domingo, 1 de setembro de 2024

Pensamento do Dia

 


As plataformas para o inferno

Em todo o lado e por diversos meios – livros, jornais, revistas, documentários, ficções narrativas e, como não podia deixar de ser, no médium de todos os media, a rede das redes digitais, a Internet – circula um discurso que se dedica, com a ajuda de muita psicologia e sociologia, ao diagnóstico de uma doença, de uma epidemia como nunca houve outra na história da humanidade, adotando muitas vezes um tom apocalíptico que tem sempre o dom do fascínio: o discurso sobre os malefícios da rede, das plataformas, de tudo o que elas oferecem e suscitam sem ser preciso mais do que um telefone inteligente munido de um ecrã, um smartphone, que do ponto de vista de uma arqueologia dos media (atenção: não é o mesmo que uma história) é um condensado de computador, telégrafo, ecrã de televisão, aparelho de rádio, câmara fotográfica, gravador de som, calculadora e muitas outras coisas.


Distúrbios mentais (especialmente da atenção), dependência que pode atingir o grau de uma autêntica escravatura sem que o escravizado se dê conta, ansiedade, depressão, anorexia, esquizofrenia, suicídio, declínio do desejo sexual pelo corpo não virtual de outrem, episódios de histeria colectiva (leia-se, por exemplo, no jornal inglês The Guardian a história emocionante de uma jovem youtuber que suscitou uma reacção histérica e paranóica dos seus muitos milhares de fãs), difusão em larga escala de notícias falsas que incitam a passagem ao acto de multidões alienadas, aumento da polarização política e ideológica: a lista das “doenças” sociais e individuais diagnosticadas é extensa e tão diversa quanto as funções do computador e do smartphone. O medo de ficar sem acesso ao celular, de ficar “desconectado”, como se diz hoje, já engendrou um neologismo, em inglês, para designar esse estado de privação: nomophobia, isto é, no mobile phone phobia. Um documentário americano realizado por Jeff Orlowski, The Social Dilemma, elevou o grau da ameaça até este nível: “É um xeque mate à humanidade.” Nem o mais moderado destes diagnósticos fica aquém de uma transformação antropológica na evolução da humanidade.

Esta nova condição civilizacional gerou um paradoxo: a hiperprotecção das crianças e jovens (pelos pais e pelas medidas biopolíticas dos governos), que lhes retira as prerrogativas da socialização e da autonomia, vai a par da complacência e alguma inconsciência perante os perigos a que eles estão expostos quando se isolam no quarto com o smartphone ou o computador. Há pouco tempo, a apresentadora de uma televisão britânica, Kristie Alsopp, foi ameaçada pelos serviços sociais de perder a custódia do filho de 15 anos por ter permitido que ele fizesse uma viagem de Interrail, pela Europa (ela própria tinha divulgado no Facebook a sua decisão). Em seu auxílio, chegou o parecer de Jonathan Haidt, o psicólogo social da Universidade de Nova Iorque, autor de um livro já traduzido em Portugal, A Geração Ansiosa, que veio lembrar que um jovem munido de um smartphone corre riscos muito maiores em casa do que ao viajar por Paris, Berlim, Munique, etc.

Esta visão de um desastre em curso e de uma doença planetária induzida e sem remédio (tão irremediável como o pecado original: o computador não é um simples utensílio, é uma versão do Deus Ordinator da teologia medieval) torna bastante surpreendente a notícia de que em França, ao aterrar no seu jacto privado, foi detido o patrão da uma grande plataforma social chamada Telegram, o russo Pavel Durov, acusado de promover a fraude, o tráfico de droga, o terrorismo e o cyberbullying. Em suma: nada de que as empresas tentaculares do capitalismo digital, geralmente designadas pelo acrónimo GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft), estejam isentas, sem contarmos com os malefícios maiores de difusão de patologias que levam um entrevistado do referido documentário a esta sucinta conclusão: “Estamos tramados.”

É fácil aderir a este discurso apocalíptico, sempre rentável e de fácil recepção. Ele produz diagnósticos verossímeis, à luz da nossa experiência atual, nos seus aspectos essenciais. Mas é preciso confrontá-los com outras análises e estudos mais complexos, perante os quais eles se revelam marcados por alguma simplificação ou até pela demagogia. Uma arqueologia do nosso futuro introduz aqui alguma complexidade em falta e que deverá, por exemplo, levar a questões como esta: devemos acreditar na eficácia da proibição do uso dos smartphones na sala de aula? Não será o mesmo que querer restituir a virgindade a quem a perdeu?

Pequena fábula

“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.” — “Você só precisa mudar de direção”, disse o gato e devorou-o.

Franz Kafka

Alegria contra a raiva

Uma consequência profunda, embora pouco assinalada, da vaga populista dos últimos anos é a contínua e persistente degradação do debate público, cada vez mais reduzido a trocas de acusações. Ainda por cima, quando estas são formuladas, quase sempre, através de um vocabulário direto e sem outra preocupação que não seja a de fazer despertar emoções básicas, que conduzam à repulsa do adversário ou à adesão irracional àquilo que se transmite. O resultado está à vista: todo e qualquer acontecimento ou assunto é depressa transformado num motivo de indignação e qualquer caso menos esclarecido é imediatamente alcandorado à categoria de escândalo. Nessa voragem, em que se repetem acusações e indignações sempre pontuadas por uma profusão de pontos de exclamação, é fácil perder a noção da realidade e lançar a confusão sobre o peso e a função específica de cada palavra.


Perante a nossa apatia e sem sequer nos incomodarmos verdadeiramente, enquanto comunidade, tudo passou a ser uma “vergonha” e qualquer motivo é suficiente para alguém decretar que estamos perante uma “invasão” ou prestes a entrar em “guerra”. Sabemos que essa escalada é potenciada pelas redes sociais, com os seus algoritmos ensinados a identificar e a exponenciar as polémicas mais ruidosas e que melhor alimentam o negócio das partilhas e visualizações. Mas o problema é que esta pulsão não se manifesta apenas no mundo virtual, em que todos podem debitar a sua opinião e são, em simultâneo, também alvos fáceis para os exércitos profissionais de bots e para as milícias de vigilantes que se aglomeram na net, sempre prontas a arrasar quem as contraria ou pensa de maneira diferente. Este clima permanente de confronto, de polarização e da mais absoluta ausência de tolerância está hoje presente em todo o lado. Tornou-se norma. E, aos poucos, vai contaminando todo e qualquer debate, como se as discussões acaloradas entre apoiantes de clubes rivais de futebol fossem a matriz que, para captar atenções, tem de ser usada em qualquer assunto, independentemente da sua importância.

Embora esta realidade seja hoje observável em qualquer parte do mundo, ela é particularmente visível, devido à força e à influência mediática, no atual ambiente político dos Estados Unidos da América: um país profundamente dividido em dois blocos, já sem qualquer ponto de contacto entre eles, que parece caminhar para algo muito próximo de uma guerra civil. E o mais impressionante é a velocidade com que tudo se processou, perante a passividade e a contribuição dos dois lados.

Na convenção do Partido Democrático de 2012, para a reeleição de Barack Obama, o ex-Presidente Bill Clinton foi, num discurso histórico, um dos primeiros a alertar para o que estava, então, a iniciar-se, com a radicalização da ala mais conservadora do Partido Republicano. E fê-lo de uma forma que merece ser lembrada: sublinhando que algumas das medidas mais importantes dos seus mandatos, que coincidiram com o período de maior prosperidade e paz dos EUA, só foram possíveis devido à confluência de interesses entre os dois partidos.

Desde que Donald Trump entrou em cena, essa tendência só se tem agravado, tanto nos EUA como no resto do mundo. Sempre com o mesmo objetivo, comum a todos os populistas – mas que também se vai observando, tantas vezes, nos argumentos de quem os combate: a exploração da raiva dos eleitores, os apelos ao combate e a obliteração, à lei da bomba, de tudo o que possa proporcionar o mínimo ponto de contacto ou de entendimento entre os apoiantes, fiéis ou circunstanciais, dos dois lados.

O combate aos inimigos da democracia e de uma sociedade mais justa não pode ficar resumido aos apelos à resistência. Precisa também de transmitir alegria e, acima de tudo, de insuflar esperança – porventura, aquilo de que mais sentimos falta no mundo atual, dominado pelos sentimentos de vingança, de perseguições aos outros, de conflito permanente, dinamizado pelos populistas.

Se for eleita Presidente da nação mais poderosa do planeta, Kamala Harris não vai, de certeza, resolver todos os problemas do mundo. Mas, para já, teve uma virtude, como candidata frente a Donald Trump: soube restaurar a alegria que deve estar inerente a qualquer projeto de esperança por uma sociedade melhor. E isso, só por si, já devia fazer toda a diferença.

Marçal reduz Bolsonaro a uma versão ultrapassada

A disputa patrimonial na extrema direita nacional é a sensação da temporada. Está além das eleições municipais. Pablo Marçal ocupou espaço sem pedir licença; contestado, resistiu. Debilitou as forças de Jair Bolsonaro e pôs em dúvida sua liderança. Modelo 4.0 do reacionarismo, reduz o ex-presidente a uma versão beta, ultrapassada, cheia de bugs. Mesmo que formalmente o reverencie, Marçal não é seu discípulo ou fiel a seus interesses. Antes, parece a kryptonita de Bolsonaro.

Mais ousado, de ataques mais baixos, fortes e desconcertantes, o ex-coach se coloca não apenas como empecilho para a reeleição do prefeito Ricardo Nunes, mas também como pesadelo às pretensões do ex-presidente e, talvez, aos projetos de Tarcísio de Freitas, que, ironicamente, passam a ser percebidos como parte do sistema.

Contudo Marçal não é novo, menos ainda surpreendente. Brota da mesma escuridão do presente. Pertence à novíssima geração de extremistas reacionários, antissistema, candidatos a autocratas, montados num pretensioso anarcocapitalismo que confunde esforço pessoal e empreendedorismo com bizarrice, caos e carnificina social.


Como Jair Bolsonaro, sua força é resultado do espírito do tempo. Ambos são filhos da fúria da transição entre os mundos analógico e digital; da quarta revolução incapaz de incluir — e de ser assimilada — por hordas humanas de desesperados ou bestializados perdidos numa longa transição, potencializadas pela exploração política da ignorância. Jovens das periferias ou das largas avenidas por onde uma nova oligarquia economicamente instruída desfila sem cultura e educação políticas.

São instrumentos do mal-estar que não controlam, tampouco lideram. Apenas vocalizam, beneficiando-se de misérias. São frutos do movimento antissistema que se espalha pelo mundo, críticos do Estado, política e democracia, desgastados por incapazes de se antecipar aos mais perniciosos efeitos da transformação. Soldados do iliberalismo e da destruição do edifício iluminista, afetado pelo esgotamento de Yalta, Potsdam, Bretton Woods; pelo abalo da esperança (vã?) da queda do Muro de Berlim.

Um processo que levou ao Brexit (2016) a Donald Trump (2016), Jair Bolsonaro (2018), Nayib Bukele (2019), Javier Milei (2023). Ou, antes, Hugo Chávez (1999), Vladimir Putin (2000), Narendra Modi (2001), Daniel Ortega (2007), Viktor Orbán (2010).

Figuras como Trump, Bolsonaro ou Marçal mais vocalizam essa fúria do que a lideram. Espalham o medo e colhem o poder sem saber exatamente o que fazer com ele, pois têm os olhos no passado e desconhecem qualquer ideia de futuro para além do mimetismo dos prédios de Dubai ou das lojas de Miami.

A boa notícia é que já não passam ao largo da percepção da maioria da população que resiste indicando preferir a civilização à barbárie. Antes atônitos e divididos, herdeiros do velho Iluminismo já se impõem com frentes políticas em defesa da democracia, da diversidade e da humanidade. Recentes eleições no Reino Unido e na França parecem ser prova disso. Assim como a contestação continental ao processo político venezuelano, a conciliação do Partido Democrata nos Estados Unidos contra Donald Trump é alvissareiro sinal de resistência e resposta.

Por seu tamanho e sua dimensão simbólica, a cidade de São Paulo terá oportunidade de demonstrar que aqui também será assim: uma frente ampla — para vencer a eleição e governar a cidade — contra o estrondoso som e a fúria que, destruindo tudo, normalmente, significam nada.

Crise de abstinência do X? Calma: há tanta vida lá fora

Era 9 de abril deste ano, e o X ainda estava a todo vapor (e rancor) quando decidi deixar uma conta com 900 e tantos mil seguidores e respirar um pouco. Como é (era?) típico da plataforma, mil teorias da conspiração foram levantadas para o motivo da minha decisão, o que foi engraçado. Quase cinco meses depois posso dizer para quem está vivendo a crise de abstinência do X depois que a plataforma foi tirada do ar: calma, gente, tem vida fora dali.

É claro que uma coisa é deletar o X por vontade própria, porque cansou de bater palma para o maluco do Elon Musk lucrar e zombar da democracia. Outra é fazer isso porque o Alexandre de Moraes achou por bem tirar a plataforma do ar. Este não é um texto sobre isso, até porque hoje é sábado. A esse respeito escrevi na coluna de ontem no GLOBO, que você pode ler aqui.



É um texto de quem está se divertindo desde ontem com a chegada dos refugiados digitais no Threads, a plataforma da Meta que emula o Twitter, com uma quantidade (ainda) menor de metais pesados no ar. “Gente, cadê vocês?”, “Onde ficam os Trending Topics aqui?” (Dica: ainda não tem).

Outra modalidade de postagens (atenção para não chamar de tuítes) é falar da saudade do X. Ou falar mal do Musk morrendo de saudade daquele boy lixo que todo mundo odiava mas ninguém conseguia largar.

Não sei como está o fluxo no Bluesky, o outro candidato a recolher os órfãos do X, mas no Threads o debate começa a esquentar, o número de likes começa a subir e o volume do hate aos poucos também vai chegando.

Precisamos mesmo de outra rede social? No tempo em que tudo ainda era mato ali naquele concorrente do Zuckerberg, eu pouco aparecia. Usar o Instagram para mostrar a vida era (é) mais prazeroso, embora nem sempre salutar. Agora já vejo o debate sobre política começar a engrenar. Um motor antes da chegada dos brasileiros desgarrados pela pena do Alexandre de Moraes vinha sendo a eleição americana. Democratas (principalmente) e republicanos já vinham postando por ali e obtendo engajamento bem razoável, talvez num movimento para esvaziar o poder de influência de Musk no pleito por lá.

Para você que está chegando, tente manter seu terreno limpo. Não adianta nada dizer que o Twitter estava irrespirável e ir emitir monóxido de carbono na rede vizinha.

Para quem ainda está hesitante em abrir outra conta em outra rede que depois pode (deve?) se tornar igualmente manipuladora, tóxica e viciante, melhor. Tem muita coisa boa para ver (a segunda temporada de "Os Outros", no Globoplay, está magnífica), para ouvir (já escutou o novo álbum da Liniker, “Caju”? Não??? Então esquece Xandão versus Musk e dá play agora!) e para ler (recomendo muito “Como Salvar a Democracia”. Spoiler: não é como o ministro Moraes tem feito nos últimos tempos).