findos os conflitos, independentemente de quem tivesse sido o vencedor, as mulheres foram obrigadas (mesmo que à revelia) a voltar para as atividades domésticas.
O retorno não foi pacífico, provocou mudanças estruturais e econômicas, estimulando a abertura de alternativas profissionais, educacionais e econômicas para as mulheres. Ampliou-se o trabalho extradomiciliar, elevou-se o nível educacional das mulheres, reduziu-se o número de filhos. Concomitantemente, as cidades cresceram de maneira desorganizada, elevou-se parcamente a profissionalização masculina e feminina, o mercado de trabalho não acompanhou o crescimento populacional.
As novas tecnologias, como a internet e a inteligência artificial, foram ocupadas por poucos, embora a criatividade da população tenha superado a carência educacional. Romperam-se as fronteiras nacionais. Se na linguagem dos economistas passamos da polarização para a globalização, do ponto de vista sociológico e empírico os papéis sociais – as relações sociais de gênero – perderam tradicionais padrões.
Confrontando a ditadura de 1964-1985, os movimentos feministas ocuparam as ruas (antecedendo o Occupy), denunciavam o feminicídio e a carência de instrumentos para enfrentar a violência contra a mulher e a menina. Na redemocratização, propostas da população resultaram em algumas soluções adotadas pelo Estado: os Conselhos da Condição Feminina, as Delegacias da Mulher, a Casa da Mulher Brasileira e o importantíssimo SOS telefônico. Essas medidas foram aprimoradas com treinamento de professoras nas escolas, na universidade, entre os funcionários da polícia (delegados, atendentes etc.), com médicos nos postos de saúde e uma clara atuação sobre os direitos reprodutivos para evitar mortes por abortos inadequados.
Foram muitos anos para desenvolver e implantar essas políticas. Mas bastou um governo obscurantista e retrógrado, desumano, autoritário, para destruir essas políticas. Ataques a gênero, aos grupos LGBT+, retorno a um essencialismo identitário (homem veste azul, mulheres rosa), retorno de uma divisão radical dos papéis sociais, diabolização dos transgênero, estimularam contradições nos valores e comportamentos alterando as relações entre os membros das famílias.
A herança patriarcal fragilizou-se, mas não se extingue: o patriarcado enraizado na sociedade brasileira resiste, embora mais de 50% das famílias sejam hoje sustentadas por mulheres. O poder continua com homens socializados em padrões conservadores e que circulam absurdamente armados. Em São Paulo, por exemplo, diminuíram os roubos nos últimos 10 anos, mas aumentaram estupros e assassinatos de mulheres. Entramos no século 21 com o aumento dos feminicídios.
O governador de São Paulo, estado economicamente mais avançado do País, adota uma política educacional profundamente autoritária: implanta escolas militarizadas, exclui do currículo escolar matérias que estimulem o senso crítico, substituindo-as pela ordem e obediência. Jovens crescem sem nenhum conhecimento sobre sexualidade, são induzidos a um tipo de patriarcado em que prospera a antiga noção de que a mulher é propriedade do homem, com quem ele pode fazer o que quiser: bater, estuprar e matar.
Para analisar essas questões, fui convidada a participar da 1ª Audiência Pública Mulheres e Cidadania, organizada pela Escola Judiciária Eleitoral do Tribunal Eleitoral da Bahia, cujo corajoso objetivo era diagnosticar a violência política de gênero e ampliar a participação política das mulheres. Foi a primeira vez que se propôs uma audiência publica por iniciativa de importantes autoridades da Escola Judiciária: os desembargadores Abelardo Paulo da Matta Neto e Moacyr Pitta Lima Filho, além de uma ativa equipe de profissionais – homens e mulheres. Destaco que, pela primeira vez ao longo de minha longa participação pública, presenciei um evento cujos proponentes – homens e desembargadores – permanecerem do começo ao fim, até a leitura da Carta de Salvador, apontando os problemas e soluções propostos pela audiência.
Mas façamos algumas reflexões sobre a presença/ausência das mulheres na formação sociopolítica brasileira recente.
Desde os primeiros dias do século 21 enfrentamos crises, golpes, notícias falsas, governos de tom liberal e outros que flertam com o fascismo. Esse cenário sintetiza a herança do passado recente, as consequências de duas guerras mundiais, o esfacelamento do comunismo e a diversificação do capitalismo. Herdamos mudanças nas relações sociais de gênero, pois as guerras forçaram as mulheres a ocupar atividades econômicas antes desempenhadas pelos homens deslocados para atividades bélicas, das quais, aliás, nunca se livraram. Findos os conflitos, independentemente de quem tivesse sido o vencedor, as mulheres foram obrigadas (mesmo que à revelia) a voltar para as atividades domésticas.
O retorno não foi pacífico, provocou mudanças estruturais e econômicas, estimulando a abertura de alternativas profissionais, educacionais e econômicas para as mulheres. Ampliou-se o trabalho extradomiciliar, elevou-se o nível educacional das mulheres, reduziu-se o número de filhos. Concomitantemente, as cidades cresceram de maneira desorganizada, elevou-se parcamente a profissionalização masculina e feminina, o mercado de trabalho não acompanhou o crescimento populacional.
As novas tecnologias, como a internet e a inteligência artificial, foram ocupadas por poucos, embora a criatividade da população tenha superado a carência educacional. Romperam-se as fronteiras nacionais. Se na linguagem dos economistas passamos da polarização para a globalização, do ponto de vista sociológico e empírico os papéis sociais – as relações sociais de gênero – perderam tradicionais padrões.
Confrontando a ditadura de 1964-1985, os movimentos feministas ocuparam as ruas (antecedendo o Occupy), denunciavam o feminicídio e a carência de instrumentos para enfrentar a violência contra a mulher e a menina. Na redemocratização, propostas da população resultaram em algumas soluções adotadas pelo Estado: os Conselhos da Condição Feminina, as Delegacias da Mulher, a Casa da Mulher Brasileira e o importantíssimo SOS telefônico. Essas medidas foram aprimoradas com treinamento de professoras nas escolas, na universidade, entre os funcionários da polícia (delegados, atendentes etc.), com médicos nos postos de saúde e uma clara atuação sobre os direitos reprodutivos para evitar mortes por abortos inadequados.
Foram muitos anos para desenvolver e implantar essas políticas. Mas bastou um governo obscurantista e retrógrado, desumano, autoritário, para destruir essas políticas. Ataques a gênero, aos grupos LGBT+, retorno a um essencialismo identitário (homem veste azul, mulheres rosa), retorno de uma divisão radical dos papéis sociais, diabolização dos transgênero, estimularam contradições nos valores e comportamentos alterando as relações entre os membros das famílias.
A herança patriarcal fragilizou-se, mas não se extingue: o patriarcado enraizado na sociedade brasileira resiste, embora mais de 50% das famílias sejam hoje sustentadas por mulheres. O poder continua com homens socializados em padrões conservadores e que circulam absurdamente armados. Em São Paulo, por exemplo, diminuíram os roubos nos últimos 10 anos, mas aumentaram estupros e assassinatos de mulheres. Entramos no século 21 com o aumento dos feminicídios.
O governador de São Paulo, estado economicamente mais avançado do País, adota uma política educacional profundamente autoritária: implanta escolas militarizadas, exclui do currículo escolar matérias que estimulem o senso crítico, substituindo-as pela ordem e obediência. Jovens crescem sem nenhum conhecimento sobre sexualidade, são induzidos a um tipo de patriarcado em que prospera a antiga noção de que a mulher é propriedade do homem, com quem ele pode fazer o que quiser: bater, estuprar e matar.
Simultaneamente exalta-se a vida doméstica, a mulher dona de casa, submissa e obediente. E mesmo aquelas que se voltam para atividades políticas (houve ligeiro aumento de deputadas federais) adotam uma ideologia de direita. Justificam-se como Mães da Pátria, no Congresso. As parlamentares que entram para o campo político das propostas progressistas, para o bem coletivo, são agredidas. Exatamente como no nazismo: exaltam-se as mães da pátria, mulheres que reproduzem via maternidade mais mão de obra, caladas, submissas, defensoras de um líder supremo! Essa vertente congrega os antifeministas.
Os movimentos feministas são revolucionários. Comportam variações mas, em geral, buscam a igualdade de gênero. Igualdade entre as mulheres, igualdade entre mulheres e homens, igualdade entre todas as pessoas incluindo cor, etnia, aptidões, e demais variações. Mas sempre a igualdade. Igualdade também significa dividir o poder. Em oposição avança o antifeminismo, doutrina do autoritarismo. O antifeminismo significa retornar ao fascismo, garantir a submissão das mulheres e demais minorias a um líder brutal.
Essa história é nossa conhecida. Este é o momento de decidir de que lado estamos.
Os movimentos feministas são revolucionários. Comportam variações mas, em geral, buscam a igualdade de gênero. Igualdade entre as mulheres, igualdade entre mulheres e homens, igualdade entre todas as pessoas incluindo cor, etnia, aptidões, e demais variações. Mas sempre a igualdade. Igualdade também significa dividir o poder. Em oposição avança o antifeminismo, doutrina do autoritarismo. O antifeminismo significa retornar ao fascismo, garantir a submissão das mulheres e demais minorias a um líder brutal.
Essa história é nossa conhecida. Este é o momento de decidir de que lado estamos.
Há 80 anos campo de concentração Buchenwald era libertado
As construções na colina de Ettersberg parecem destoar da paisagem ao redor. Elas estão cercadas por uma floresta que se avista de longe, a noroeste da área urbana da metrópole cultural Weimar, na Turíngia.
Mas o que de longe parece um lugar idílico guarda, na verdade, uma história terrível: a do campo de concentração nazista Buchenwald, um dos maiores em solo alemão. Ali, de 1937 a 1945, nazistas prenderam cerca de 280 mil: judeus, dissidentes, comunistas, homossexuais, detentos estrangeiros, "ciganos" (sinti e roma), testemunhas de jeová e líderes religiosos malquistos.
Buchenwald era o próprio inferno – um dos vários infernos da máquina nazista de perseguição e assassinato. Além das instalações em Ettersberg, o complexo incluía mais de 50 pequenos subcampos, a maioria em locais de produção de bens importantes para a guerra.
Em Buchenwald foram mortas até abril de 1945 cerca de 56 mil pessoas, a maioria judeus. A libertação só veio nas semanas finais da Segunda Guerra Mundial, com a aproximação dos primeiros tanques americanos. Ao perceber a movimentação, prisioneiros deflagraram uma rebelião no dia 11 de abril de 1945, evitando a fuga de diversos soldados da SS (Schutzstaffel ou esquadra de proteção), o braço armado do partido nazista
Após o fim da guerra, a Turíngia passou a fazer parte do território alemão sob ocupação soviética. Logo os soviéticos passaram a usar suas instalações para um "campo especial", prendendo ali principalmente líderes locais do partido nazista, policiais ou empresários que mantiveram linhas de produção com trabalho forçado. Até 1950, outras 7 mil pessoas morreram ali.
Passado tanto tempo, restam poucas testemunhas e sobreviventes dos horrores daquele período. Essas lembranças dolorosas têm importância histórica. Para mantê-las vivas, ferramentas digitais são cada vez mais importantes.
"Ainda há 15 sobreviventes, 15 no máximo, que foram convidados", afirma o historiador Jens-Christian Wagner sobre a solenidade que ocorreu no 6 de abril. Ele dirige a fundação que administra os memoriais dos campos de concentração Buchenwald e Mittelbau-Dora.
Wagner lembra a cerimônia de 60 anos, em 2005. Naquela época, cerca de 500 sobreviventes compareceram ao evento. Em 2015, nos 70 anos da libertação de Buchenwald, pouco mais de 80 – a maioria já bem idosa – viajaram até Weimar.
A DW conheceu um deles à época, o ex-piloto da Força Aérea do Canadá, Ed Carter-Edwards, então com 92 anos. O avião dele foi abatido no verão de 1944 próximo a Paris, e ele foi levado para Buchenwald, onde passou três meses e meio. "Eles tratavam as pessoas como animais", disse, citando, aos soluços, os nomes dos amigos que não sobreviveram ao campo de concentração. Carter-Edwards morreu em 2017.
"Todos nós somos responsáveis por lembrar – cada cidadão, cada cidadã", diz Wagner. Trata-se, frisa ele, de marcar posição e de se opor ao racismo, ao extremismo de direita e ao antissemitismo.
Para o historiador, os "partidos democráticos" cometeram um "erro enorme" ao adotar a retórica da ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD) para falar sobre migração. Ele diz que esse debate acabou "normalizando" narrativas xenófobas.
O estado da Turíngia, onde fica Weimar, é um dos bastiões da AfD. Ali, o partido teve seu melhor desempenho em todo o país, conquistando 38,6% dos votos na eleição geral em fevereiro deste ano – quase o dobro do resultado nacional, de 20,8%. No Parlamento da Turíngia, a AfD também ampliou seu espaço, assumindo 32 dos 88 assentos após as eleições regionais em setembro de 2024. A bancada estadual é liderada por Björn Höcke, político notório por flertar com o extremismo.
"Estamos no olho do furacão", diz Wagner, referindo-se à Turíngia, ao citar a ascensão mundial de movimentos extremistas e autoritários de direita, inclusive na Alemanha. A situação é "extremamente preocupante", frisa. "Por muito tempo, achamos que as pessoas tinham aprendido a lição da época do nazismo." Mas ele diz já não ter mais tanta certeza disso.
Wagner afirma que o nazismo e seus crimes foram "notoriamente minimizados", posições que glorificam o nazismo teriam sido até mesmo defendidas. Ele alerta que é de fundamental importância para as estruturas que sustentam a democracia do país refletir sobre o passado nazista da Alemanha, mas que essa consciência estaria diminuindo.
Os memoriais na colina de Ettersberg que Wagner administra já foram alvos diversas vezes de vandalismo. Em 2024, ele mesmo sofreu ameaças diretas. E hoje, diz o historiador, funcionários do local também temem pela própria segurança de vez em quando. "Não devemos nos deixar intimidar, mas precisamos ser cautelosos", explica.
Em Buchenwald, há um crematório, um campo de cinzas e uma "praça de chamada", espaço onde os prisioneiros tinham que se apresentar todos os dias e todas as noites para contagem. Há também um "bloco das crianças" e o "Instituto de Higiene", onde médicos da SS conduziam experimentos em prisioneiros em cooperação com a indústria farmacêutica e pesquisadores, em busca de vacinas.
O portão de entrada do campo de concentração, que ostenta a frase "Jedem das Seine" (a cada um o que é seu), foi muito retratado na imprensa. O relógio na pequena torre acima dele marca sempre 15h15 – a hora em que o inferno dos prisioneiros acabou.
Hoje, o local onde ficava o campo de concentração tem poucas construções, muita área livre e muitos pedregulhos, faias e carvalhos nos fundos do terreno, e a vista sobre as terras turíngias.
Perguntado sobre qual lugar ali tem um significado especial para ele, Jens-Christian Wagner reflete por um momento antes de citar o "pequeno campo". Ali, em estábulos que formavam um "campo dentro do campo", prisioneiros eram selecionados antes de serem enviados para o trabalho forçado. No início de 1945, doentes foram aglomerados nos barracos e deixados à própria sorte; mais de 6 mil morreram em menos de cem dias.
"A partir de fevereiro de 1945, o local se transformou em um campo de sofrimento e morte para os prisioneiros levados de Auschwitz para Buchenwald", diz Wagner.
O local foi destruído logo depois da libertação do campo de concentração.
Wagner diz que, na época da Alemanha Oriental, o local do "pequeno campo" estava tomado pelo mato e não era muito lembrado. Agora, uma clareira ali exibe as fundações arqueológicas do confinamento. "Continua sendo um lugar de sofrimento e luto."
Mas o que de longe parece um lugar idílico guarda, na verdade, uma história terrível: a do campo de concentração nazista Buchenwald, um dos maiores em solo alemão. Ali, de 1937 a 1945, nazistas prenderam cerca de 280 mil: judeus, dissidentes, comunistas, homossexuais, detentos estrangeiros, "ciganos" (sinti e roma), testemunhas de jeová e líderes religiosos malquistos.
Buchenwald era o próprio inferno – um dos vários infernos da máquina nazista de perseguição e assassinato. Além das instalações em Ettersberg, o complexo incluía mais de 50 pequenos subcampos, a maioria em locais de produção de bens importantes para a guerra.
Em Buchenwald foram mortas até abril de 1945 cerca de 56 mil pessoas, a maioria judeus. A libertação só veio nas semanas finais da Segunda Guerra Mundial, com a aproximação dos primeiros tanques americanos. Ao perceber a movimentação, prisioneiros deflagraram uma rebelião no dia 11 de abril de 1945, evitando a fuga de diversos soldados da SS (Schutzstaffel ou esquadra de proteção), o braço armado do partido nazista
Após o fim da guerra, a Turíngia passou a fazer parte do território alemão sob ocupação soviética. Logo os soviéticos passaram a usar suas instalações para um "campo especial", prendendo ali principalmente líderes locais do partido nazista, policiais ou empresários que mantiveram linhas de produção com trabalho forçado. Até 1950, outras 7 mil pessoas morreram ali.
Passado tanto tempo, restam poucas testemunhas e sobreviventes dos horrores daquele período. Essas lembranças dolorosas têm importância histórica. Para mantê-las vivas, ferramentas digitais são cada vez mais importantes.
"Ainda há 15 sobreviventes, 15 no máximo, que foram convidados", afirma o historiador Jens-Christian Wagner sobre a solenidade que ocorreu no 6 de abril. Ele dirige a fundação que administra os memoriais dos campos de concentração Buchenwald e Mittelbau-Dora.
Wagner lembra a cerimônia de 60 anos, em 2005. Naquela época, cerca de 500 sobreviventes compareceram ao evento. Em 2015, nos 70 anos da libertação de Buchenwald, pouco mais de 80 – a maioria já bem idosa – viajaram até Weimar.
A DW conheceu um deles à época, o ex-piloto da Força Aérea do Canadá, Ed Carter-Edwards, então com 92 anos. O avião dele foi abatido no verão de 1944 próximo a Paris, e ele foi levado para Buchenwald, onde passou três meses e meio. "Eles tratavam as pessoas como animais", disse, citando, aos soluços, os nomes dos amigos que não sobreviveram ao campo de concentração. Carter-Edwards morreu em 2017.
"Todos nós somos responsáveis por lembrar – cada cidadão, cada cidadã", diz Wagner. Trata-se, frisa ele, de marcar posição e de se opor ao racismo, ao extremismo de direita e ao antissemitismo.
Para o historiador, os "partidos democráticos" cometeram um "erro enorme" ao adotar a retórica da ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD) para falar sobre migração. Ele diz que esse debate acabou "normalizando" narrativas xenófobas.
O estado da Turíngia, onde fica Weimar, é um dos bastiões da AfD. Ali, o partido teve seu melhor desempenho em todo o país, conquistando 38,6% dos votos na eleição geral em fevereiro deste ano – quase o dobro do resultado nacional, de 20,8%. No Parlamento da Turíngia, a AfD também ampliou seu espaço, assumindo 32 dos 88 assentos após as eleições regionais em setembro de 2024. A bancada estadual é liderada por Björn Höcke, político notório por flertar com o extremismo.
"Estamos no olho do furacão", diz Wagner, referindo-se à Turíngia, ao citar a ascensão mundial de movimentos extremistas e autoritários de direita, inclusive na Alemanha. A situação é "extremamente preocupante", frisa. "Por muito tempo, achamos que as pessoas tinham aprendido a lição da época do nazismo." Mas ele diz já não ter mais tanta certeza disso.
Wagner afirma que o nazismo e seus crimes foram "notoriamente minimizados", posições que glorificam o nazismo teriam sido até mesmo defendidas. Ele alerta que é de fundamental importância para as estruturas que sustentam a democracia do país refletir sobre o passado nazista da Alemanha, mas que essa consciência estaria diminuindo.
Os memoriais na colina de Ettersberg que Wagner administra já foram alvos diversas vezes de vandalismo. Em 2024, ele mesmo sofreu ameaças diretas. E hoje, diz o historiador, funcionários do local também temem pela própria segurança de vez em quando. "Não devemos nos deixar intimidar, mas precisamos ser cautelosos", explica.
Em Buchenwald, há um crematório, um campo de cinzas e uma "praça de chamada", espaço onde os prisioneiros tinham que se apresentar todos os dias e todas as noites para contagem. Há também um "bloco das crianças" e o "Instituto de Higiene", onde médicos da SS conduziam experimentos em prisioneiros em cooperação com a indústria farmacêutica e pesquisadores, em busca de vacinas.
O portão de entrada do campo de concentração, que ostenta a frase "Jedem das Seine" (a cada um o que é seu), foi muito retratado na imprensa. O relógio na pequena torre acima dele marca sempre 15h15 – a hora em que o inferno dos prisioneiros acabou.
Hoje, o local onde ficava o campo de concentração tem poucas construções, muita área livre e muitos pedregulhos, faias e carvalhos nos fundos do terreno, e a vista sobre as terras turíngias.
Perguntado sobre qual lugar ali tem um significado especial para ele, Jens-Christian Wagner reflete por um momento antes de citar o "pequeno campo". Ali, em estábulos que formavam um "campo dentro do campo", prisioneiros eram selecionados antes de serem enviados para o trabalho forçado. No início de 1945, doentes foram aglomerados nos barracos e deixados à própria sorte; mais de 6 mil morreram em menos de cem dias.
"A partir de fevereiro de 1945, o local se transformou em um campo de sofrimento e morte para os prisioneiros levados de Auschwitz para Buchenwald", diz Wagner.
O local foi destruído logo depois da libertação do campo de concentração.
Wagner diz que, na época da Alemanha Oriental, o local do "pequeno campo" estava tomado pelo mato e não era muito lembrado. Agora, uma clareira ali exibe as fundações arqueológicas do confinamento. "Continua sendo um lugar de sofrimento e luto."
Pesquisa eleitoral extemporânea
https://s2-valor.glbimg.com/riye9IFJQhTrlSKGKRWkbd-kTOo=/1000x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_63b422c2caee4269b8b34177e8876b93/internal_photos/bs/2025/l/S/7pCUJpSRG4oTVZT6eY9A/foto11cul-201-social-d4.jpg
Passado pouco mais de metade do mandato do atual presidente da República, políticos e partidos já se lançaram na disputa por sua sucessão como se a eleição fosse na semana que vem. E como se aqui, costumeiramente, mesmo nos poucos dias anteriores ao de uma eleição, a decisão do eleitor já estivesse tomada.
Todos nós sabemos que um número grande de brasileiros só se preocupa com o ato de votar quase em cima da hora. É inútil e imprudente, portanto, num cenário de incerteza, indecisão e improvisação, considerar entre nós as pesquisas eleitorais fora de época como expressões objetivas e prováveis de quais serão os resultados da votação bem lá adiante.
Essas considerações resultam da observação confirmada de que o bolsonarismo introduziu na cultura política brasileira o uso da incerteza como forma de desordenar a lógica própria do processo político. E desse modo reduzi-lo àquilo que não é: expressão da opinião superficial e manipulável, antipolítica, mais resultado do acaso e do “chute” do que de uma consciência crítica fundamentada e propriamente política.
Essas pesquisas de opinião eleitoral revelam vagas tendências a dois anos do pleito. Tendências de um agora de incertezas, até sobre gente que nem sabe se Bolsonaro vai para as urnas ou se vai para a cadeia, já que é réu em processo no STF que tem como probabilidade a prisão. E mesmo que não seja condenado agora, já está impedido, pela Justiça Eleitoral, de concorrer em 2026.
O caráter manipulativo de uma eventual candidatura de Bolsonaro tem por objetivo, tudo indica, manter-lhe a imagem de que sem ele a eleição não é legítima e de que, como já assinalei em artigo anterior, sua não reeleição em 2022 e a falha do golpe tentado para negar o mandato ao presidente legitimamente eleito significa que a cadeira presidencial está vaga. Ou seja, o golpe continua.
O que mais, afinal de contas, está em jogo na realização e divulgação de pesquisas que, objetivamente, pouco ou nada dizem? Alguém tem interesse em adivinhar quem está sendo cuspido da vaga lista de candidatos e de ex-futuros candidatos. Não são pesquisas para indicar quem poderá ganhar a eleição de 2026, mas a de quem poderá perdê-la. Ou quem são os piores da lista para que os mais piores possam entrar na disputa de modo a parecer melhores do que são.
O que, portanto, nos dizem as pesquisas de opinião eleitoral? E mesmo as pesquisas de boca de urna? Sobretudo, quais Brasis falam através dessas pesquisas na distância que nos separa do dia de votar?
Em primeiro lugar, Brasil ainda é mais um território do que um país, apesar de juridicamente sê-lo. Quem conhece o Brasil sabe que há muitos Brasis disseminados pelo interior do país oficial.
No Rio de Janeiro há vários e diferentes Brasis, tão vários que estão em guerra de morte uns com os outros porque a territorialidade dos poderes, legais e/ou ilegais, é insuficiente para o tipo de mando que entre nós domina.
Aqui, à autoridade e ao poder legítimos, sobrepõe-se o mandonismo dos régulos de província e de município, desprovidos do respaldo da lei e da legalidade.
O bolsonarismo e o pendularismo que nele se expressa deixou o país tão mal que qualquer decorador de uns versículos bíblicos pode alugar uma biboca, que até à véspera fora um botequim, comprar umas cadeiras de plástico, transformar um caixote em púlpito e reabri-la como templo no dia seguinte. Arrecadar o dízimo dos fregueses e empoderar-se como guia político.
Esse sistema transformou um sujeito desses, que só conhece um versículo bíblico - “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32) - em presidente da República. Um que durante os quatro anos do seu mandato praticou cotidianamente a renúncia tácita, tutelou e anulou consciências, negou-lhes a verdade, no lugar ofereceu-lhes a mentira, disseminou a alienação da consciência como negação da libertação prometida. Milhões de cativos ideológicos estão submetidos a um falso profeta e privados de liberdade de consciência política.
Há até mesmo um Brasil que se diz patriota, não fala português nem tem sotaque nheengatu, não conhece o dialeto caipira e sertanejo, não sabe a diferença entre o rio Mississipi e o rio Tietê. E faz de Washington o quartel-general da traição à pátria.
A larga antecipação do embate eleitoral não é eleitoral. Não se está discutindo as alternativas doutrinárias nem quem tem condições de personificá-las num projeto de nação. A polarização está pondo em debate o fechamento das alternativas que legitimem o que deveria ser, propriamente, o debate político, o projeto do primado dos interesses nacionais e democráticos contra o que foi convertido em privatização da pátria.
Passado pouco mais de metade do mandato do atual presidente da República, políticos e partidos já se lançaram na disputa por sua sucessão como se a eleição fosse na semana que vem. E como se aqui, costumeiramente, mesmo nos poucos dias anteriores ao de uma eleição, a decisão do eleitor já estivesse tomada.
Todos nós sabemos que um número grande de brasileiros só se preocupa com o ato de votar quase em cima da hora. É inútil e imprudente, portanto, num cenário de incerteza, indecisão e improvisação, considerar entre nós as pesquisas eleitorais fora de época como expressões objetivas e prováveis de quais serão os resultados da votação bem lá adiante.
Essas considerações resultam da observação confirmada de que o bolsonarismo introduziu na cultura política brasileira o uso da incerteza como forma de desordenar a lógica própria do processo político. E desse modo reduzi-lo àquilo que não é: expressão da opinião superficial e manipulável, antipolítica, mais resultado do acaso e do “chute” do que de uma consciência crítica fundamentada e propriamente política.
Essas pesquisas de opinião eleitoral revelam vagas tendências a dois anos do pleito. Tendências de um agora de incertezas, até sobre gente que nem sabe se Bolsonaro vai para as urnas ou se vai para a cadeia, já que é réu em processo no STF que tem como probabilidade a prisão. E mesmo que não seja condenado agora, já está impedido, pela Justiça Eleitoral, de concorrer em 2026.
O caráter manipulativo de uma eventual candidatura de Bolsonaro tem por objetivo, tudo indica, manter-lhe a imagem de que sem ele a eleição não é legítima e de que, como já assinalei em artigo anterior, sua não reeleição em 2022 e a falha do golpe tentado para negar o mandato ao presidente legitimamente eleito significa que a cadeira presidencial está vaga. Ou seja, o golpe continua.
O que mais, afinal de contas, está em jogo na realização e divulgação de pesquisas que, objetivamente, pouco ou nada dizem? Alguém tem interesse em adivinhar quem está sendo cuspido da vaga lista de candidatos e de ex-futuros candidatos. Não são pesquisas para indicar quem poderá ganhar a eleição de 2026, mas a de quem poderá perdê-la. Ou quem são os piores da lista para que os mais piores possam entrar na disputa de modo a parecer melhores do que são.
O que, portanto, nos dizem as pesquisas de opinião eleitoral? E mesmo as pesquisas de boca de urna? Sobretudo, quais Brasis falam através dessas pesquisas na distância que nos separa do dia de votar?
Em primeiro lugar, Brasil ainda é mais um território do que um país, apesar de juridicamente sê-lo. Quem conhece o Brasil sabe que há muitos Brasis disseminados pelo interior do país oficial.
No Rio de Janeiro há vários e diferentes Brasis, tão vários que estão em guerra de morte uns com os outros porque a territorialidade dos poderes, legais e/ou ilegais, é insuficiente para o tipo de mando que entre nós domina.
Aqui, à autoridade e ao poder legítimos, sobrepõe-se o mandonismo dos régulos de província e de município, desprovidos do respaldo da lei e da legalidade.
O bolsonarismo e o pendularismo que nele se expressa deixou o país tão mal que qualquer decorador de uns versículos bíblicos pode alugar uma biboca, que até à véspera fora um botequim, comprar umas cadeiras de plástico, transformar um caixote em púlpito e reabri-la como templo no dia seguinte. Arrecadar o dízimo dos fregueses e empoderar-se como guia político.
Esse sistema transformou um sujeito desses, que só conhece um versículo bíblico - “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32) - em presidente da República. Um que durante os quatro anos do seu mandato praticou cotidianamente a renúncia tácita, tutelou e anulou consciências, negou-lhes a verdade, no lugar ofereceu-lhes a mentira, disseminou a alienação da consciência como negação da libertação prometida. Milhões de cativos ideológicos estão submetidos a um falso profeta e privados de liberdade de consciência política.
Há até mesmo um Brasil que se diz patriota, não fala português nem tem sotaque nheengatu, não conhece o dialeto caipira e sertanejo, não sabe a diferença entre o rio Mississipi e o rio Tietê. E faz de Washington o quartel-general da traição à pátria.
A larga antecipação do embate eleitoral não é eleitoral. Não se está discutindo as alternativas doutrinárias nem quem tem condições de personificá-las num projeto de nação. A polarização está pondo em debate o fechamento das alternativas que legitimem o que deveria ser, propriamente, o debate político, o projeto do primado dos interesses nacionais e democráticos contra o que foi convertido em privatização da pátria.
A prova do algodão
Segundo a Carta do Direitos Humanos, no seu artigo 12 “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida, na sua família ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação”. E mais: “Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à proteção da lei”. Assim está escrito. O papel exibe, entre outras, a assinatura do representante dos Estados Unidos, a qual assumiria, por via de consequência, o compromisso dos Estados Unidos no que toca ao cumprimento efetivo das disposições contidas na mesma Carta, porém, para vergonha sua e nossa, essas disposições nada valem, sobretudo quando a mesma lei que deveria proteger, não só não o faz, como homologa com a sua autoridade as maiores arbitrariedades, incluindo aquelas que o dito artigo 12 enumera para condenar. Para os Estados Unidos qualquer pessoa, seja emigrante ou simples turista, indiferentemente da sua atividade profissional, é um delinquente potencial que está obrigado, como em Kafka, a provar a sua inocência sem saber de que o acusam. Honra, dignidade, reputação, são palavras hilariantes para os cães cerberos que guardam as entradas do país. Já conhecíamos isto, já o havíamos experimentado em interrogatórios conduzidos intencionalmente de forma humilhante, já tínhamos sido olhados pelo agente de turno como se fôssemos o mais repugnante dos vermes. Enfim, já estávamos habituados a ser maltratados.
Mas agora surge algo novo, uma volta mais ao parafuso opressor. A Casa Branca, onde se hospeda o homem mais poderoso do planeta, como dizem os jornalistas em crise de inspiração, a Casa Branca, insistimos, autorizou os agentes de polícia das fronteiras a analisar e revisar documentos de qualquer cidadão estrangeiro ou norte-americano, ainda que não existam suspeitas de que essa pessoa tenha intenção de participar num atentado. Tais documentos serão conservados “por um razoável espaço de tempo” numa imensa biblioteca onde se guarda todo o tipo de dados pessoais, desde simples agendas de contatos a correios eletrônicos supostamente confidenciais. Ali se irá guardando também uma quantidade incalculável de cópias de discos duros dos nossos computadores de cada vez que nos apresentarmos para entrar nos Estados Unidos por qualquer das suas fronteiras. Com todos os seus conteúdos: trabalhos de investigação científica, tecnológica, criativa, teses acadêmicas, ou um simples poema de amor. “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada”, diz o pobre do artigo 12. E nós dizemos: veja-se o pouco que vale a assinatura de um presidente da maior democracia do mundo.
Aqui está. Praticamos sobre os Estados Unidos a infalível prova do algodão, e eis o que verificamos: não se limitam a estar sujos, estão sujíssimos.
José Saramago, "O caderno"
Mas agora surge algo novo, uma volta mais ao parafuso opressor. A Casa Branca, onde se hospeda o homem mais poderoso do planeta, como dizem os jornalistas em crise de inspiração, a Casa Branca, insistimos, autorizou os agentes de polícia das fronteiras a analisar e revisar documentos de qualquer cidadão estrangeiro ou norte-americano, ainda que não existam suspeitas de que essa pessoa tenha intenção de participar num atentado. Tais documentos serão conservados “por um razoável espaço de tempo” numa imensa biblioteca onde se guarda todo o tipo de dados pessoais, desde simples agendas de contatos a correios eletrônicos supostamente confidenciais. Ali se irá guardando também uma quantidade incalculável de cópias de discos duros dos nossos computadores de cada vez que nos apresentarmos para entrar nos Estados Unidos por qualquer das suas fronteiras. Com todos os seus conteúdos: trabalhos de investigação científica, tecnológica, criativa, teses acadêmicas, ou um simples poema de amor. “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada”, diz o pobre do artigo 12. E nós dizemos: veja-se o pouco que vale a assinatura de um presidente da maior democracia do mundo.
Aqui está. Praticamos sobre os Estados Unidos a infalível prova do algodão, e eis o que verificamos: não se limitam a estar sujos, estão sujíssimos.
José Saramago, "O caderno"
Extrema direita leva o mundo ao abismo
Os piores pesadelos estão se realizando neste início do governo Trump. Antes de sua posse, boa parcela do mercado financeiro, empresários de toda parte e políticos brasileiros que se dizem moderados sem conseguirem ter autonomia em relação a Bolsonaro acreditaram que o pragmatismo venceria. Naturalizaram o extremismo, e o mundo vai passar pela tempestade política mais terrível desde o nazismo. Para sairmos dessa desgraça, é preciso entender a perversidade e o desastre contidos no modelo político e de políticas públicas da extrema direita.
A extrema direita hoje abarca grupos de várias partes do mundo, crescendo na Europa, mas não tendo ainda vencido as eleições por lá, e está no poder na Hungria, na Argentina e nos EUA, como já esteve no Brasil. Há diferenças entre partidos e lideranças extremistas por conta de características locais - os imigrantes não são um tema no caso brasileiro, por exemplo. De todo modo, em todas essas experiências há uma característica central: uma liderança populista, carismática, iliberal e com um projeto autocrático. Seus seguidores e asseclas obedecem caninamente ao chefe.
A primeira característica do modo de fazer política da extrema direita é uma liderança inconteste com seguidores completamente fiéis e praticamente sem individualidade. Cabe ressaltar: são milhares de apoiadores de primeira linha e milhões de votantes que seguem esse rumo. Como angariam tamanho apoio? A explicação está na criação de inimigos internos e externos que assustem o “homem comum”, alimentando ressentimentos e ódios numa parcela grande da população que se vê derrotada frente à modernização econômica e de costumes.
A criação desses “monstros” internos e externos tem sido um dos grandes instrumentos da ascensão da extrema direita. Imigrantes, China, diversidade, comunistas, intelectuais, feministas, conhecimento científico e globalização são, para citar um conjunto relevante de fantasmas, colocados no altar daquilo que deve ser cotidianamente combatido. Cria-se um sentimento de luta diária e ininterrupta, um modelo bélico de se fazer política, fortemente impulsionado por uma linguagem polarizadora nas redes sociais. A cada dia, Trump ou Bolsonaro precisam derrotar e exterminar um desses inimigos, usando algum tipo de “motosserra” contra eles.
O modelo beligerante está no coração de cada um dos seguidores e é utilizado pela liderança extremista para enfraquecer a democracia e criar uma “geopolítica dos escolhidos” - um novo “eixo do bem” entre as nações. É exatamente isso que Trump está fazendo: enfraquecendo as instituições e a sociedade civil americanas e só aceitando como parceiros na ordem internacional os países que disserem amém às suas propostas.
É interessante notar como a extrema direita funciona ao estilo de uma máfia, com um poderoso chefão, auxiliares que fazem o trabalho sujo (um Musk ou um Pazuello) e utilizando a ameaça constante como método de se fazer política. De forma milimétrica o cientista político Cláudio Couto chamou esse modelo chantagista e mafioso de “extorsocracia”, a política como extorsão dos outros, geralmente dos inimigos ou grupos que se quer subjugar, mas por vezes também dos aliados, como Bolsonaro tem feito com os governadores de direita que querem o seu apoio para uma futura disputa presidencial - ou apoiam a anistia do chefe ou serão massacrados pelos bolsonaristas.
O resultado desse modo de se fazer política da extrema direita é, na melhor das hipóteses, o enfraquecimento da democracia, ou, na pior das possibilidades, a construção de uma autocracia iliberal. Esse é o sonho de todo líder extremista contemporâneo, e talvez por isso todos eles venerem o governante húngaro, Viktor Orbán, que chegou ao nirvana que almejam. No íntimo, num raciocínio impensável para quem viu o Muro de Berlim cair, essas lideranças ocidentais extremistas gostariam mesmo de ser Vladimir Putin, este sim um chefe sem freios e poderoso.
O que deve ser dito em alto e bom som é que a naturalização da extrema direita gera líderes autoritários e narcisistas, que comandam uma parcela grande da população que os obedece caninamente, por meio de um modelo bélico e mafioso (a “extorsocracia”) de governar países e destruir os laços de confiança da ordem internacional, e cujo objetivo final é acabar com a democracia liberal, numa espécie de revolução profunda e distópica contra a ordem internacional criada pelo mundo ocidental no pós-guerra.
Passar o pano para tais lideranças e ideias extremistas é uma forma de suicídio coletivo que parcela importante de empresários, de gente do mercado financeiro, da mídia e até intelectuais têm cometido nos últimos anos. Sempre lembro que é preferível ser Churchill, que enfrentou com “sangue, suor e lágrimas” o nazismo, a Chamberlain, o primeiro-ministro britânico que evitou o confronto com Hitler porque o mundo se consertaria sozinho. Transportando esse raciocínio para o Brasil, ninguém sai incólume do apoio ao ideário iliberal e autoritário de Bolsonaro, com sua anistia que pretende apagar a tentativa de golpe de Estado. Como estão faltando Churchills na política brasileira!
Se o modo de fazer política da extrema direita é uma perversidade contra a democracia e o modelo ocidental do pós-guerra, seu desastre deriva da forma como lida com as políticas públicas. É preciso ressaltar que os extremistas atuais não são apenas autoritários, como também são fortemente incompetentes, como estamos vendo na absurda guerra das tarifas proposta por Trump, que vai desorganizar a ordem econômica internacional e a própria economia americana.
A incompetência nas políticas públicas dos extremistas inicia-se por sua visão negativa da ciência e dos especialistas. Nos últimos anos e cotidianamente, os missionários da extrema direita espalham fake news e ideias absurdas sobre o funcionamento do mundo e de suas principais instituições. Quando chegam ao governo, precisam reproduzir esse modo de pensar para manter a legitimidade de sua visão de mundo. O problema é que o negacionismo em políticas públicas cobra um preço muito alto em termos de desempenho governamental. Foi assim na pandemia de covid-19, tem sido do mesmo modo na forma como Trump fracassa na economia. Isso para não falar do legado trágico que vão deixar ao meio ambiente, com consequências futuras terríveis.
A extrema direita não só ignora a ciência como ataca suas bases, especialmente a universidade e a burocracia formada por especialistas. O ataque trumpista às principais instituições universitárias americanas pode causar uma fuga de cérebros e a perda da principal vantagem dos Estados Unidos no pós-guerra: sua superioridade no conhecimento científico e tecnológico. Na mesma toada, a quase extinção do Departamento de Educação revela um país que não conseguirá ter um projeto alvissareiro de futuro para seus filhos e netos. Criar uma área para pretensamente melhorar a eficiência governamental foi a maneira pela qual o trumpismo pretendeu evitar que a técnica fosse uma barreira ao seu projeto megalomaníaco e autocrático.
Políticas públicas bem-sucedidas baseiam-se em evidências, em gestão bem-organizada e em mecanismos de governança colaborativa, a partir da qual o governo articula os diversos atores que participam das questões coletivas. Tudo isso é o oposto do que o trumpismo e o bolsonarismo seguem, o que leva seus governos a estratégias estéreis de confronto político-social e à negação da ciência, redundando em desastres governamentais. Os americanos terão mais inflação e/ou recessão, do mesmo modo que as políticas bolsonaristas aumentaram a pobreza, pioraram a educação e destruíram a máquina pública e o meio ambiente.
O padrão de política e políticas públicas da extrema direita pode levar o mundo para o abismo, especialmente quando adotado pela maior potência do mundo, com efeitos incalculáveis para cada parte do planeta Terra. Trump é a combinação de autoritarismo com incompetência, e o bolsonarismo é a reprodução disso na escala brasileira. Tentar retornar à trilha bolsonarista ou apoiar-se nela para se chegar ao poder é colocar o Brasil à beira do precipício. Se muitos estão cegos para os impactos do extremismo, os dois últimos meses da loucura americana mostraram como é perigoso ignorar seu real significado. Espero que nos lembremos disso nas eleições de 2026.
A extrema direita hoje abarca grupos de várias partes do mundo, crescendo na Europa, mas não tendo ainda vencido as eleições por lá, e está no poder na Hungria, na Argentina e nos EUA, como já esteve no Brasil. Há diferenças entre partidos e lideranças extremistas por conta de características locais - os imigrantes não são um tema no caso brasileiro, por exemplo. De todo modo, em todas essas experiências há uma característica central: uma liderança populista, carismática, iliberal e com um projeto autocrático. Seus seguidores e asseclas obedecem caninamente ao chefe.
Não há espaço para dissenso entre os extremistas e os que têm a petulância de expressar uma pequena discordância são tratados como inimigos e abandonados pelo chefe maior. Movimentos políticos que não aceitam qualquer divergência são, por natureza, antidemocráticos, sejam de direita ou de esquerda. Pior do que isso: se um grupo dominado por uma liderança inconteste elimina o debate e a diferença entre seus membros, é bem provável que cometa muitos erros e nunca aprenda com eles, aceitando como autômatos todas as decisões e falas do líder extremista. Foi assim com Bolsonaro no Brasil, e esse comportamento tem se repetido com Trump, pois os republicanos e assessores presidenciais foram transformados em sujeitos sem voz ou capacidade de reação.
A primeira característica do modo de fazer política da extrema direita é uma liderança inconteste com seguidores completamente fiéis e praticamente sem individualidade. Cabe ressaltar: são milhares de apoiadores de primeira linha e milhões de votantes que seguem esse rumo. Como angariam tamanho apoio? A explicação está na criação de inimigos internos e externos que assustem o “homem comum”, alimentando ressentimentos e ódios numa parcela grande da população que se vê derrotada frente à modernização econômica e de costumes.
A criação desses “monstros” internos e externos tem sido um dos grandes instrumentos da ascensão da extrema direita. Imigrantes, China, diversidade, comunistas, intelectuais, feministas, conhecimento científico e globalização são, para citar um conjunto relevante de fantasmas, colocados no altar daquilo que deve ser cotidianamente combatido. Cria-se um sentimento de luta diária e ininterrupta, um modelo bélico de se fazer política, fortemente impulsionado por uma linguagem polarizadora nas redes sociais. A cada dia, Trump ou Bolsonaro precisam derrotar e exterminar um desses inimigos, usando algum tipo de “motosserra” contra eles.
O modelo beligerante está no coração de cada um dos seguidores e é utilizado pela liderança extremista para enfraquecer a democracia e criar uma “geopolítica dos escolhidos” - um novo “eixo do bem” entre as nações. É exatamente isso que Trump está fazendo: enfraquecendo as instituições e a sociedade civil americanas e só aceitando como parceiros na ordem internacional os países que disserem amém às suas propostas.
É interessante notar como a extrema direita funciona ao estilo de uma máfia, com um poderoso chefão, auxiliares que fazem o trabalho sujo (um Musk ou um Pazuello) e utilizando a ameaça constante como método de se fazer política. De forma milimétrica o cientista político Cláudio Couto chamou esse modelo chantagista e mafioso de “extorsocracia”, a política como extorsão dos outros, geralmente dos inimigos ou grupos que se quer subjugar, mas por vezes também dos aliados, como Bolsonaro tem feito com os governadores de direita que querem o seu apoio para uma futura disputa presidencial - ou apoiam a anistia do chefe ou serão massacrados pelos bolsonaristas.
O resultado desse modo de se fazer política da extrema direita é, na melhor das hipóteses, o enfraquecimento da democracia, ou, na pior das possibilidades, a construção de uma autocracia iliberal. Esse é o sonho de todo líder extremista contemporâneo, e talvez por isso todos eles venerem o governante húngaro, Viktor Orbán, que chegou ao nirvana que almejam. No íntimo, num raciocínio impensável para quem viu o Muro de Berlim cair, essas lideranças ocidentais extremistas gostariam mesmo de ser Vladimir Putin, este sim um chefe sem freios e poderoso.
O que deve ser dito em alto e bom som é que a naturalização da extrema direita gera líderes autoritários e narcisistas, que comandam uma parcela grande da população que os obedece caninamente, por meio de um modelo bélico e mafioso (a “extorsocracia”) de governar países e destruir os laços de confiança da ordem internacional, e cujo objetivo final é acabar com a democracia liberal, numa espécie de revolução profunda e distópica contra a ordem internacional criada pelo mundo ocidental no pós-guerra.
Passar o pano para tais lideranças e ideias extremistas é uma forma de suicídio coletivo que parcela importante de empresários, de gente do mercado financeiro, da mídia e até intelectuais têm cometido nos últimos anos. Sempre lembro que é preferível ser Churchill, que enfrentou com “sangue, suor e lágrimas” o nazismo, a Chamberlain, o primeiro-ministro britânico que evitou o confronto com Hitler porque o mundo se consertaria sozinho. Transportando esse raciocínio para o Brasil, ninguém sai incólume do apoio ao ideário iliberal e autoritário de Bolsonaro, com sua anistia que pretende apagar a tentativa de golpe de Estado. Como estão faltando Churchills na política brasileira!
Se o modo de fazer política da extrema direita é uma perversidade contra a democracia e o modelo ocidental do pós-guerra, seu desastre deriva da forma como lida com as políticas públicas. É preciso ressaltar que os extremistas atuais não são apenas autoritários, como também são fortemente incompetentes, como estamos vendo na absurda guerra das tarifas proposta por Trump, que vai desorganizar a ordem econômica internacional e a própria economia americana.
A incompetência nas políticas públicas dos extremistas inicia-se por sua visão negativa da ciência e dos especialistas. Nos últimos anos e cotidianamente, os missionários da extrema direita espalham fake news e ideias absurdas sobre o funcionamento do mundo e de suas principais instituições. Quando chegam ao governo, precisam reproduzir esse modo de pensar para manter a legitimidade de sua visão de mundo. O problema é que o negacionismo em políticas públicas cobra um preço muito alto em termos de desempenho governamental. Foi assim na pandemia de covid-19, tem sido do mesmo modo na forma como Trump fracassa na economia. Isso para não falar do legado trágico que vão deixar ao meio ambiente, com consequências futuras terríveis.
A extrema direita não só ignora a ciência como ataca suas bases, especialmente a universidade e a burocracia formada por especialistas. O ataque trumpista às principais instituições universitárias americanas pode causar uma fuga de cérebros e a perda da principal vantagem dos Estados Unidos no pós-guerra: sua superioridade no conhecimento científico e tecnológico. Na mesma toada, a quase extinção do Departamento de Educação revela um país que não conseguirá ter um projeto alvissareiro de futuro para seus filhos e netos. Criar uma área para pretensamente melhorar a eficiência governamental foi a maneira pela qual o trumpismo pretendeu evitar que a técnica fosse uma barreira ao seu projeto megalomaníaco e autocrático.
Políticas públicas bem-sucedidas baseiam-se em evidências, em gestão bem-organizada e em mecanismos de governança colaborativa, a partir da qual o governo articula os diversos atores que participam das questões coletivas. Tudo isso é o oposto do que o trumpismo e o bolsonarismo seguem, o que leva seus governos a estratégias estéreis de confronto político-social e à negação da ciência, redundando em desastres governamentais. Os americanos terão mais inflação e/ou recessão, do mesmo modo que as políticas bolsonaristas aumentaram a pobreza, pioraram a educação e destruíram a máquina pública e o meio ambiente.
O padrão de política e políticas públicas da extrema direita pode levar o mundo para o abismo, especialmente quando adotado pela maior potência do mundo, com efeitos incalculáveis para cada parte do planeta Terra. Trump é a combinação de autoritarismo com incompetência, e o bolsonarismo é a reprodução disso na escala brasileira. Tentar retornar à trilha bolsonarista ou apoiar-se nela para se chegar ao poder é colocar o Brasil à beira do precipício. Se muitos estão cegos para os impactos do extremismo, os dois últimos meses da loucura americana mostraram como é perigoso ignorar seu real significado. Espero que nos lembremos disso nas eleições de 2026.
Assinar:
Postagens (Atom)