sábado, 12 de abril de 2025

Balas de Prata

Anda tudo doido com a série. Dizem que é boa. Que é a chave de todos os mistérios e angústias da juventude contemporânea. A razão que explica o inexplicável. A bala de prata.

Eu não vi “Adolescência”. Não verei. Tenho horror a unanimidades. E, reparem: é preciso uma série de televisão para diagnosticar o óbvio? O problema não é subtil, esfíngico. Está à nossa frente, a berrar como um palhaço embriagado num coreto. Está nas mãos, nos bolsos, nos nossos olhos mortos: o telemóvel, esse milagre estúpido que há-de dar cabo de nós.

Outro dia, o João Miguel Tavares — homem inteligente — apresentou uma tese elegante no Público — mas errada. Segundo ele, depois da BD nos anos 50, da televisão nos anos 60, dos jogos de vídeo nos anos 80, os telemóveis são apenas o novo capítulo de um velho pânico. Mudam-se os tempos, mudam-se os brinquedos. A histeria é sempre a mesma. Talvez. Talvez à superfície.


Mas o próprio João Miguel, que desconfia de balas de prata, acaba por disparar a sua. Em cheio na testa. A tese de que tudo se repete é uma dessas soluções milagrosas que ele próprio condena. Mas não é assim. Há uma diferença gritante e melancólica: o telemóvel não é um brinquedo. É arma. É um amplificador de misérias. Especializámo-nos em descobrir o pior uso possível para seja o que for — e praticá-lo com esmero. Há paralelos? Há. Mas sempre piores. Neste caso, o telemóvel é uma nova categoria de alienação.

Somos todos crianças com um telefone na mão. É um mal muito democrático. Passamos uma hora a olhar para o vazio e juramos que é importante. Falar disto como se fosse problema exclusivo dos mais novos é um erro. Não é. Se um pai está a olhar para o telefone em vez de estar a fazer um desenho, o filho não vai querer desenhar.

O telemóvel esburaca-nos a existência. E por esses orifícios entram demónios que nem o mais degenerado de 1950 imaginaria. E nós, com um sorriso aparvalhado, partilhamos essa janela com os filhos. Como quem dá bagaço a um recém-nascido. Para depois escrevermos textos resignados, suspirando que é a vida, mais do mesmo, etc.

“Têm de aprender”, dizem. “O mundo é feito de computadores”, insistem. Mas basta um dedo gorduroso para deslizar pela infâmia rectangular. Qualquer avozinho semeia milho no Facebook. Qualquer analfabeto tem a perícia de uma lagartixa iluminada. Não é preciso licenciatura para isto. Há um abismo entre ciência computacional e ser capaz de mexer nas tábuas brilhantes que veneramos como sacrários.

Perdeu-se o instinto de defesa; perdeu-se a vergonha. O mal espalha-se e tratamo-lo com regulamentos de piscina municipal. Quantas escolas proibiram verdadeiramente o telemóvel? Uma? Duas? “Não se usa o telemóvel durante as aulas”, dizem — como se fosse aceitável trazer veneno no bolso, desde que não se beba à frente do professor.

Sei de colégios onde, durante o recreio, os campos estão sem ninguém. As árvores não têm crianças. As calças não se esfolam. Tempo bizarro: miúdos a rebentar foguetes ou a pôr sapos a fumar cigarros parecem agora uma esperança.

O buraco, o verdadeiro, é o vazio. O homem precisa de enchê-lo e tem horror ao silêncio, à vida sem estímulo. E o telemóvel é a máquina portátil de fabricar distracções — infinita, irrelevante, irredimível.

O velho Godard dizia que no cinema elevava-se a cabeça e com a televisão passámos a baixá-la. Pois agora só vemos a barriga. A queda não é figurada. A queda é física, mesmo.

O mais simples é dizer que os tempos agora são outros, que tem de ser e pronto. Mas cada acto de resignação é um acto colaborativo. Com um disparo. De uma bala de prata. Contra nós.

Explicar por que razão o telemóvel é mau não resolve nada. É como explicar porque é que a fome dói: quem tem fome já sabe.

Mas nem sempre sabe isto: ao contrário do que achamos, não escolhemos. Perante vinte impulsos, achamos que decidimos, — mas é o impulso que nos decide a nós. É o par de sapatos da montra que nos compra. A imagem que nos empurra. A pornografia que nos devora.

A única saída — e nisto a bala de prata do João Miguel aponta na direcção certa — é a de sempre.

O verdadeiro caminho da liberdade é desconfiar de si mesmo. Conter-se. Fechar os olhos.

Fechar os olhos. Só isso.

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