sexta-feira, 2 de junho de 2023

Pensamento do Dia

 


Frequentador de estádio age como comprador do direito de consumir o jogador

Frequentador de estádio é personagem da sociedade de consumo. Ele julga comprar o jogador ao comprar o ingresso e não raro age como comprador do direito de consumir o jogador.

A deplorável demonstração de racismo de torcedores espanhóis contra o jogador brasileiro Vinicius Júnior, do Real Madrid, no último dia 21 na disputa contra o Valência - o vencedor -, não fica bem analisada e interpretada se reduzida à questão do preconceito nos estádios de futebol.

A questão é, sociologicamente, bem mais complicada. O futebol não teria se transformado em grande empreendimento econômico e mesmo político se não tivesse sido incorporado ao sistema de multiplicação da riqueza. Substituiu pelo conflito tópico e efêmero das partidas o conflito estrutural da luta de classes.

Ao se transformar em negócio, o futebol foi banalizado e destituído do seu caráter propriamente esportivo. Ficou vulnerável à concorrência em lugar da disputa.


Tornou-se o mais massificado dos esportes. Saiu do gramado da disputa entre 2 times de 11 jogadores, que se tornaram atores secundários em face da multidão das arquibancadas. É nas arquibancadas que o jogo é jogado. O jogo já não é nem mesmo o verdadeiro confronto esportivo. Outras motivações conflitivas dirigem muito do que acontece no desenrolar de uma partida.

No futebol de hoje o verdadeiro jogo é invisível. Os do gramado são cada vez mais coadjuvantes de um enredo de invisibilidades, de uma trama de interesses que são outros, bem diversos dos do espetáculo de beleza esportiva, de esporte criativo, de obra de arte.

O futebol revelou talentos ocultos do homem simples, do operário, do índio, do negro. Revelou-se instrumento de robustecimento da democracia nascente. Justamente por isso não é estranho que essa democracia da diversidade esteja sendo combatida nos estádios de futebol pelo racismo e pela violência do confronto entre torcidas. Expressam a intolerância à diferença e à pluralidade, ao que é próprio da cultura democrática. Num país como este, uma singularidade notável.

Essa conflitividade, embora patológica, não é anômala. O futebol foi capturado pela necessidade política de institucionalizar o conflito social próprio do advento da sociedade industrial e moderna. Ganhou sentido como instrumento de controle social em face do crescimento do protagonismo, fora de controle, da classe operária e da centralidade da luta de classes na estruturação da nova sociedade criada pela industrialização. A história do futebol é a história da invenção de técnicas sociais de neutralização e direcionamento de tensões. Isso não lhe tira a beleza. Apenas o enfeia e dele faz expressão de contradições sociais.

É que há outros problemas por trás de manifestações como aquela contra o jogador brasileiro. Se a variedade de causas e de determinações do ódio pós-moderno, como o que vitimou Vinicius Júnior, não forem consideradas, dificilmente será possível desenvolver técnicas sociais de contenção ou controle dos efeitos antissociais do que na verdade são carências e frustrações. As de uma sociedade que foi considerada monopólio de brancos. E por isso trata o negro como um usurpador de oportunidades sociais cada vez mais escassas, como a dos jogadores negros, ricos e de sucesso.

Nesta sociedade, que é de fato de classes, o futebol ganhou funções sociais alienativas, gerou ilusões de ascensão social, real para poucos, impossível para a maioria dos torcedores de futebol. Deu forma antissocial a um cotidiano de impossibilidades. A violência física e simbólica nos estádios deforma o conflito social próprio da sociedade de classes, perde a legitimidade não tolerada de um direito social para ser mera delinquência tolerada.

O racismo nos estádios de futebol é um modo de contestar e repudiar uma das características mais importantes da sociedade moderna: a diferença como atributo pessoal e um direito da pessoa. Mas não é a raça nem a cor que vem em primeiro lugar para motivar a violência racial, em casos como este, contra o negro. É a trama dos fatores sociais invisíveis da discriminação e da intolerância que decorrem da desigualdade social e dos seus êxitos diferenciais.

No futebol, tanto na Espanha quanto no Brasil, o ódio racial nos estádios é o do branco ressentido contra os negros vitoriosos que superaram a condição social adversa da pobreza a eles imputada e se tornaram ricos e famosos. Os brancos querem deles os seus gols, mas não os querem como pessoas e iguais. Chamá-los lá de “monos” e, aqui, de “macacos” é reviver concepções do tempo da escravidão, de dúvidas sobre a condição humana do escravo.

O frequentador de estádios é personagem da sociedade de consumo. Ele julga comprar o desempenho do jogador ao comprar o ingresso. Não raro age como comprador do direito de consumir o jogador. Esse racismo é isso: consumo covarde do atleta pelo torcedor.

O último Camacan

Era o último que restou da tribo. Apenas era um curumim quando viu o horror querendo arrancar seus olhos. Escondido atrás do jequitibá frondoso, escutava os gritos, os corpos abatidos com a saraivada de bala, a taba queimada. O sangue empapou o chão, correu no rio a mancha que deságua na alma. O que fez seu povo para merecer o extermínio? Pergunta que não tinha resposta apesar de ter visto a barbárie que fizeram com a sua gente.

Dormiu em cima de pé de pau para que não fosse comido pela onça. De dia não sabia que direção tomava. Comia inseto e bebia água do riacho com a folha larga da árvore grande. O que seria dele agora, sozinho no meio da mata? Até que duas mãos o prenderam. O homem de rosto manso sorriu para ele. Alisou seus cabelos finos. Apontou para o seu coração, depois para o dele, como se dissesse, o meu é igual ao seu, não tenha medo, curumim, vou tomar conta de você. Deu-lhe biscoito, um pedaço de carne charqueada, uma xícara de café, bebida que ele nunca tinha tomado.

Foi morar com o homem na cidade, entrou na escola, aprendeu a ler e a escrever. Quando ficou rapaz, disse ao homem, o dono de uma roça de cereais perto do local onde vivia a sua tribo, que queria ser motorista. Fez o curso para conseguir o que desejava, foi dado como apto para se submeter às provas para motorista no departamento de trânsito local. Conseguiu o que queria na prova final, estava habilitado para ser motorista de veículo pesado.

Não demorou, teve a carteira assinada como motorista de ônibus da Companhia de Viação Sul Baiano. Rolava pelas estradas do território onde cabiam mais de cem municípios. De vez em quando olhava pela janela do ônibus aquele território coberto de matas, roças espalhadas onde os moradores de umas não sabiam das outras, de tão distantes que estavam.

E dizer que todas aquelas terras pertenceram aos seus antepassados. Justamente onde estava a maloca de sua tribo, depois que tudo ficou arrasado, ergueram barracões como parte do plano para desmatar a mata e vender a madeira. O lugar tornou-se logo um entreposto de negócios para venda de terras, artigos de campo e cidade no armazém.

Assim, por ladeiras e aclives do terreno, foi surgindo o vilarejo de topografia acidentada. Todas as ladeiras convergiam para o centro lá embaixo, onde ficava a única parte plana. Quando o lugarejo se tornou cidade foi batizado com o nome de Camacan. Por quê? Nada ali existia que registrasse a passagem de um povo que vivia em paz com a natureza. Para que ficasse nele batendo e voltando a lembrança de uma trágica emboscada?

Depois que passou a ser motorista da empresa de transporte de passageiro teve que morar em Camacan. Às vezes sentia que um pássaro distante cantava no peito a fuga do vento sem rumo certo, o horror do sol vendo as águas que afogavam os nativos na mancha enorme formada com a vergonha.

Nunca conseguiu se libertar da lembrança que queria arrastá-lo para a escuridão do pior abismo. Quando percorria a pé estas ladeiras, onde antes estava a mata intacta, a gente de sua tribo morava, na parte baixa, atravessava-lhe a flecha quebrada, dispersa nas cores, cheiros e sentidos de todas as manhãs. Zunia a bala que baniu da taba em dó e lágrima, até o último gemido, aquelas vozes na dança.

O inteligentíssimo fim do mundo

O filósofo Adauto Novaes, com sua fala mineira, sem atropelos ou turbulências, gosta de lembrar uma frase do poeta francês Paul Valéry: “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”. Lembrança pertinente. Com essas palavras, Valéry faz a abertura de seu ensaio célebre A crise do espírito, publicado na França no ano de 1919, lá se vão mais de cem anos.

Eram tempos traumáticos. O desafio do pensamento era reconhecer que a utopia iluminista, com a sua promessa de que a ciência libertaria a humanidade da peste, da fome e das guerras, dava sinais de fadiga. O morticínio gerado pela Primeira Grande Guerra era a prova irrefutável desse fato. O que se viu foi a distopia. Cientistas desenvolveram gases tóxicos para dizimar adolescentes confinados nas trincheiras. Aviões se convertiam em armas letais. O poder era o crime perfeito. Ficava mais do que evidente que a civilização, impulsionada pelas mais estonteantes invenções da técnica, era capaz de matar, inclusive a si mesma.

Fim do mundo segundo a IA

Depois do veredicto de Valéry, as coisas pioraram. Vieram o Holocausto, a bomba atômica e o aquecimento global. Além das civilizações, a própria humanidade se descobriu mortal. Cães raivosos não alcançam essa ideia, mas assim é.

Anteontem, o jornal The New York Times noticiou que um grupo que reúne os principais pesquisadores e executivos dos maiores centros de inovação tecnológica no mundo lançou uma advertência: o crescimento indiscriminado da Inteligência Artificial (ou simplesmente IA), outra conquista do gênio humano, pode empurrar a nossa espécie para a “extinção”. Não, a palavra não é exagerada. O texto do Times, assinado pelo colunista de tecnologia Kevin Rose, não envereda por firulas especulativas. Vai aos nós objetivos do problema.

Enorme problema. Para começar, as ferramentas baseadas em IA vão devorar milhões e milhões de empregos hoje ocupados por pessoas feitas de átomos de carbono. Essas pessoas cederão seu lugar para traquitanas que levam átomos de silício em sua composição e serão expulsas do mundo do trabalho. Os laços sociais serão convulsionados.

Em outra frente, dispositivos atrelados a algoritmos inteligentes vêm desempenhando um papel tenebroso nas campanhas de ódio e disseminação das mentiras mais destrambelhadas. As multidões, presas fáceis, se aglomeram em tropas de fúria e fanatismo, o que corrói as instituições encarregadas de verificação da verdade factual, como a imprensa, a ciência e a justiça. Ato contínuo, os alicerces das instituições democráticas se desestruturam.

Diante disso, alguém levanta a mão para fazer a pergunta inevitável: mas essas mesmas tecnologias não podem ser usadas “para o bem”? Podem, sim, é lógico. O veneno de cobra e a arma de fogo também podem ser usados “para o bem”. O livro de Adolf Hitler, Minha Luta, quando estudado por historiadores ou pensadores comprometidos com a democracia e os direitos humanos, pode servir a bons propósitos, como o de nos ajudar a impedir uma recidiva no nazismo. Em tese, tudo pode servir “para o bem”. O cianureto, o pernilongo e a música brega podem ser utilizados “para o bem”. No entanto, não é bem esse “bem” que se projeta como tendência quando o tema é IA. Os que mais entendem do assunto estão assustados. Ouçamos o que eles dizem.

“Debelar o risco de extinção representado pela IA deve ser uma prioridade global ao lado de outros riscos de escala social, como pandemias e guerra nuclear”, afirma o manifesto de uma única frase assinado por cerca de 350 cientistas e dirigentes de empresas. Entre os signatários estão Sam Altman, presidente executivo da OpenAI, e Demis Hassabis, presidente executivo do Google DeepMind, além de Geoffrey Hinton e Yoshua Bengio, ganhadores do Prêmio Alan Turing, uma espécie de Nobel da tecnologia.

O risco da extinção de que eles falam não deve ser entendido como o risco de uma catástrofe nuclear. Não é que alguém vá lá, ligue o computador e, num estrondo, as populações de todos os países partirão desta para uma pior. Não será assim. A civilização, nesta hipótese da extinção por IA, desaparecerá aos poucos, num suspiro longo.

As ferramentas de IA vão aos poucos tomando posse dos protocolos discursivos que, desde sempre, orientam as condutas humanas. O jargão jurídico é um desses protocolos. O método científico é outro. A atividade dos médicos é um terceiro tipo. As religiões também têm os seus, que não se confundem com os anteriores. Todos esses protocolos têm um traço comum: eles são construídos na linguagem. Quando a IA aprende a falar, como se fosse gente, ela se apropria dos protocolos que formatam comportamentos individuais e sociais e, a partir daí, tudo muda de figura.

Como resultado, o ser humano perderá relevância, enquanto os protocolos desumanizados se expandirão. Da nossa irrelevância brotará o ciclo vicioso que vai nos escantear e, depois, nos extinguir. A menos que a democracia tome providências. Segundo o grupo seleto que assinou o manifesto de uma única frase, ainda há tempo.

Lula e Maduro, o amor é lindo

Entre as várias besteiras que tem cometido em vez de dedicar-se a reconstruir o país, Lula embarafustou-se por uma mixórdia verbal na segunda-feira (29) ao receber em palácio um convidado que entrou em surdina, quase que pelos fundos e sem limpar os pés: o ditador venezuelano Nicolás Maduro. Lula chamou de "narrativa" as acusações que pesam sobre Maduro e sua maneira de tratar os opositores —com prisões, sequestros, desaparecimentos, afogamentos, tortura, estupros e execuções, tudo isso possibilitado por asfixia da imprensa, degola do Poder Legislativo, pesada corrupção de militares e eleições de araque.


Esse é o violento diagnóstico contra Maduro pela Anistia Internacional, a Human Rights Watch, a Organização das Nações Unidas e o Tribunal Penal Internacional de Haia, entidades a que apelamos contra Bolsonaro por incitação a golpe de Estado, charlatanismo na pandemia e genocídio dos povos indígenas. Não por acaso, Bolsonaro também chamou a isso de "narrativa".

Narrativa, como se vê, é uma história cuja veracidade depende de quem a conta —ou de quem a escuta. Lula instou Maduro a "construir sua narrativa, para que possa efetivamente fazer as pessoas mudarem de opinião". Jurando por essa narrativa antes mesmo de ouvi-la, carimbou: "A sua narrativa vai ser infinitamente melhor do que a que eles têm contra você". O amor é lindo, não?

E então vem a mixórdia verbal: "Está nas suas mãos construir a sua narrativa e virar esse jogo, para a Venezuela voltar a ser um país soberano, onde somente seu povo, por meio de votação livre, diga quem vai governar o país".

Pois não é exatamente o que o mundo espera da Venezuela? Que volte a ser um país soberano, onde somente o povo, através de eleições livres, sem as mentiras, as gambiarras econômicas e o uso da máquina do Estado praticados por Bolsonaro, digo Maduro, escolha quem irá governá-lo.