quarta-feira, 16 de julho de 2025

A entrada de Trump na campanha eleitoral

Numa cena memorável de “Wall Street – Poder e Glória” (1987), de Oliver Stone, o especulador inescrupuloso Gordon Gekko, interpretado por Michael Douglas, explica a seu pupilo bestificado as regras do jogo em que sempre vence: “O 1% mais rico possui metade da riqueza do país, cinco trilhões de dólares. Noventa por cento dos americanos lá fora possuem pouco ou nenhum patrimônio líquido. [...] Eu não crio nada. Eu sou o proprietário. Nós é que fazemos os regulamentos; nós tiramos o coelho da cartola enquanto todo o mundo se pergunta como é que a gente consegue. Mas você não é inocente a ponto de achar que vivemos numa democracia, né, Buddy? É o livre mercado. E você faz parte dele.”

Quando o filme – uma crítica de Stone, filho de um corretor da bolsa de valores, a esse universo amoral e parasitário – foi lançado, Donald John Trump contava 41 anos de idade e comandava o império imobiliário de sua família, com foco em projetos extravagantes de arranha-céus, hotéis e cassinos (aproveitando o crescimento de uma bolha que não tardaria a estourar), e aperfeiçoava o dom de usar a seu favor as facilidades de um sistema financeiro e uma ordem jurídica moldados para beneficiar o homem branco endinheirado. Embevecidos, os meios de comunicação exaltavam o seu “toque de Midas”.

Havendo iniciado sua trajetória na década anterior, Trump estava habituado aos usos e costumes da máfia nova-iorquina, especialmente os capi do setor de construção, como Paul Castellano (chefe da família Gambino) e Anthony “Fat Tony” Salerno (capo do clã Genovese). Além disso, o estrambótico businessmanalardeava seu flerte com a carreira política por meio de entrevistas e anúncios pagos na imprensa, e lançava, com êxito, The Art of the Deal, o primeiro dos livros que assinou, testemunho de seu apreço pela automistificação, pela hipérbole como recurso retórico e pela mentira como ferramenta de trabalho.


A interessante série “Trump – Um sonho americano” (Netflix), conta boa parte dessa história, mostrando características do personagem como a megalomania, a misoginia e o uso instrumental da chantagem e da intimidação, bem como seu narcisismo patológico (registra-se, por exemplo, que ele teria pronunciado um discurso ególatra e triunfalista no enterro do próprio pai). Singularidades à parte, já no título a série deixa claro: Trump é tão americano quanto a torta de maçã.

Talvez esta seja uma pista para interpretarmos a apatia de universidades estadunidenses (a prestigiada Columbia é um exemplo conspícuo), grupos de comunicação, escritórios de advocacia etc. diante dos ataques frontais de Donald, agora presidente reeleito em um pleito consagrador, aos institutos da chamada democracia liberal – como, por exemplo, a liberdade de expressão. Jodi Dean (“Cowardice Is Constagious Too”) observa que esses institutos eram e são falhos, ficando muitas vezes aquém da retórica que os embala e dos ideais que os sustentam... mas agora esses ideais estão sendo simplesmente demolidos. E a reação tem sido tímida.

É como se Trump, com sua linha política centrada na crueldade e no uso da extorsão como prática cotidiana, própria dos chefes mafiosos, retirasse um manto de hipocrisia de sobre um modelo de democracia que de democrático sempre teve muito pouco (como bem sabem os Gordons Gekkos da ficção e do mundo real), ou mostrasse que os pilares do edifício estão comidos por cupim. Por isso, a pensadora socialista evita a armadilha de defender o retorno ao statu quo ante: para ela, a luta contra o extremismo de direita epitomizado pelo magnata não nos deve levar ao resgate de instituições carcomidas, mas à busca de algo melhor: uma nova economia centrada na satisfação de necessidades humanas (e não na geração de lucro), e em “relações sociais de igualdade e respeito mútuo”.

Num ensaio de 2018, "The Cruelty Is the Point", o jornalista Adam Serwer argumentava que o apelo de Trump junto a uma parcela expressiva do eleitorado não se resumia a queixas de ordem econômica ou "incorreção política", mas envolvia, ainda, a crueldade compartilhada como mecanismo de união. Seus apoiadores teriam encontrado solidariedade, um chão comum, no ato coletivo de menosprezar os outros – seja rindo das vítimas do furacão em Porto Rico, zombando das mulheres do movimento #MeToo ou ridicularizando pessoas com deficiência. Essa dinâmica, que não nos é estranha, estaria historicamente enraizada, segundo o escriba, na violência racial dos EUA, onde o espetáculo público da crueldade, como os linchamentos de homens negros, foi um aglutinador para algumas comunidades (“As árvores do sul dão uma fruta estranha / Sangue nas folhas e sangue na raiz”, canta Billie Holiday, maravilhosamente, em “Strange Fruit”).

No segundo mandato, como temos visto, a natureza e a intensidade da crueldade evoluíram (e talvez não haja melhor exemplo disso que a grotesca caça a imigrantes por milícias de encapuzados, sobre a qual a “comunidade internacional” tem guardado um silêncio cúmplice): não se trata mais, apenas, de estabelecer laços por meio da humilhação grupal, mas de produzir instabilidade generalizada como estratégia de governança.

Há também um outro fenômeno que permite vislumbrar onde entramos nós nessa história, que é o inegável declínio do império americano: os EUA seguem sendo a principal potência militar, financeira e cultural do mundo, mas sua influência relativa está diminuindo, sobretudo na economia e na diplomacia, enquanto seu maior rival decola. A China (principal parceiro comercial de mais de 130 países, Brasil incluído) produz hoje 30% dos bens manufaturados do mundo (os EUA, 16%) e já ultrapassou a terra do Tio Sam em produção científica, ao mesmo tempo em que forma novas alianças (como o BRICS) que desafiam a liderança global dos EUA e contribuem para a redução da influência de sua moeda: em 2001, o dólar estadunidense representava 72% das reservas cambiais globais; em 2023, esse percentual caíra para 58%.

Trump é, também, uma reação a esse declínio, que sinaliza um reordenamento global.

E isto nos leva, por fim, à carta endereçada a Lula que o mandatário estadunidense, em vez de encaminhar pelos meios adequados, divulgou nas redes sociais na semana passada. Coincidentemente ou não, a mensagem veio a lume no último dia 09/07, quando se encerrava a cúpula do BRICS no Rio de Janeiro, evento em que o Brasil estendera o tapete vermelho a Narendra Modi, líder de uma Índia que é hoje o país mais populoso do mundo, com cerca de 1,450 bilhão de habitantes, PIB de U$ 3,4 trilhões e projeção de crescimento de 6,5% para 2024-2025 (mantendo, assim, um ritmo robusto de expansão, ainda que mais moderado que no biênio anterior).

Com ofensas à gramática, redundâncias e emprego de uma retórica mais afeita a campanha política e propaganda comercial que a instrumentos diplomáticos, inclusive fazendo uso de uma agressividade inadmissível, o petardo de Trump, como já se comentou, parte de um ataque às instituições brasileiras pelos infortúnios do golpista Jair Bolsonaro, e afinal se queixa de um superávit comercial do Brasil em relação aos EUA – algo que não ocorre há mais de 15 anos.

A ameaça do capo – aplicar um tarifaço de 50% a todas as exportações brasileiras para os EUA – decerto pode gerar prejuízos para os nossos setores de manufaturados, agroindústria, petróleo e derivados (entre outros), resultando em desemprego; mas pode também elevar os custos de setores industriais estadunidenses que hoje carecem de insumos brasileiros (como aço, alumínio, celulose), gerando pressão doméstica, e contribuir para estreitar os laços entre Brasília e Beijing.

Extasiado com o próprio umbigo, Donald esquece que tudo tem, ao menos, dois lados.

O fiasco do rugido presidencial, neste caso, se assemelharia ao do cassino Taj Mahal, um de seus muitos empreendimentos fracassados – o qual, afundado em dívidas, entrou em falência apenas um ano após ser inaugurado com pompa e circunstância (patrimônio da humanidade, o magnífico Taj Mahal indiano subiste há quase 4 séculos).

Um dado curioso: investido no papel de bully global, Trump enviara, dois dias antes, cartas idênticas entre si (e quase idênticas à que endereçaria a Lula) aos líderes de Coreia do Sul, Lee Jae-myung, e Japão, Ishiba Shigeru. Também atravessadas por erros gramaticais e problemas de estilo, as cartas padronizadas ostentam um tom autocongratulatório descabido, passam ao largo do que se conhece como diplomacia e ignoram o modo como negociações comerciais se dão entre nações soberanas: ao lado da ameaça de elevação de “Tariffs” (assim mesmo, com maiúscula), o magnata convida os contrapartes a “participar da extraordinária economia dos Estados Unidos”.

Prato cheio para estudos nas áreas de linguística, psicanálise e, claro, relações internacionais.

Reforçando o mergulho no bizarro, e a impressão de que o país de Abraham Lincoln não está sendo governado por um adulto funcional, os perfis da Casa Branca e do próprio Trump no ex-Twitter exibiram, dias depois, uma imagem do presidente retratado como Superman. É, sem dúvida, desafiador interpretar essa avalanche semiótica. Por onde começar? Para o filósofo italiano Franco Berardi, "Trump é a erupção psicótica do inconsciente branco senil; ele é a forma política monstruosa na qual se manifesta a inumerável multidão de fantasmas que assombram a memória e a autopercepção desse povo infeliz".

A carta ao presidente Lula provocou reações diversas no Brasil, por exemplo: os presidentes da Câmara e do Senado exibiram, juntos, a covardia que deles se espera, o jornalão dos Mesquita teve um arroubo nacionalista inusitado e um diplomata de pijama sentenciou, sabujíssimo, que “o assunto é técnico; politizá-lo é um erro”. Como se habitasse um universo paralelo, o presidenciável governador de SP (que dia desses posou para fotografia exibindo um boné com o lema “Make America Great Again”) saiu-se com esta: “Lula colocou sua ideologia acima da economia, e esse é o resultado.” As redes sociais foram inundadas por expressões de repúdio à agressão norte-americana (com direito a um hilário vampetaço), e uma manifestação em defesa da soberania nacional convocada pelas frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular, além de sindicatos, levou mais de 15 mil pessoas à Avenida Paulista.

Registre-se, para os anais da indignidade de um Congresso que mais e mais se rebaixa: horas após a diatribe de Trump ganhar as manchetes, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, comandada pelo partido do ex-capitão, aprovou uma “moção de louvor” ao mandatário estadunidense. Sem medo ou pejo do ridículo, o proponente da coisa (um deputado fluminense ligado a Silas Malafaia), se permitiu justificar a homenagem "pelo brilhante trabalho desenvolvido por ele como presidente da maior nação e pela incansável luta em defesa da democracia e da liberdade de expressão em todo o planeta". Uma pérola da vassalagem.

Há quem diga que, na semana que passou, a corrida presidencial de 2026 começou para valer. É possível. Seja como for, o governo Lula finalmente demonstrou acerto na estratégia comunicacional, reagindo com firmeza à agressão, e mostrando que a paralisia pelo medo não funcionará por aqui. O ataque de Trump, pondo a nu o caráter conspiratório, antinacional, de Bolsonaro e sua gangue (que já fornece condições para a prisão cautelar), também os expõe a conflitos com sua própria base; além disso, permite a Lula sair da defensiva e dar passos na direção da frente amplíssima com que sonha a socialdemocracia.

O caminho pelo centro, contudo, tende a ser tortuoso, difícil, como são os ensaios de conciliação de classes neste país moldado pela desigualdade abissal, e dominado por uma elite avessa a compromissos. Vejamos, para refrescar a memória, o que dizia o Valor Online em 21/09/2018, em matéria sobre a queda do dólar, que vinha em trajetória de alta: "O alívio no mercado brasileiro se dá pela leitura de que Jair Bolsonaro se firma como o candidato forte para o 2º turno da eleição presidencial. Por mais que não seja o candidato ideal para parte dos profissionais de mercado, o presidenciável é apontado como o principal ponto de resistência contra a volta de governos à esquerda."

Nossos Gordons Gekkos – grandes e pequenos – topam tudo, tudo mesmo, para deter qualquer ameaça de redução da desigualdade social, isto é, para evitar a substituição disso que aí está pelo “something better” que, como aponta a camarada Jodi Dean, é algo que podemos conquistar.

O amor de Bolsonaro por Trump não é correspondido

“Fiz isso porque eu posso fazer”, disse, ontem à tarde, nos jardins da Casa Branca, o presidente Donald Trump. Foi em resposta à pergunta de uma jornalista sobre o tarifaço de 50% aplicado por ele à importação de produtos brasileiros. Trump acrescentou: “Quero dinheiro entrando no país [Estados Unidos]”.

Lembrou-me uma frase atribuída ao ex-presidente Bill Clinton a propósito do seu caso com uma estagiária da Casa Branca na década de 1990. O escândalo veio à tona durante uma investigação sobre as finanças de Clinton e seu envolvimento em muitos episódios de má conduta sexual. Por pouco ele não caiu.

Clinton nunca disse a frase “Fiz porque podia”. Mas ela reflete a percepção de que Clinton, devido ao seu poder e posição, sentia-se impune. Ele tentou encobrir o caso e mentiu ao Congresso sob juramento. A Câmara dos Representantes abriu um processo de impeachment contra ele. O Senado o absolveu.

A razão oculta do tarifaço de Trump é sua insatisfação com a política externa do governo Lula que aproxima cada vez mais o Brasil da China. Mas a declarada foi o julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal de Bolsonaro e dos demais acusados pelas tentativas de golpe em dezembro de 2022 e janeiro de 2023.



Trump não morre de amores por Bolsonaro. Nem mesmo se considera seu amigo. Usa-o, como faz com qualquer outra pessoa, como peça a ser movida para lhe garantir melhor posição no tabuleiro de xadrez interno ou externo. O rei é Trump que não pode ser encurralado. Bolsonaro não passa de um mero peão.

O contrário é verdade: Bolsonaro ama Trump e o espelha. Não reconheceu a derrota para Lula como Trump não reconheceu a sua para Joe Biden. Se no começo da pandemia da Civid-19, Trump simplesmente a ignorou, Bolsonaro também. O Capitólio foi invadido por trumpistas. O Congresso, aqui, por bolsonaristas.

Em entrevistas à CNN Brasil e ao Poder 360, Bolsonaro confessou, referindo-se a Trump:

“Ele é imprevisível. Eu gosto dele, eu sou apaixonado por ele. Sou apaixonado pelo povo americano, pela política americana, pelo país que é os Estados Unidos, nunca neguei isso desde meus tempos de garoto. […] Ele me tratava, me trata como irmão, e ele botou naquela carta [a Lula], na primeira linha, meu nome.”

Foi de Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, a ideia de despachar Bolsonaro para os Estados Unidos com a missão de pedir a Trump um abatimento no tarifaço de 50%. Ninguém a levou em conta, pois Bolsonaro está proibido de deixar o país. Vai que ele foge. Bolsonaro, contudo, comprou a ideia:

“Se continuar o Brasil avançando rumo à esquerda, Lula falando besteira o tempo todo, essa taxa de 50% que pode ser diminuída, acho que tenho poder de resolver esse assunto. Parte dele, mas tenho que ter liberdade para conversar com Trump. No momento, nem passaporte eu tenho”.

Bolsonaro estrebucha na maca. Tarcísio muda de assunto. E Lula comemora a mudança de direção do vento. Ele passou a soprar a seu favor.

Preservar o humano em meio à ruína

Vivemos um sofrimento coletivo que atravessa fronteiras e chega até nós como ondas incessantes. Guerras, deslocamentos forçados, desastres ambientais e epidemias invadem diariamente nossas casas através das telas, tornando-se parte da paisagem cotidiana.

Essa exposição constante a imagens e relatos de sofrimento global tem produzido efeitos emocionais contraditórios, mas igualmente alarmantes: de um lado, o esgotamento emocional de quem sente demais; de outro, a anestesia afetiva de quem, por defesa, já não sente mais nada. Ambas as reações — a fadiga por compaixão e a dessensibilização — são respostas humanas compreensíveis diante do excesso de dor, mas revelam o quanto estamos despreparados para lidar de forma ética e saudável com o sofrimento do outro.

É claro que a intensidade desse impacto varia: quem tem familiares ou amigos em regiões em guerra sente a angústia de forma ainda mais profunda. A isso damos o nome de interseccionalidade — são as conexões afetivas, identitárias e sociais que nos aproximam de determinados tipos de sofrimento. No entanto, mesmo quem está geograficamente distante não passa incólume. A dor coletiva chega até nós como seres humanos por meio das notícias, das redes sociais e das vozes — muitas vezes jovens — que, ao vivo, narram seus horrores e cravam essas histórias em nossos corações.

São notícias que nos desalojam da esperança e nos lançam no desespero, deixando-nos diante de uma pergunta angustiante: qual é o impacto psíquico de viver sob a constante sensação de opressão, com a impressão de que a humanidade chegou a um beco sem saída? Como isso repercute em nossa vida íntima, nos nossos sentimentos mais profundos?

Quando projetamos o futuro, não o concebemos como um cenário de destruição. Nossos sonhos não incluem a guerra interrompendo nossas vidas. Quando o medo da guerra invade nossos pensamentos, é porque, de algum modo, já estamos vivendo dentro de uma realidade trágica.

A inclinação humana é a de construir, realizar e buscar sentido. Mas viver em sociedade e dentro de uma cultura muitas vezes nos distancia dessa escuta interior, abafando a voz que nos orienta e dá propósito à nossa existência.

A guerra é a negação radical da vida em plenitude. Ela reduz a existência à luta pelo mínimo: o direito de sobreviver. Povos indígenas, negros, LGBTQIAPN+, pessoas em situação de rua e tantos outros grupos no Brasil enfrentam há séculos guerras não declaradas, lutando não por privilégios, mas pelo direito básico de existir em paz e expressar plenamente sua potência, e não apenas sobreviver.

No Brasil, essas interseccionalidades moldam também a forma como cada pessoa é atingida pelas guerras externas. Quem já vive a guerra cotidiana de um país que se diz cordial, mas que promove desigualdades e violências estruturais, carrega uma alma exausta. Para essas pessoas, cada nova guerra no mundo é um peso adicional sobre um corpo já sobrecarregado de lutas diárias. 

Por isso, a guerra nos afeta sempre, embora de maneiras diferentes para cada um. Ela nos mostra, dolorosamente, que a humanidade é capaz de criar eventos que roubam sonhos, destroem comunidades inteiras e produzem lutos intermináveis que atravessam gerações.

A fadiga emocional e a indiferença são, assim, dois extremos de um mesmo dilema: uma queima por empatia que esgota e uma defesa que congela. Ambas evidenciam a dificuldade de sustentar a compaixão em um mundo saturado de dor.

Talvez a pergunta mais urgente de nosso tempo não seja apenas como salvar o planeta, curar os feridos ou alimentar os que têm fome, mas como permanecer humanos diante do inumano. Como seguir sentindo, mesmo que um pouco menos, sem se tornar indiferente. Como cuidar sem adoecer, acolher sem colapsar.

Viver em tempos de guerra é admitir que somos capazes não só de construir, mas também de destruir aquilo que deveríamos viver como plenitude. Essa consciência amarga o coração e gera uma incredulidade difícil de suportar. É duro aceitar que sejamos capazes de provocar tamanha dor e morte.

Por isso, precisamos estar atentos: quanto mais nos inundamos de notícias de guerra — em sua crueza e brutalidade —, menor se torna nossa capacidade de imaginar futuros possíveis. A vida vai se reduzindo ao presente imediato da destruição.

Não podemos sentir tudo o tempo todo, mas tampouco podemos deixar de sentir por completo. O desafio da nossa época talvez seja este: seguir humanos, mesmo diante do inumano. E isso exige cuidado: porque sentir, hoje, demanda estrutura. A compaixão não se improvisa; ela precisa ser cultivada, sustentada e protegida contra a exaustão e contra o esquecimento.

Diante de situações opressoras, os seres humanos podem reagir de diferentes formas: resignando-se, isolando-se, alienando-se, sentindo-se impotentes ou escolhendo resistir. O alerta da psiquiatra palestina Dra. Samah Jabr, em seu livro "Sumud em tempos de genocídio", nos lembra que a pior dessas respostas é a paralisia da impotência — um colapso que ameaça destruir o que há de mais vital em nós.

É claro que não conseguimos sentir plenamente o tempo todo. Ninguém suporta a dor do mundo de forma contínua. Mas tampouco podemos nos anestesiar ou nos afastar completamente do sofrimento alheio. O desafio ético e emocional do nosso tempo talvez seja justamente esse: manter-se humano diante do inumano. E isso exige cuidado e preparo. Sentir, hoje, não é um gesto espontâneo: requer força interior, sustentação emocional e disposição para não ceder à exaustão. A compaixão não acontece por acaso — ela precisa ser cultivada, alimentada, protegida do cansaço e do esquecimento e, sobretudo, conduzida para a ação.

Por isso, o conceito palestino de Sumud me toca profundamente. Ele não nega a dor. Aqueles que o praticam também estão feridos, também sentem o peso da violência. Mas se recusam a deixar que a dor os reduza à impotência. Sumud é, essencialmente, a preservação de um núcleo saudável dentro de si, uma resistência íntima que continua a nutrir a vida, mesmo em meio à destruição e à agonia. É a recusa em deixar que o sofrimento tenha a última palavra.

Nada mais ridículo do que ser vira-lata em 2025

"Povo brasileiro, vamos fazer o mundo ouvir a nossa voz. Coloque o seu agradecimento ao presidente Donald Trump abaixo." Essa mensagem foi escrita pelo deputado Eduardo Bolsonaro em suas redes sociais pouco tempo depois de o presidente americano anunciar, por meio de uma carta absurda, que taxaria o Brasil em 50% se, entre outras coisas, o país não livrasse o pai dele, o ex-presidente Jair Bolsonaro, de um processo por tentativa de golpe que pode levá-lo para a cadeia.

Eduardo se mudou para os Estados Unidos em março, dizendo-se vítima de uma perseguição, e passou a fazer lobby junto ao governo americano para livrar seu pai da Justiça. Dá para entender que ele tenha ficado agradecido. Afinal, era isso o que ele queria: tentar livrar o pai "custe o que custar". Difícil é entender como pode haver brasileiro comum que foi lá e fez o que Eduardo pediu. "Thank you, Mr. president, make Brazil free again" (Obrigado, senhor presidente, torne o Brasil livre de novo), respondeu um usuário. Outros preferiram agradecer e, ao mesmo tempo, pedir um green card. Sério.


Qual o grau de complexo de vira-lata de uma pessoa que agradece a um presidente por cobrar uma taxa absurda contra seu país, que pode causar graves problemas econômicos e desemprego? Nesse caso, a viralatice é tão grande que ela está mais para síndrome de Estocolmo, aquele comportamento de quem se apaixona por seu sequestrador.

Esse sentimento de inferioridade é nosso conhecido. E uma prova disso é o fato de termos até essa expressão para explicar o sentimento: o famoso complexo de vira-lata. Basicamente, isso significa se achar pior que os outros, principalmente se o "outro" for da Europa e/ou dos Estados Unidos. Também achamos nosso país pior. Um dos mitos de quem sofre desse mal é achar, por exemplo, que o Brasil é o único país do mundo onde existe corrupção. Não é.

O complexo de vira-lata faz também com que alguns brasileiros se achem superiores a seus compatriotas por serem descendentes de europeus. "Na minha casa nós falamos alto porque somos italianos" – já ouvi isso mais de uma vez de brasileiros que moravam em São Paulo e tinham um bisavô que nasceu na Itália.

Muitas vezes, esses brasileiros descendentes de europeus se sentem mais "enraizados" e "seguidores das tradições" do que os próprios cidadãos que moram a vida toda no país de origem de seus bisavós.

Um exemplo desse tipo de viralatismo viralizou essa semana. Em um vídeo publicado no Instagram, um casal de "influenciadores" catarinenses lista características que uma pessoa deve ter para morar em Santa Catarina. Entre elas está "ser de direita" e "gostar de trabalhar de verdade". Em certo momento, eles explicam que "são descendentes de europeus", como se isso os fizesse mais especiais que outros brasileiros.

Para ilustrar esse momento, e mostrar como eles seguem as "tradições alemãs", eles exibem um "traje típico" da Alemanha, o "Tracht". Um aviso: moro em Berlim há dez anos e nunca vi alguém usando uma roupa dessas. Pelo que sei, as pessoas usam na Oktoberfest, na Baviera, e só. Sair assim em um dia comum seria o mesmo que um brasileiro vestir uma fantasia de Carnaval em julho para "mostrar que é apegado às tradições brasileiras".

Estamos em 2025 e esse complexo de vira-lata ainda existe. Mas, mesmo assim, tenho esperanças. Acredito que, nesse momento, a maioria dos brasileiros está indignada com tamanho desrespeito à integridade do Brasil (e isso independe da preferência política). Muitos dizem, com razão, que a carta de Trump uniu o Brasil. Que ela nos ajude também a nos livrar, de uma vez por todas, do viralatismo.