segunda-feira, 9 de junho de 2025

Pensamento do Dia

 


Vivemos crise da verdade e crise do clima

Na semana passada aconteceu algo estranho. Fui ao Rio Grande do Sul participar do programa Fronteiras do Pensamento e fiquei pouco mais de 40 horas desligado dos jornais. Quando voltei, levei um choque. Tudo me pareceu caótico e inquietante. Os voos que servem aos Correios tinham sido suspensos, Trump cortara o visto de estudantes estrangeiros, senadores e deputados estão envolvidos no escândalo do INSS, o governo gastara milhões em passagens num tempo de fáceis comunicações eletrônicas. Cheguei a dizer:

— Onde é que vamos parar?

Mas, imediatamente, lembrei que, noutras épocas, ironizava os velhos que reclamavam de um curso do mundo que já não podiam compreender. Será que agora é a minha vez de fazer esse papel? O único detalhe a meu favor é que, hoje mais que nunca, os contornos entre realidade e fantasia se dissolvem.


Não se trata apenas da discussão sobre bebês reborn com projetos na Câmara e longos comentários na televisão. Recebi no celular uma entrevista produzida por inteligência artificial em que entrevistados e entrevistador eram falsos. A especialista que analisava o vídeo registrou apenas alguns movimentos suspeitos na mão de uma entrevistada. Nenhum de nós percebeu, e é um tipo de problema que resolverão logo. O título do vídeo era “Acabou para nós”, pois ele foi analisado da perspectiva de editores, que se tornaram supérfluos com a IA.

Num mundo em que a quase totalidade das profissões pode desaparecer, é natural a inquietação. Assim como sermos dependentes das máquinas para um exame médico, uma operação, um trabalho intelectual e, o que já se mostrou espantoso, o protagonismo nas guerras. A Ucrânia ataca a Rússia com drones, Israel usou IA para definir alvos de bombardeio.

Vi um filme chamado “Mountainhead” na TV. Conta a história de um encontro de quatro bilionários da internet. Têm plataformas, produzem aplicativos e olham o mundo do alto de sua fortuna e poder. Trata-se de um filme apenas. Mas eles me interessam também porque, no fundo, esse tipo de pessoa é a grande adversária da tentativa de atenuar a crise climática. São aceleracionistas, querem ir para a frente, na suposição de que ciência e tecnologia resolvem tudo e, em último caso, a conquista espacial abrirá novos espaços de vida — e a própria imortalidade nos será dada pelos computadores.

Os gregos já advertiam sobre o perigo da prática humana que desconhece limites. Ela é o estopim da tragédia. Por isso diferenciavam sagacidade e sabedoria. O coro na obra de Sófocles afirma: a felicidade depende da sabedoria em todos os sentidos.

Todo este momento confuso me fez entender melhor os velhos que talvez ironizasse porque tinham dificuldade de compreender o curso do mundo. Onde é que vamos parar? Essa é a pergunta que faziam com insistência e que, hoje, sem subestimar sua perplexidade, parece-me muito mais angustiante. Estamos diante de uma catástrofe climática e da substituição da verdade pelas falsas versões. Os velhos não têm acesso a uma felicidade exuberante.

Sempre cito Samuel Beckett: não se passa um dia sem que algo seja acrescido a nosso saber, desde que suportemos as dores. Hoje imagino que Beckett tenha se inspirado no Eclesiastes, também citado por Giordano Bruno em 1588: “Aquele que aumenta seu saber, aumenta seu pesar”. Tudo isso não implica conformismo, pelo contrário. Sabendo distinguir o que é passível de transformação e o que não é, talvez seja possível conduzir a serenidade necessária para enfrentar este mundo confuso.

Resolvi abordar o tema pois há muitas maneiras, além do espelho, para descobrir que envelhecemos. Uma delas é essa inquietação sobre onde pararemos, num planeta ameaçado pelo desastre e por aqueles que querem marchar aceleradamente em sua direção, embalados pelos lucros e fantasias das 
big techs.

Há uma criança na rua

A esta hora, exatamente, há uma criança na rua.
É dever do homem proteger o que cresce,
Cuidar para que não tenha uma infância dispersa pelas ruas,
Evitar que naufrague seu coração de barco,
Sua enorme vontade de pão e chocolate,
Caminhar por seus países de bandidos e tesouros
Pondo-lhe a esperança no lugar da fome.


De outro modo é inútil ensaiar na terra a alegria e o canto,
De outro modo é absurdo porque de nada vale se há uma criança na rua.
Importam duas maneiras de conceber o mundo:
Uma, ser alguém como as outras pessoas ou
Arrancar cegamente dos demais a bolsa.
E a outra, um destino de salvar-se com todos,
Comprometer a vida até o último náufrago.

Como se pode dormir de noite se há uma criança na rua?
Exatamente agora, se chove nas cidades,
Se desce o nevoeiro gelado no ar
E o vento não é nenhuma canção nas janelas,
Não deve andar o mundo com o amor descalço
Levando um diário como uma asa na mão.

Trepando nos trens, provocando-nos o riso,
Golpeando-nos como um anjo de asa cansada,
Não deve andar a vida, recém-nascida, já lutando,
A meninice arriscada a um pequeno ganho,
Porque então as mãos são dois fardos inúteis
E o coração, apenas uma má palavra.

Eles esqueceram que há uma criança na rua,
Que há milhões de crianças que vivem na rua
E uma multidão de crianças que cresce nas ruas.
A esta hora, exatamente, há uma criança crescendo.

Eu a vejo apertando seu coração pequeno,
Olhando para todos com seus olhos de fantasia,
Percorrem e olham para o homem rico,
Um relâmpago forte cruza seu olhar,
Porque ninguém protege essa vida que cresce

E o amor se perdeu como uma criança na rua.

Armando Tejada Gómes

O estranho fenômeno dos bebês reborn

Havia algo de estranho no casal que embarcou comigo, algumas semanas atrás, num voo de São Paulo para o México. A mulher, em torno dos 20 anos, carregava um bebê nos braços que aparentava dormir.

Passei alguns minutos observando o bebê, que não se mexia. E que não se mexeu nem mesmo quando a mulher, que estava sentada atrás de mim, o embalou nos braços durante o voo.

Só algumas horas depois a ficha caiu para mim: era um bebê reborn. A expressão do rosto, a textura da pele, tudo levava a crer que se tratava de um bebê de verdade. Mas era uma boneca. Hiper-realista, mas boneca.

Difícil dizer se se trata de uma obra de arte hiper-realista ou de um pequeno Frankenstein. Desconfiei que a mulher levou o bebê junto para ter acesso prioritário ao voo. Vai saber...


Há quem diga que essas bonecas têm uma função terapêutica na superação de traumas. Elas já seriam usadas para isso nos Estados Unidos desde os anos 1990.

Para outros, elas parecem ser um objeto de coleção. Mas haveria também mulheres jovens que as utilizam para treinar para uma futura maternidade – eu, porém, não consigo entender como isso pode ser um treino para lidar com bebês de verdade.

Seja como for, a moda parece ter se espalhado pelo país. Na imprensa há relatos de encontros de mamães de bebês reborn, um deles no Parque Villa-Lobos, em São Paulo. Há clínicas onde o parto de uma criança é simulado com essas bonecas. Padres teriam rejeitado o batismo dessas "crianças" ou dar aulas de religião para elas. Em vez da Igreja, disseram, as mães deveriam procurar um psicólogo.

Na Bahia, uma mulher processou o empregador porque este lhe negou a licença-maternidade. A negativa teria causado um profundo trauma psicológico nela por causa da relação forte que ela tem com a boneca, argumentou.

Há casos de casais que estão brigando pela guarda de um bebê reborn – ou pelas contas em redes sociais. Porque, ao que parece, mostrar a "vida" das bonecas em redes sociais é uma boa fonte de dinheiro.

Por que esse fenômeno estranho virou mania justamente no Brasil, e por que agora? Seria uma paixão de infância que foi reprimida pela pobreza e que uma mulher adulta poderia finalmente vivenciar? Seria uma maneira de superar a própria relação insatisfatória com os pais? Ou trata-se mesmo da superação de um trauma, seja de um sofrimento passado, seja o desejo não realizado de ser mãe?

Certo está que esse fenômeno tem uma relação com a popularidade das redes sociais. Nelas é possível dar plena vazão a sua paixão pelas bonecas e gerar muitos cliques e engajamento com vídeos onde elas aparecem. É o que se chama de criação de conteúdo. Há até mesmo casos de influenciadores que tiram onda dessa mania. Só que muitos não entendem o tom irônico dos vídeos, que acabaram viralizando.

Certo está também que as bonecas se encaixam no papel da mãe totalmente dedicada aos filhos que a sociedade brasileira determina às mulheres.

Dizem que o ser humano é um ser social. Enquanto ele for uma criança que depende de adultos, sem dúvida. Mas, quando paro para pensar no meu cotidiano, percebo que os avanços tecnológicos me tornam cada vez menos social.

O Whatsapp nos deu uma ferramenta para que possamos nos comunicar sem telefonar ou conversar. O IFood nos traz a comida sem termos de ir a um restaurante. Aceitamos de bom grado que a tecnologia torne nossos contatos sociais cada vez menos necessários, sem que para isso tenhamos de renunciar à realização dos nossos sonhos.

Isso também afeta nossa vida amorosa e afetiva. Já se fala em jovens que se apaixonaram por um avatar gerado por inteligência artificial: o parceiro ideal, que só existe como versão digital e é programado para atender perfeitamente a todas as nossas necessidades.

Fuga para a vida virtual porque a real se tornou muito estressante? Um casal de amigos está criando dois filhos pequenos – de carne e osso, é bom dizer. O estresse que isso lhes causa não é algo que alguém gostaria de ter. Seria bem mais fácil criar duas bonecas. Mas eu tenho minhas dúvidas de que isso fosse satisfazê-los.

Quando os números começam a contar outra história

Mesmo ainda vivendo um ciclo de instabilidades, desigualdades agravadas e crises políticas, o Brasil passa a mostrar, a cada dia, sinais de reconstrução. A economia surpreende positivamente, indicadores sociais apresentam avanços e dados internacionais revelam uma melhora — ainda tímida, mas significativa — na percepção de bem-estar da população. No entanto, esse movimento não é uniforme nem livre de contradições. É justamente na tensão entre os números e a experiência cotidiana que reside o desafio de compreender o país em transformação.

Em 2023, o Brasil subiu cinco posições no ranking global do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), atingindo 0,786 — o maior valor desde 2010. O avanço em longevidade, educação e renda colocou o país na 84ª posição entre as nações avaliadas. Esse salto pode parecer modesto, mas é suficiente para reposicionar o país entre as economias de alto desenvolvimento, influenciando decisões de negócios, investimentos e políticas públicas. Ao mesmo tempo, a taxa média de desemprego caiu para 6,6% em 2024, o menor patamar desde o início da série histórica do IBGE. A economia cresceu 3,4%, e o Brasil voltou a figurar entre as dez maiores economias do mundo. Para 2025, a projeção é de mais 2,4% de crescimento.


Esses dados, embora animadores, não esgotam a realidade. O crescimento precisa ser analisado à luz de uma pergunta essencial: a serviço de quem — e de quê — ele está? Desenvolvimento econômico não é sinônimo automático de progresso humano. Só faz sentido se for capaz de ampliar oportunidades, restaurar vínculos, garantir dignidade e criar condições para que as pessoas vivam com mais propósito e menos medo.

Nesse ponto, o Brasil se vê atravessado por forças opostas. Se, por um lado, os dados apontam avanços, por outro, o ambiente social e digital — muitas vezes alimentado por lideranças políticas — tem promovido uma cultura de medo, desesperança, intolerância e ansiedade coletiva. O uso sistemático das redes sociais como campo de batalha ideológica gera ruídos que afetam diretamente a saúde mental da população, distorcendo percepções e obscurecendo conquistas reais.

Ainda assim, o brasileiro tem demonstrado uma resiliência surpreendente. Segundo o World Happiness Report, o país ocupa hoje a 36ª colocação entre 147 nações, com nota 6,27 — uma melhora em relação aos anos anteriores, embora ainda distante dos níveis observados em 2012. O relatório avalia dimensões como apoio social, renda, saúde, liberdade e generosidade. É um sinal de que, apesar d



as adversidades, a sensação de bem-estar pode estar começando a se recuperar. 

Essa recuperação não deve ser lida como otimismo ingênuo, mas como um campo fértil para políticas públicas mais sensíveis às necessidades reais da população. A terceira onda da Psicologia Positiva tem se debruçado justamente sobre essa complexidade: não se trata apenas de buscar felicidade individual, mas de promover o florescimento humano como fenômeno social — que depende de uma trama complexa de acesso à saúde, justiça, liberdade, vínculos afetivos, reconhecimento e condições materiais mínimas para viver com dignidade.

Mais do que indicadores econômicos, precisamos de métricas que revelem o quanto a vida está, de fato, melhorando — no cotidiano das pessoas, nas relações que constroem, na perspectiva de futuro que alimentam. A ideia de bem viver passa a integrar o debate sobre desenvolvimento. E isso exige um novo tipo de economia: uma que não se esgote no crescimento do PIB, mas que se comprometa com a dignidade humana, o fortalecimento do tecido social, da confiança coletiva e da sustentabilidade do planeta.

Viver bem é mais do que ter. É poder ser. Ter tempo, autonomia, segurança, cuidado. É ter voz, pertencimento e espaço para imaginar futuros — algo que não se constrói apenas com políticas de mercado, mas com políticas de Estado voltadas à reconstrução do pacto social.

O Brasil não virou o país mais perfeito do mundo. Nenhuma potência, aliás, pode se arrogar esse posto. Estados Unidos e China, embora liderem em crescimento e influência, enfrentam sérios desafios em saúde mental, desigualdade e bem-estar subjetivo, sem compromissos claros com uma cultura de paz.

A diferença está em reconhecer que o futuro das nações não pode ser medido apenas por sua força econômica — mas pela capacidade de construir sociedades mais humanas, mais equilibradas e que ofereçam à sua população condições de bem viver para todos, sem nenhum tipo de distinção.

Para ser mais feliz, o Brasil precisa continuar reconstruindo com coragem e propósito. Isso passa por educação crítica, saúde integral, cidades que cuidam, políticas públicas voltadas ao florescimento coletivo e uma economia que respeite o tempo das pessoas e os limites do planeta. Passa por escuta, diversidade e por uma visão de país em que o crescimento seja o meio — e o bem viver, o verdadeiro fim.
Rodrigo de Aquino