terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Funerária do Brasil

 


Plano nacional pró-pandemia

O fenômeno reacionário que Bolsonaro encarna precisa de imprevisibilidade para prosperar. Nada melhor do que uma pandemia artificialmente prolongada. O governo trabalha para que a peste permaneça. Isto é verificável.

Por exemplo: o caso do consórcio Covax, de abril de 2020. O Brasil tinha a opção de adquirir doses para cobrir até 50% de sua gente. Optaria, contudo, pela cota mínima — 10% de alcance. A justificativa foi que montara estratégia dedicada a acordos bilaterais, com os quais teria melhores condições para preço e transferência de tecnologia. Ok.

O mundo real, entretanto, impôs-se. E chegamos a 2021 com apenas uma parceria bilateral firmada — para a vacina de Oxford. Só em 22 de janeiro as primeiras duas milhões de doses decorrentes desse contrato pousaram no país. Volume modesto fabricado na Índia, pelo qual se pagou duas vezes mais que membros da União Europeia pelo mesmo imunizante. Um acordo bilateral que — até aqui — custou caro e entregou pouco. E que não pôde ainda honrar a parte do pacto relativa à transferência de tecnologia; impossibilidade prática derivada da inexistência de insumos para o trabalho da Fiocruz.



Estamos no fim da fila de vacinação por ação deliberada do governo; por gestão do presidente. Não temos vacinas a contento hoje, nem sequer contratos que projetem no futuro a cobertura vacinal da população, porque Bolsonaro não quis.

Pazuello, cavalo do presidente, não camufla a instrumentalização da incompetência. “Em janeiro, começo de fevereiro, vai ser uma avalanche de laboratórios apresentando propostas”, declarou no último dia 21. Que tal? Este é o cultor do atraso cujo ministério receitou cloroquina até para bebês. Aquele que, já sabedor da escassez de oxigênio em Manaus, visitou a cidade apregoando feitiçaria a título de tratamento preventivo. Um militar, general da ativa, que preferiu propagandear uma modalidade de prevenção que garantiria a propagação da peste. Este é o cultor do atraso que insiste na mentira mercadológica de que o Brasil será assediado por ofertas de vacinas; algo que não ocorreu nem sequer aos EUA.

O governo opera para que o país não apenas não tenha carga de vacinas suficiente para imunizar os brasileiros, como só tenha sua cota de mixaria o mais tarde possível. A sustentação do estado de calamidade informal — a preservação da pandemia como solo competitivo — forja dificuldades que atraem as respostas populistas. A ver o auxílio emergencial. Deixou-se que acabasse, mesmo com o vírus recrudescente e o acirramento da miséria. Sob pressão que ele próprio induz, Bolsonaro fará a derrama de dinheiros, sem planejamento, sem revisão de benefícios ineficazes, sem o mais mínimo estudo para flexibilizar o teto de gastos. Em vez de um debate para reformá-lo à luz da realidade, o improviso voluntarioso que o aterrará.

O improviso voluntarioso — semeador de demoras e gerador de urgências e oportunidades — com vista a 2022. A propósito, o caso da importação da vacina de Oxford desde a Índia merece reconstituição. Em novembro de 2020, em reunião com o chanceler indiano, Ernesto Araújo, mesmo tendo o combate à doença na agenda, e ciente de que falava com um país grande produtor de imunizantes, não tocou no assunto. Preferiu criticar o governador de São Paulo, por considerar eleitoreira a atividade daquele sem cujo empenho ainda não haveria brasileiro vacinado.

Em 13 de janeiro último, porém, o governo anunciou o envio de um avião à Índia para buscar as doses. A meta era fazer Bolsonaro vacinar antes de João Doria. Não daria certo. (Como certo não dará um programa de imunização que dependa de só dois fabricantes; tudo o que ora temos: AstraZeneca/Fiocruz e Sinovac/Butantan, incapazes de oferecer o que se demanda.) Armou-se um avião publicitário pronto a decolar para recolher um imunizante indisponível. O Brasil passaria vergonha ministrada pela Índia, então com outras prioridades. (No mundo real, antes viriam as necessidades do vizinho Butão.) E diga-se que fora o próprio governo a divulgar a fantasia de que teríamos a primazia. As doses só chegaram quase dez dias depois.

O episódio com a Pfizer não deixa dúvida sobre a existência de um plano nacional de sustentação da pandemia. Data de setembro de 2020, a carta do CEO do laboratório a Bolsonaro. A missiva, nunca respondida, pedia ao presidente que fechasse logo um acordo com a farmacêutica, conforme já haviam feito EUA, União Europeia, Reino Unido, Canadá e Japão. A demanda seria grande — e poderíamos ficar para trás. Ficamos. Escolha do Brasil. O governo criou empecilhos e tentou desacreditar a vacina. E todas as suas manifestações posteriores sobre por que assim procedera, inclusive em nota oficial, configuram provas em que se confessa um crime.

Bolsonaro não é somente um mentiroso; o maior influenciador antivacinação do mundo. É o líder de um governo que optou por não enfrentar o coronavírus. É o responsável — agente direto — pelo atraso do Brasil em vacinar a população; e nisto vai colecionando delitos. Crimes comuns; não somente os de responsabilidade. Bolsonaro tem lugar no Código Penal. Ocorre que, de novo, o mundo real se impõe — e nem sempre para prejudicá-lo. Afinal, tem também Augusto Aras e — cada vez mais forte para presidir a Câmara — Arthur Lira.

Será difícil, sobretudo para os pobres.

De volta da tumba...

Isso ( movimento pelo impeachment) é uma tentativa de descredenciamento, uma sabotagem à democracia brasileira. O presidente foi eleito com 60 milhões de votos, voto popular.

Quando um cara ganha, deixa o cara governar, vamos ajudar, vamos tentar dar certo
Paulo Gudes, ministro da Economia

Pandemia e barbárie

A tragédia humanitária e sanitária em que estamos mergulhados nos confronta com uma crise ética e civilizacional de igual gravidade. Estamos todos perdendo com a negligência criminosa do governo. Mas quem tem dinheiro acha que pode contornar a demora na imunização passando à frente dos que deveriam estar em primeiro lugar: profissionais de saúde, idosos e quem tem comorbidades.

No começo deste mês, soube-se que clínicas privadas negociavam diretamente com uma farmacêutica na Índia a compra de vacinas, alegando tratar-se de ação complementar ao SUS. Agora, a coluna Painel informa que grandes corporações negociam com o Ministério da Saúde a compra de doses no exterior.

Metade seria entregue ao SUS, metade ficaria para funcionários das empresas e seus parentes.

Cientistas renomados tem insistido que vacinação é estratégia coletiva, que só dá resultados quando aplicada em larga escala. Ninguém está a salvo do vírus individualmente ou em pequenos nichos. No Império, o voto era "censitário", de acordo com a renda do cidadão. Agora, estaríamos diante da vacina "censitária". Uma ilusão que só agravaria a desigualdade realçada pela pandemia.

Do ponto de vista ético, a generosidade de Albert Sabin deveria ser o nosso norte neste momento. O cientista renunciou aos direitos de patente da gotinha contra a poliomielite, o que permitiu proteger milhões de crianças no mundo inteiro. Solidariedade. É disso que mais precisamos.

Não se trata de demonizar o setor privado, que pode ajudar de muitas outras formas, como em logística, armazenamento e transporte. Desde que suas ações reforcem a política pública e não concorram com ela. As empresas não confiam na capacidade do governo federal? Procurem os governos estaduais, que podem e devem mobilizar suas estruturas e capilaridade.

Contra o coronavírus, já temos vacinas. Precisamos, desesperadamente, de um antídoto contra a barbárie.

Meu pirão primeiro

Furar fila da vacina é indignidade ímpar. Mas dignidade, respeito e humanidade não passam nem perto da velha turma do farinha pouca, meu pirão primeiro. Grupo que existe, é grande e, cada vez mais, exibido. Depois de JMessias, perderam a vergonha de expor-se.

Furaram fila jovens médicos recém-formados, prefeitos e outras autoridades constituídas, madamas namoradas e ou influencers, etc.

Assis Silva, Secretário de Saúde de Saúde de Pires do Rio, em Goiás, vacinou a própria esposa, que não é dos grupos prioritários dessa primeira leva de vacinação. Depois, pediu desculpas. Explicou-se: “Foi com intuito de resguardar e preservar a saúde e a vida da mulher da minha vida. Sou capaz de dar minha própria vida por ela”.

No caso, não foi bem a própria vida que ele deu. Mas sim uma das parcas 280 doses da vacina que o município recebeu. Nem pensou em levar em conta os milhões de infectados e os 200 mil mortos que são e que eram o amor da vida de alguém. Meu pirão primeiro.

Fazer o que com esses? Processo, prisão, multa? Sem dizer, já disseram: Fiz sim. E daí?

Algum de nós acha que, no meio do caos da pandemia, serão devida e exemplarmente punidos, nos tais rigores da lei? Vão receber a segunda dose?

Muita interrogação. Muita barbárie.

"Tomei por conta que quero viajar, e não para me sentir mais segura. Uma vacina que dá 50% de segurança para mim não é uma vacina. Tomei foi água". Debochou a enfermeira Nathanna Faria Ceschim, do Espírito Santo.

Não virou jacaré, manteve o DNA da indignidade e da cara de pau, Após ser imunizada, correu para as redes sociais para desacreditar a vacina. Nathanna, que se diz bolsomínia raiz, antes, já havia exibido orgulhosamente vídeos, sem máscara, no Hospital da Santa Casa de Misericórdia, onde trabalha, em Vitória.

Foi denunciada pelo Ministério Público e é investigada pelo hospital. Perdeu o emprego. Mas a dose da vacina “água”, que tomou só porque quer viajar não será devolvida. Fará falta para o amor da vida de alguém, para alguém que precisa de fato viajar.

Fazer o que com essa gente horrorosa?

O bufão.

Pazuello, o ministro da Saúde, com pança, pinta e papel de bufão de ópera, agora foi exibir sua dita credencial de estrategista no caótico estado do Amazonas. O que mesmo que ele fez como ministro da Saúde, hein, hein?

Lives louvando seu chefe, o indigitado e inominável PR do Brasil, e a cloroquina. Sabia que faltaria oxigênio no Amazonas e, por desfastio, regateou a urgência da compra.

Antes, já havia empurrado com a pança a compra de vacinas. Não fosse o João Dória, governador de Sampa e adversário do chefe, adiantar-se na aquisição do imunizante da China, o Pançuelo ainda estaria traçando estratégia para lidar com o assunto pandemia.

Mais ou menos assim. Primeiro passo, arranjar um jeito de distribuir os milhares de comprimidos comprados pela desgovernança do capitão reformado para quem ele, general da ativa, bate continência e passa pano.

Segundo passo, tirar a máscara para ouvir melhor nas entrevistas diárias, onde é obrigatório estufar o peito para mentir mais alto.

Terceiro passo, correr atrás do Dória.

Deu ruim. Dória cruzou a linha de chegada primeiro.

Quarto passo?

Não deu tempo ainda. Estratégia é coisa difícil, complicada. Não é assim, pô. Só porque tem uma pandemia global que o Ministério da Saúde tem que organizar a bagaça? Calma, meu.

Quinto passo, virar boi de piranha do chefe.

Agora, tenho que ir pra Manaus botar a pança a tapa no olho do furacão, no meio do estrago que estrategicamente estamos fazendo? Assim não dá.

A tranca, depois da casa arrombada.

Paulo Guedes, que andava se fingindo de morto lá no Ministério da Economia, tira a cabeça da areia e expõe sua brilhante e nova descoberta: “Vacinação em massa é fator crítico para o sucesso da economia”.
 

Pensamento do Dia

 


A pequenez de Bolsonaro

A postura antirrepublicana do presidente Jair Bolsonaro é mais uma entre tantas evidências de que ele não cabe no cargo que ocupa. A bem da verdade, jamais coube. A notória mediocridade de seu currículo, por assim dizer, e a intolerância a tudo e a todos que contrariem seus interesses já apontavam desde antes da eleição que, caso ele chegasse à Presidência, como de fato chegou, a Nação haveria de lidar com o mais nefasto governo de sua história. Em vez de se moldar à dignidade da Presidência da República, Jair Bolsonaro a rebaixou como nenhum outro presidente antes dele.

Em sua rinha contra o governador de São Paulo, João Doria, o presidente esgarça ainda mais os limites aceitáveis das lides políticas próprias da democracia. Por raiva, medo, inveja ou outros sentimentos inconfessáveis em relação ao tucano, o comportamento de Bolsonaro põe em risco projetos de interesse da população do maior Estado da Federação.


Há dezenas de obras em São Paulo que dependem fundamentalmente do aval da União, da ação de Ministérios ou de financiamentos de bancos públicos. A esmagadora maioria delas tem sido sabotada pelo governo central, por ordem de Bolsonaro. O presidente da República proíbe ministros e assessores de atender a qualquer pedido do governo paulista. Quem desobedecer à ordem, conversar e “fizer graça” com Doria está sujeito a “cartão vermelho”. Quão mais mesquinho pode ser o presidente?

Uma das obras em risco é a construção do Piscinão de Jaboticabal, que é fundamental para solucionar o problema das enchentes do Rio Tamanduateí e dos Ribeirões dos Couros e dos Meninos. Mas a angústia das famílias ribeirinhas, que sofrem ano após ano com as enchentes, é irrelevante para Bolsonaro diante de sua necessidade de impor um revés político para alguém que ele trata não como um governador de Estado que lhe faz oposição, e sim como um inimigo figadal. A obra está orçada em R$ 300 milhões e seria financiada pela Caixa, de acordo com o secretário estadual de Infraestrutura e Meio Ambiente, Marcos Penido. Mas, de uma hora para outra, a linha de crédito foi “congelada”. A fim de concluir a obra, o governo paulista vai buscar recursos no Tesouro do Estado.

A construção de uma ponte entre Santos e Guarujá é mais uma obra atrasada em função das disputas políticas entre o governo federal e o Estado de São Paulo. Não há desembolso de dinheiro público na obra, que será custeada pela concessionária Ecovias, mas a ponte precisa passar por uma área do Porto de Santos, que está sob responsabilidade federal. Sem a autorização do Palácio do Planalto, a obra não anda.

Por meio de nota, tanto a Caixa como o Ministério da Infraestrutura afirmaram que pautam a análise dos projetos “por critérios estritamente técnicos” e de maneira “isenta”. Espera-se que seja assim. Mas é no mínimo estranho que as obras que dependem do governo federal justamente no Estado governado pelo maior desafeto de Bolsonaro tenham um andamento tão acidentado.

A ira de Jair Bolsonaro contra João Doria aumentou significativamente após o início da vacinação contra a covid-19 em São Paulo, mas não é de hoje que o presidente atua para dificultar o avanço de projetos importantes para os paulistas e para os paulistanos.

Há muito tempo se negocia a devolução da área do Campo de Marte para a Prefeitura de São Paulo. Mas, no que depender de Jair Bolsonaro, o Campo de Marte pode até deixar de ser um aeroporto, mas não será reintegrado pelo Município. O presidente tem planos de instalar ali uma escola cívico-militar.

Em abril de 2019, Bolsonaro também firmou compromisso com o governo paulista para transferir a gestão da Ceagesp para o âmbito estadual. A ideia do governador João Doria é mudar o entreposto da Vila Leopoldina para outro local. Mas, no final do ano passado, o presidente renegou a própria assinatura e afirmou que nada muda na Ceagesp enquanto ele ocupar o cargo.

O presidente age contra os interesses dos brasileiros, os de São Paulo em particular.

Punição simbólica

Para que o impeachment de um presidente ganhe condições políticas para ser desencadeado, é preciso o povo nas ruas, como vários de nossos líderes têm apontado. Mas, se esta é uma condição necessária, não é suficiente por si só. No seu hoje já clássico estudo "Repensando o presidencialismo: contestações e quedas presidenciais na América do Sul", a professora Kathryn Hochstetler, hoje na London School of Economics (LSE) , aponta três razões para um presidente não terminar seu mandato na América do Sul: ausência de uma maioria parlamentar de apoio ao presidente; envolvimento pessoal do chefe de governo com escândalos de corrupção; e mobilização popular. 

Com a adesão do Centrão a seu governo, o presidente Bolsonaro está se blindando contra um eventual pedido de impeachment, e por isso também se empenha para ter na presidência da Câmara e do Senado políticos ligados a essa base parlamentar. Políticos de oposição que apoiam os candidatos do Palácio do Planalto, principalmente na Câmara, que é quem dá inicio ao processo, estão ajudando Bolsonaro nesse intuito. 

Estudo do Observatório do Legislativo Brasileiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) mostra que o índice de aprovação das iniciativas do governo no Congresso tem ficado em 72,5%, abaixo dos outros presidentes recentes nesse período de mandato, só superior ao índice da ex-presidente Dilma Rousseff, que era de 58,2% perto de seu impeachment. 

Essa adesão basicamente reflete a presença do Centrão, mas também um tipo de chantagem política. O Centrão sempre cobra mais. Agora mesmo pode fazer os presidentes da Câmara e do Senado, e vai controlar o processo legislativo. Esse controle vai exigir do governo uma negociação muito mais aprofundada. 

Seus líderes já estão querendo tirar os militares do Palácio do Planalto, nomear o Chefe do Gabinete Civil, hoje ocupado pelo General Braga Neto, o ministro responsável pela Secretaria de Governo, General Luis Eduardo Ramos, desmembrar o ministério da Economia para fazer outros, e cada vez mais, Bolsonaro vai ficar nas mãos deles. Quando o debate sobre impeachment aumenta, aumenta também a necessidade de apoio do Centrão e do futuro presidente da Câmara. 

Bolsonaro está entrando numa fase muito perigosa, porque, caindo a popularidade dele como está caindo, e ficando refém do Centrão, vai entregar todos os anéis até não conseguir mais. Se a economia, como tudo indica, for perdida novamente, a crise social vai se agravar. Não é à toa que os dois candidatos do governo, na Câmara e no Senado, estão defendendo a volta do auxílio emergencial.

É esse auxílio que fez a popularidade de Bolsonaro, e pode vir a servir novamente. Corremos o risco de uma crise social grande, o governo rompendo o teto de gastos, sem compromisso com o equilíbrio fiscal, para manter a popularidade. A sorte dele é que não há possibilidade de fazer grandes manifestações populares nas ruas, por causa da pandemia de Covid-19. Não há aglomerações populares, como um jogo de futebol, onde os torcedores xingavam Dilma - ele que tem mania de aparecer nos campos de futebol. Não há carnaval, momento em que as pessoas extravasam suas emoções - e certamente Bolsonaro seria o “grande homenageado”, porque a crise da vacina é brutal. 

Ele está caminhando para um 2021 muito difícil, e se a coisa se normalizar, em 2022, durante a campanha, corre o risco de ser impedido. Kathryn Hochstetler mostra que presidentes com minoria no Congresso são alvo mais comum de contestações. "De modo geral, os presidentes cujos partidos tinham minoria no Congresso apresentavam uma tendência maior tanto para serem contestados por atores civis, quanto para caírem”. 

Os protestos de rua “são decisivos nos estágios finais de um processo contra um presidente". A professora Kathryn Hochstetler diz que a os protestos de rua em larga escala, "clamando pela saída do presidente, convenceram os legisladores a se inclinarem a agir contra eles". Os protestos têm também a capacidade de "transferir antigos partidários do presidente para a oposição, mesmo contra seus colegas de partido".

Há, no entanto, uma nova visão do impeachment, que está em curso nos Estados Unidos, e já foi usado aqui contra o ex-presidente Michel Temer: uma punição simbólica, para impor desgaste político e limites aos acusados. Nenhum presidente sai fortalecido de um processo de impeachment. 

Dos que roubam e asfixiam

Não são só ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que vão se banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais, já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados; estes furtam e enforcam
Pe. Antonio Vieira, "Sermão do bom ladrão"

O canto de sereia do capitão

A um capitão excluído das Forças Armadas por indisciplina é talvez possível dispensar um entendimento exato do artigo 1º., parágrafo único, da Constituição brasileira de 1988, onde se lê: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

A hipótese da dispensa fica, porém, sem efeito caso o referido capitão, por circunstâncias diversas, seja alçado à condição de presidente da República. Daí a gravidade da declaração proferida na última segunda-feira pelo sr. Jair Bolsonaro, afirmando que a existência de um sistema político democrático depende das Forças Armadas, declaração não só estapafúrdia, mas também eivada de um mal disfarçado tom de ameaça. Corretíssima, portanto, a interpelação que lhe dirigiu o general da reserva Santos Cruz, que apontou o disparate presidencial e qualificou como “covarde” o matiz de ameaça nele contido. No modo mais protocolar que seu cargo exige, também o vice-presidente Hamilton Mourão, ao mesmo tempo que descartou o recurso ao impeachment, frisou que a conduta de Jair Bolsonaro ainda não representa um risco para a democracia, mas que os contrapesos institucionais deverão ser acionados, naturalmente, caso tal risco venha a se configurar.



Nenhuma pessoa de bom senso exige conhecimentos constitucionais especializados do presidente da República, mas, no plano da realidade, e dada a natureza política do cargo que exerce, é lícito esperar que ele perceba a infinita complexidade dos processos políticos e, em particular, das relações entre militares e sistemas políticos. Estas variam no espaço e no tempo, entre países e ao longo da História, podendo-se facilmente identificar situações em que as Forças Armadas respaldaram as instituições democráticas e situações em que fizeram o oposto, contribuindo para a sua derrubada. No Brasil, em 1937, elas fizeram vista grossa para o advento da ditadura getulista. Em 1945, com o retorno dos “pracinhas” que haviam ido à Itália combater o fascismo, o marechal Mascarenhas de Moraes foi a Getúlio e disse-lhe sem meias-palavras para sair e que sua sucessão se daria mediante eleições limpas e livres.

Sobre o golpe de 1964 penso que não há e nunca haverá consenso. Há quem opine que os militares derrubaram o governo João Goulart com o objetivo de implantar uma ditadura e quem afirme o contrário, entendendo que o fizeram como uma intervenção preventiva, de curto prazo, para prevenir a tomada do poder pela esquerda. Certo é que o ciclo militar durou 21 anos e mesmo nesse período, sem exceção, a sucessão presidencial suscitou sérias dificuldades entre os comandantes militares. Exceção, se assim a podemos chamar, foi a de 1985, quando as disputas eleitorais e a mobilização popular culminaram na eleição do civil Tancredo Neves no colégio eleitoral. (João Figueiredo, o último dos presidentes generais, recusou-se a passar a faixa a José Sarney, vice de Tancredo Neves, mas esse é um detalhe já perdido na História.)

Nossos exemplos caseiros são minúsculos no cotejo com as catástrofes e os sofrimentos que se deram no século 20 como consequência das relações entre o poder político, de um lado, e forças militares e paramilitares, de outro. Desse ponto de vista, nada se compara ao advento dos regimes totalitários na Europa e na Ásia (Alemanha, URSS e China, principalmente).

Sobre o caso alemão permito-me reproduzir aqui o registro que fiz em meu livro Tribunos, Profetas e Sacerdotes, págs. 96-97: “No dia 02 de agosto de 1934, uma hora após a confirmação da morte do presidente Von Hindenburg, (Hitler) manda anunciar a fusão dos cargos de presidente da República e primeiro-ministro, que daquele momento em diante se concentrariam em suas mãos. No mesmo dia, os líderes das Forças Armadas e toda a oficialidade do Exército são convocados a jurar lealdade ao novo comandante em chefe. A forma do juramento era significativa: o Exército fora convocado para jurar fidelidade não à Constituição, não à Pátria, mas à pessoa física de líder: ‘Faço perante Deus este juramento sagrado: serei incondicionalmente obediente ao Führer do Reich e do povo alemão, Adolph Hitler, comandante supremo das Forças Armadas, e estarei pronto, em qualquer momento, como um bravo soldado, para hipotecar minha vida, nos termos deste juramento’”.

O que se passou nos anos seguintes não requer elaboração. O extermínio de milhões de judeus e de cidadãos de outras minorias é fato sobejamente conhecido. O que em geral não se sublinha na extensão necessária é o destino daqueles que hipotecaram a vida ao Führer. Ao fim da guerra, só na União Soviética cerca de 3 milhões de alemães se encontravam detidos como prisioneiros de guerra, sobrevivendo em condições atrozes até 1947.

Seria, pois, de toda a conveniência que o presidente Jair Bolsonaro falasse menos, ou falasse com mais responsabilidade, ou recorresse a assessores que lhe preparassem especulações mais adequadas.

Risco às Forças Armadas

Em texto publicado na revista “Época”, no dia 17 de janeiro, o jornalista Luiz Fernando Vianna fez uma dura crítica à participação do Exército brasileiro no governo Bolsonaro. Embora seja excessivo e desproporcional dizer que o “Exército volta a matar brasileiros”, é certo que a inépcia do governo em lidar com a pandemia da Covid-19, particularmente após o morticínio de Manaus, tende a atingir o prestígio das Forças Armadas. A presença ostensiva de militares no governo vem levando a corporação a ficar quase tão maculada quanto no período da ditadura militar. Ao final da gestão Bolsonaro, será difícil reconstruir a imagem das Forças Armadas que os militares palacianos estão ajudando a destruir. Quanto mais Bolsonaro associa as Forças Armadas ao governo, mais asfixia a idoneidade conquistada junto à população.



Os militares já deveriam ter desembarcado do governo há muito tempo. Aliás, jamais deveriam ter embarcado num governo de um presidente autocrático, que não tem nenhum projeto para o país, a não ser o favorecimento dos seus interesses pessoais e os de sua família. Bolsonaro é tudo, menos nacionalista. Nacionalista é o presidente da Índia, Ram Nath Kovind, que deu uma duríssima lição ao governo brasileiro, negando, num primeiro momento, os dois milhões de doses da vacina Oxford/AstraZaneca que Bolsonaro buscou adquirir enquanto desprezava a eficácia da CoronaVac, chamando-a de “vacina chinesa do Doria” e afirmando que seus usuários iriam “virar jacaré”.

O presidente do Brasil e os militares brasileiros no governo são corresponsáveis pela tragédia sanitária do país, agravada pela cloroquinazação da saúde pública. Uma vez que se entra na política, não dá para tirar o corpo fora. A conta sempre chega! Hoje, infelizmente, é cada vez mais difícil desvincular a imagem das Forças Armadas dos militares que integram o governo. Querendo ou não, particularmente quando estão na ativa, eles carregam a imagem da instituição, pondo em risco o legado refeito após a redemocratização.

As Forças Armadas são o último recurso da soberania nacional. A participação maciça de militares no Executivo federal, onde existem mais de seis mil membros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, da ativa e reserva, faz com que as Forças Armadas deixem de ser vistas como uma instituição de Estado e passem a ser associadas ao governo. Neste caso, um governo capitaneado por um presidente visivelmente contrário à democracia, à ciência e à vida.

A corporação militar possivelmente não sairá incólume da gestão Bolsonaro. Os militares fizeram um cálculo político errado. Era previsível que sua participação no governo resultaria no comprometimento de sua idoneidade. Ao contrário do que vemos nos Estados Unidos, onde o comando militar se opôs às tentativas autogolpistas de Trump e seus asseclas, no Brasil as Forças Armadas perdem oxigênio. Em que pese a opinião contrária de muitos de seus membros, como é caso do comandante do Exército, Edson Pujol, quanto mais Bolsonaro asfixia a caserna, retirando seu oxigênio, mais as Forças Armadas correm o risco de entrar para a história como uma instituição que participou de um governo desastroso, considerado por muitos um dos piores do país.
 Pedro Castelo Branco / Lier Pires Ferreira