terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Pensamento do Dia

 


Excesso de autoestima é a nova pandemia. Tem gente demais se achando

Se você for na livraria da esquina, vai encontrar um zilhão de livros sobre o tema. Se procurar no Google, vão faltar terabytes para os resultados. Sobram terapeutas e coaches especializados, não faltam palpites de amigos e colegas. Todos sobre o mesmo assunto: levantar a autoestima. Hoje em dia é de bom-tom se presumir o máximo, o Poderosão das Galáxias, o Ferrabrás do Bairro Peixoto. Se você não se acha, tem algo errado. A baixa autoestima é considerada um problema grave, muito grave.

Pois eu acho, leitor, que o problema é exatamente o contrário: é o excesso de autoestima está acabando com o mundo.

Tem gente demais se achando.

Vou dar um exemplo: o leitor deve lembrar que na sua turma de colégio ou de faculdade sempre tinha um esquisitão. Aquele cara meio estranho, meio nerd, com uma higiene pessoal duvidosa e um papo meio sem noção. Sua grande dificuldade era o relacionamento com o sexo oposto, o que deixava sua autoestima à deriva. Só o tempo curava o esquisitão. Ele se cansava da solteirice compulsória, ouvia os amigos, fazia uma autocrítica e descobria que o problema era ele mesmo. Bingo! Fazias as pazes com o banho, deixava de brigar com o desodorante e mudava a conversa estranha. O resultado: finalmente achava um par e deixava o celibato para trás.

Acontece que os esquisitões do mundo todo se conectaram, fundaram comunidades, trocaram ressentimentos e, claro, inventaram culpados pela própria seca. O que era problema deles passou a ser dos outros, ou melhor, das outras. A culpa é das mulheres, concluíram em uníssono, com a autoestima — e a misoginia — lá em cima.

A praga da autoestima blindada, do “a culpa é do outro”, se espalhou para todos os lados: a colega do trabalho, por exemplo, reclama que está sempre sozinha. O problema é que sou muito bem-sucedida e independente, afirma. Os homens têm medo de mim, conclui, interpretando de maneira particular os novos tempos. Mais uma proeza do excesso de autoestima. Bastava um pouco de autocrítica para descobrir que é apenas uma mala arrogante e autocentrada. Agora, pelo visto, é tarde. 

Veja, leitor, a quantidade de convencidos, prepotentes e esnobes que andam soltos por aí. É uma nova pandemia. Mesmo as pessoas normais estão ficando alteradas. Naquele documentário sobre o picareta do Tinder a gente fica se perguntando como as vítimas não perceberam que se tratava de um embusteiro. Culpa do excesso de autoestima, é claro. Uma pessoa mais pé no chão ia logo desconfiar: príncipe encantado de bobeira? Jatinho na porta de graça? Homem perfeito disponível? Tá bom... conta outra. Aliás, homem com autoestima alta é ainda pior, uma verdadeira catástrofe, igual ao Godzilla andando pelas ruas de Tóquio: quer passar por cima de todos. Melhor sair correndo.

O problema é que hoje em dia tem sempre um positivo tóxico elogiando nas redes, um otimista nocivo incentivando no YouTube, um empolgado peçonhento dando uma força no Zap. Todos mancomunados para enganar os incautos, dizendo que são o máximo, perfeitos, que os outros é que são invejosos. Tá dando ruim.

Não quero tirar o ganha-pão de quem está vendendo pedestal para marrento e batendo palmas pra arrogante dançar. Sei que não tá fácil pra ninguém, mas que “Autocrítica e modéstia” devia virar matéria na escola, isso devia.

Olhe em volta, leitor, e me diga se estou errado.

Jabor, o mentiroso Salles e o longo passado pela frente

Arnaldo Jabor morreu, aos 81 anos, depois de passar a vida querendo assistir ao nascimento de um novo Brasil. Infelizmente, é como morreremos todos nós que passamos a maior parte do tempo denunciando, esbravejando, analisando, escrevendo e falando sobre este triste país, de uma perspectiva que não compactua com a burrice, a ignorância, a desonestidade, inclusive intelectual, o patrimonialismo, a vulgaridade e a caipirice. Num dos seus comentários no Jornal da Globo, em outubro do ano passado, ao comentar sobre a CPI da Covid, Arnaldo Jabor (foto) afirmou que, depois de tudo o que foi revelado, “se a velha política prevalecer, podemos sair da barbárie para a decadência, sem conhecer a civilização. Pois como sentenciou Millôr Fernandes uma vez: o Brasil tem um longo passado pela frente“. Pois é, a velha política prevaleceu e continuará prevalecendo.

O longo passado pela frente se desenrola todos os dias a trabalhadores e pequenos e médios empresários da área produtiva, às voltas com cidades precárias e serviços essenciais abaixo da crítica, falta de oportunidades, impostos altos, criminalidade, corrupção e ganhos obscenos de um mercado financeiro que só suga as energias de um país exangue, mas acha que está fazendo um bem danado à nação. Desenrola-se, e enrola, também por meio da hipocrisia, da demagogia e das mentiras deslavadas ditas nas diferentes esferas do poder ou nas suas proximidades.


E é assim que, no dia em que morreu Arnaldo Jabor, o idiota aqui, o palhaço aqui, vê-se obrigado a falar de Ricardo Salles, o ex-ministro da Destruição do Meio Ambiente. Esse senhor foi ao Twitter dizer que foi Jair Bolsonaro quem convenceu Vladimir Putin a desistir da invasão da Ucrânia. Como se não bastasse, Ricardo Salles ainda publicou uma montagem de uma capa da revista Time, com a foto do presidente brasileiro e os seguintes dizeres: “Prêmio Nobel da Paz 2022. Bolsonaro, o homem que poderá definir o futuro do planeta. Com viagem à Rússia agendada, o Brasil tem papel fundamental na crise entre Rússia e Ucrânia”. Além de publicar a montagem, o ex-ministro da Destruição do Meio Ambiente comentou “Parabéns, presidente!”. Mais: Ricardo Salles publicou uma montagem com o logo da CNN, para dizer que Jair Bolsonaro evitou “a Terceira Guerra Mundial” — e a emissora viu-se obrigada a desmentir o absurdo evidente. Meme, uma ova. Tudo foi feito para que a safadeza fosse replicada pelo gado e lograsse os desavisados, que não são poucos.

A enormidade está muito além da “pós-verdade” ou qualquer outro eufemismo que se possa usar em relação ao que não passa de mentira, enganação, conto do vigário, embuste, gazopa, trapaça. É pura cara de pau. Jair Bolsonaro foi à Rússia porque está isolado no cenário internacional e, por isso, prestou-se a fazer jogo de Vladimir Putin, sem medir as consequências do seu ato e muito menos demonstrar qualquer solidariedade real em relação à Ucrânia, como escrevi ontem. Se Vladimir Putin desistiu mesmo de cometer a agressão ao país vizinho, e não é que o seu recuo esteja garantido, isso se deve à atuação intensa da diplomacia americana e europeia, do receio das consequências para a economia do país e da falta de apoio da população russa, que não foi suficientemente enganada pela historieta de que é a Ucrânia que representa uma ameaça.

Como é que pode um ex-ministro ser tão mentiroso, tão irresponsável, e espalhar fake news desse jeito? E não me venham dizer que essa patranha é liberdade de expressão. Porcaria nenhuma. Respeitem os meus 60 anos, por favor, a maior parte deles desperdiçados defendendo a liberdade de expressão e tomando pancada no lombo por causa dessa escolha pessoal, e pancada de verdade, não cancelamento em Twitter. Ricardo Salles não difere dos demais próceres bolsonaristas — os filhos do presidente, principalmente–, que espalham mentiras cabeludas o tempo inteiro. Mas o idiota aqui, o palhaço aqui, ainda se espanta quando se depara com uma barbaridade dessas, vinda de quem foi autoridade até ontem, e autoridade com interlocução internacional.

Não há conexão entre o bolsonarismo e a realidade, entre o bolsonarismo e a honestidade, o que não é particularidade, infelizmente, mas outro sintoma de que não há vasos comunicantes entre o Brasil e a civilização. Passaremos da barbárie para a decadência, tendo um logo passado pela frente. Descanse em paz, Jabor. Um dia a gente também chega lá.

Intolerância é crime

Não devemos aceitar sem qualificação o princípio de tolerar os intolerantes, caso contrário, corremos o risco de destruição de nós próprios e da própria tolerância
Karl Popper

O agro e a agenda da morte

Li uma vez, duas, três, até me convencer que era real o que estava escrito: Jonatas, de nove anos, filho de um líder de trabalhadores rurais, foi assassinado a tiros, em Barreiros, Pernambuco, por pistoleiros que invadiram a casa da família. Aterrorizado, o menino estava escondido embaixo da cama, de onde foi arrancado para ser executado na frente dos pais.

Até o momento em que escrevo, não vi nenhuma manifestação de indignação por parte do governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB). Oferta de proteção à família do pai da criança, Geovane da Silva Santos? Nada. O crime aconteceu há quatro dias.


Jonatas é mais uma vítima imolada na disputa pela terra, cerne da injustiça e da desigualdade que anos de avanços sociais não conseguiram equacionar no Brasil. A síntese poética de João Cabral de Melo Neto, em "Morte e Vida Severina", permanece dolorosamente atual, quase 70 anos depois: a cova com "palmos medida (…) é a parte que te cabe deste latifúndio".

A lista de mártires pós-redemocratização é extensa: Padre Josimo Tavares, Paulo Fonteles, João Carlos Batista, Chico Mendes, Dorothy Stang, José Cláudio e Maria do Espírito Santo, a família de Zé do Lago (chacinada um mês atrás) são alguns deles. Corumbiara, Eldorado do Carajás, Fazenda Primavera, Taquaruçu do Norte, Pau d’Arco? São chacinas de trabalhadores rurais, a maioria ainda impune.

Assassinatos, grilagem, trabalho escravo, desmatamento, uso indiscriminado de agrotóxicos são armas de destruição em massa de qualquer resquício civilizatório. Tem quem separe o agronegócio do "ogronegócio", como se existisse uma distinção entre civilização e barbárie nesta atividade. Existe?

Então, quem está do lado civilizado que venha a público condenar a matança desenfreada de brasileiros no campo e a agenda do lucro e da morte. É preciso bem mais do que campanha publicitária no horário nobre. O peso do setor no PIB não pode ser uma licença para matar.

Prioridades de Bolsonaro

Na semana passada, o governo Bolsonaro enviou sua lista de projetos prioritários para votações no Legislativo neste ano. Além do homeschooling, que já aparecera em 2021, foi incluído na educação um projeto da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) que estabelece o fim do sistema de ciclos, popularizado por seus críticos como “aprovação automática”. A justificativa que consta do projeto é uma peça exemplar do bolsonarismo raiz: um conjunto de achismos sem base em qualquer evidência científica.

A repetência é dos poucos temas na literatura acadêmica em que a conclusão é inequívoca: trata-se de péssima estratégia, pois o principal efeito é aumentar a probabilidade de evasão sem elevar a aprendizagem, como mostra a revisão de meta-análises (estudos mais robustos por agregar o resultado de um conjunto de pesquisas) feita por John Hattie no livro “Visible Learning”.


No início da década de 2000, políticos de várias matizes elegeram a “aprovação automática” como vilã. O sistema, porém, nunca foi majoritário. Em 2002, apenas 11% das escolas o utilizavam. Em 2007, estudo de Ocimar Alavarse mostrou que o desempenho de alunos na Prova Brasil (exame oficial do MEC) nas redes que adotavam ciclos não era diferente das demais. Em 2014, pesquisa de Reynaldo Fernandes, Luiz Scorzafave, Maria Isabel Theodoro e Amaury Gremaud sobre o que aconteceu em sistemas que adoram ciclos indicou que “o fluxo educacional melhorou no ensino fundamental sem que se verificasse uma queda no desempenho dos estudantes pertencentes às gerações beneficiadas por essas políticas”.

Constatar que os ciclos não prejudicaram a aprendizagem não significa que tenham contribuído para alguma melhoria da qualidade. O problema é muito mais complexo do que a simples adoção de um ou outro sistema.

Essa forma de organização reapareceu na legislação nacional em 1996, como opcional. Entre 1995 e 2019, a proporção de crianças do 5º ano do fundamental com aprendizado adequado em matemática aumentou de 19% para 52% nas avaliações oficiais do MEC. Nada indica que isso esteja relacionado aos ciclos, até porque, como dito, eles nunca foram majoritários. (Aliás, para quem acha que se trata de uma invenção da esquerda, vale lembrar que a Lei 5.692/1971 - no artigo 14, parágrafo 4º -, do auge da Ditadura Militar tão glorificada pelos bolsonaristas, já dava brechas a outros critérios de progressão não-seriada).

O ponto mais absurdo das justificativas apresentadas no projeto é que “evitar a reprovação em si faz com que as crianças inconscientemente sejam ensinadas a não lidar com as frustrações naturais da vida, que não são uma vergonha, mas sim apenas um processo natural pelo qual a criança pode passar para se tornar um adulto mais forte e preparado para a realidade do mercado de trabalho, que é muito mais dura que a escola, uma vez que envolve também as relações humanas e de poder.”

Se tamanho disparate fizesse algum sentido, seríamos então um dos países com mais “adultos fortes e preparados para o mercado de trabalho” do planeta, já que as taxas de repetência no Brasil sempre foram altíssimas em todo o século XX. Mesmo no início do século XXI, um relatório de acompanhamento de metas da Unesco trouxe em 2008 dados de 150 países. O Brasil, com um percentual de 21% de repetentes, ficava atrás apenas de 10 nações: Togo (23%), Chade (23%), Congo (24%), São Tomé e Príncipe (24%), Camarões (26%), Guiné Equatorial (26%), Comores (27%), Burundi (30%), República Centro- Africana (31%) e Gabão (34%).