terça-feira, 27 de março de 2018

A cavalaria não vem

Na improvável possibilidade de ainda haver algum desavisado, é sempre bom não deixar dúvidas. O país fez a opção pelo horror. Com pitadas de psicopatia em reality show de gente feia, parece não mais haver duvida que estamos nos condenando ao horror sem fim.

Depois de séculos construindo um cipoal jurídico especificamente desenhado para não funcionar, parecemos condenados a abraço suicida sem esperança de resgate. Atrás de tantas palavras difíceis cujo significado só imaginamos por ouvir dizer, o país muda para ficar na mesma.

De maneira absolutamente passiva, assistimos o formidável enterro de quimeras. A luz no fim do túnel vai se distanciando. Fincando amarela. Anunciando que optamos pelo atraso, protegendo oligarquias novas e antigas, enquanto acetamos o caos permanente, acostumados que estamos a lama que nos espera.

Curiosamente tudo se passa com aparente tranquilidade. Enquanto o cidadão normal vai suar a camisa para encher a geladeira alguns dias antes do descanso da semana santa, as instituições forçam-no a tampar a respiração por 10 dias a espera de decisões relevantes, interrompidas para conveniência de personagens de talento duvidoso engajado no engodo generalizado.

Nada surpreendente. Nosso sistema legal e judiciário é amontoado de normas incoerentes e labirintos processuais levando ao nada. Tudo produz apenas o deprimente e desnecessário exercício de discussões desnecessárias onde a coerência fica em segundo plano e a justiça, com sorte, em terceiro.

De repente, ao expor suas vísceras, fica claro o quanto as circunstancias influenciam o resultado. Nada mais imprevisível que a justiça tropical. Ali inexiste responsabilidade. Apenas casuísmos embalados por interesses manipulado interpretações e jurisprudências com a constância de birutas de aeroporto.

Tudo, claro, embalado em retorica complicada, salpicada de latim, encenados por atores de talento dramático duvidoso em história repetitiva, perpetuando um horror sem fim.

Paralisados ficamos diante de tudo. Sem nada fazer. Aceitando a tragédia como inevitável. Torcendo, cada vez com menos entusiasmo, que alguém nos socorra. Para os desavisados, convém ser claro. Em faroeste caboclo, a cavalaria não vem.

Elton Simões

Gente fora do mapa

İhtiyar Balikçi

Indícios estranhos no STF

Ninguém sabe quais os 11 da seleção brasileira, mas todos sabem quem são os 11 do STF. Em nossos tempos de criança, todos sabiam quem eram os 11 da seleção brasileira. O time do STF era de eminências discretas e desconhecidas. O único juiz conhecido era Armando Marques.




E hoje? Os ministros da Suprema Corte daqueles países cujas seleções nos derrotaram não estão na mídia de seus países todos os dias. Os nossos estão. E a seleção sumiu!

A Alemanha nos impôs 7 x 1 na última Copa. Quantos alemães podem citar um único ministro da Suprema Corte alemã?

Deonísio da Silva

É preciso lubrificar a Máquina

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As democracias (e os nossos amigos dos países socialistas) precisam de uma nova geração, venha de onde vier, para trabalhar nas suas linhas de montagem e consumir os seus produtos
Brian Aldisss, "Jornada de esperança"

Em que mundo vivem os ministros do STF?

Supremo está prestes a decidir em favor da impunidade. Por onde andam os ministros do Supremo Tribunal Federal? Com quem conversam? O que leem? Há momentos na sua história, como este agora, em que eles mostram ser pessoas tão ordinárias como o mais simples mortal. Nem mesmo aquelas capas pretas os diferem da média nacional. Juiz, segundo juízes, não pode ouvir o clamor das ruas. As ruas não podem pautar a Justiça, dizem os magistrados. Conversa fiada. Sabemos todos que não é assim. Fica cada vez mais evidente que o STF não resiste a uma boa pressão.

A prova cabal é o que está acontecendo agora. Como pode o STF cogitar julgar outra vez o tema da prisão em segunda instância se tomou decisão de repercussão geral sobre a matéria há pouco mais de um ano? O que teria motivado essa reviravolta que não seja a voz rouca, não das ruas, mas dos bastidores de Brasília? No caso, uma voz difusa, em que parte pede a revisão do entendimento para salvar Lula, parte pede que se respeite a decisão anterior com a consequente prisão do ex-presidente.

Não há outra explicação, os ministros do STF só voltaram a discutir a prisão em segunda instância porque a situação em vigor significa a prisão de Lula. Imagine, prender um ex-presidente apenas porque ele foi condenado a 12 anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Não sei se há precedentes, acho que somente os ministros civis do Superior Tribunal Militar (STM), durante a ditadura, foram obrigados a constrangimento maior do que este. Os ministros do Supremo podiam usar suas capas pretas para cobrir esta vergonha. Como deveriam ter feito nos episódios em que salvaram Renan Calheiros e Aécio Neves.

Se aceitar o habeas corpus que livra Lula, o STF estará reinstalando no país a chaga da impunidade que está por ora represada. Significa que Lula e todos os demais condenados por um juiz, com a sentença confirmada por um colegiado de magistrados, seguirão livres até que o Superior Tribunal de Justiça e mais tarde o próprio STF julguem o julgamento dos julgadores das instâncias anteriores. Podem até dizer que o STF adotaria uma medida intermediária e os recursos teriam de acabar no STJ. Não acredite nisso. As coisas não funcionam assim com advogados, juízes, recursos e habeas corpus Brasil.

Não só o ladrão e o lavador de dinheiro público, mas também o assassino e o estuprador, não importa quais, nem quantos, todos serão beneficiados se o STF conceder o habeas corpus. A tramitação de uma ação em todas as instâncias, dependendo do advogado ou do escritório de advocacia, pode durar o tempo necessário para que o crime prescreva. São milhares, dezenas de milhares de casos nesta situação. Com boa vontade, entre sete e 12 anos um processo comum pode tramitar até a sentença final. Mas a Justiça sempre tarda e os processos podem percorrer os labirintos judiciais por muito mais tempo. Só na primeira instância uma sentença leva em média quatro anos e meio para ser proferida.

O STJ recebeu 330 mil novos processos em 2016. São casos que chegaram ao tribunal para confirmação ou anulação de sentença dada por um juiz e depois por um grupo de juízes em instâncias inferiores. Como o STJ tem 33 ministros, cada um deles recebeu naquele ano 10 mil novos processos que se juntaram aos que já estavam em curso. Cada juiz teria de julgar 27 processos por dia, se trabalhasse todos os 365 dias do ano, para se desincumbir apenas dos casos novos. Como não trabalham aos sábados e domingos e têm dois meses de recesso por ano, a conta sobe para 49 processos por dia. Dá para ter uma ideia do tamanho da encrenca?

Ascânio Seleme

O mendigo disse: 'Não tenha vergonha de olhar para mim'

O mendigo disse: "Não tenha vergonha de olhar para mim". Estava falando com uma senhora muito elegante cujo cão tinha parado para fazer suas necessidades perto do indigente, que estava sentado no chão, sobre um papelão sujo, com as costas apoiada na parede do McDonald's do centro de Madri. A senhora, que não queria puxar o cão, olhava de soslaio para o pobre: o copo de plástico com duas ou três moedas, sua garrafa de água, seu guarda-chuva, sua sacola de supermercado cheia de frutas, os pés descalços e pretos pela sujeira, sua mochila rasgada... Foi quando o homem se dirigiu a ela para dizer que não precisava ter vergonha de olhar, pois ele podia suportar.

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A senhora se agachou para recolher o cocô do cachorro e ao se levantar estava chorando. Você pode suportar, disse, mas eu não. De forma incongruente, disse que era professora de história. O mendigo tirou de sua mochila, para mostrar uma História do Mundo Contemporâneo: um velho livro de bolso com as folhas inchadas, como os tornozelos de alguém que sofre de hidropisia. É tudo que li na minha vida, explicou, ler é muito instrutivo. Muito, concordou ela dando um nó no saco de cocô do animal, enquanto engolia as lágrimas. Se você quiser, ofereceu, amanhã trago outro livro para você. Traga-me um sobre o mundo antigo, para comparar, disse o homem. A mulher andou oito ou nove passos e voltou para deixar algumas moedas. Não precisava ter se incomodado, disse ele. Não é nenhum incômodo, assegurou ela. Deixe o cocô do cachorro, ele sugeriu então, também tenho que me desfazer do meu. Ela, depois de resistir um pouco, entregou a ele. Depois começou a caminhar, puxando o cão, que não queria se afastar da sua merda.

Consumismo segundo Steve Cutts

Incômodos intelectuais

O filósofo Claude Lefort, ao comentar O Arquipélago Gulag, disse que seu autor era um “homem incômodo”. De fato, nos regimes políticos que impedem a liberdade, quem pensa atropela a covardia dos servos. O ódio pelo raciocínio, batizado por Platão com o neologismo “misologia”, tem história antiga. No Brasil, como “em se plantando tudo dá”, ódios têm solo fértil.

A crônica dos choques entre intelectuais e poder forma labirintos de árdua saída. Além de Salomão, ou de Marco Aurélio, poucos líderes exibem atributos para governar e abrir sendas na ordem racional. Poucos seriam candidatos ao posto do rei e filósofo. Alguns, como Nero, tentaram unir a teoria à prática e causaram incêndios físicos e institucionais. Dionísio de Siracusa quis alugar Platão para fornecer lustre ao trono e repetiu de modo canhestro o que tinha ouvido do mestre. Logo publicou sua “filosofia” supostamente platônica. O autor de A República nega a paternidade: “Nunca escrevi ou escreverei algo sobre semelhantes matérias” (Carta 7, 341 c-d).
Vale recordar a disciplina da pesquisa, o rigor lógico, a profundidade adquirida no silêncio, longe dos rapapés. O pensamento recusa propaganda ou lisonjas cortesãs.

As rusgas de Sócrates com a democracia causaram a morte do filósofo, nada tolerado pelas assembleias da época. Sêneca acabou seus dias com os punhos abertos, após aconselhar o imperador.

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Na Idade Média, João de Salisbury exige que o governante tenha saberes autênticos. “Illiteratus rex quasi asinus coronatus est” (Policraticus, Livro 4). E mais: “ Se um rei não possui letras, escute os letrados para que acerte em seus atos”. Governantes sem conhecimentos demonstram o que diz Júlio César contra os ignaros de seu tempo: Sylla nescivit literas, non potuit dictare (Sylla desconhecia as letras, não podia ditar). A frase é recolhida por Francis Bacon (Of Seditions And Troubles). Dirigir povos ou escrever eram práticas dominadas por Júlio César. Mas ele terminou coberto de sangue no Senado.

Maquiavel prima por avisar o líder, sobretudo o novato, a garantir as rédeas do governo. Mas termina pobre e sem cargos em Florença. Morus foi executado, sem que a sua obra maior, A Utopia – na qual descreve uma sociedade política ideal –, lhe servisse de ajuda. Prudente, Erasmo bajula príncipes e papas, não assume tarefas alheias à escrita. Arrisca críticas genéricas aos tiranos em matérias ligadas à guerra, a impostos, etc. Mas ele não chega aos extremos de Morus ou Lutero. Este último ataca o mando pontifício, mas se junta aos príncipes para esmagar a revolta liderada por seu colega Müntzer.

Descartes foge do Santo Ofício e da Sorbonne, a “corporação dos queimadores de livros” (Jacques le Goff) . Pascal insulta os jesuítas e topa com o violento poder real. Só escapa por acaso de ser desenterrado como os jansenistas e seus ossos expostos post mortem à ira do trono e do altar.

Richelieu demite e prende intelectuais contrários ao absolutismo, protege os que fazem a propaganda do regime. O elo desastroso das Luzes com os déspotas “esclarecidos” mostra o quanto é difícil o mister de aconselhar governantes.

Voltaire foge do colérico Frederico após caçoar das “porresias” reais (o termo é do próprio Voltaire). O monarca imagina-se poeta, mas é, sobretudo, idealizador do Estado como burocracia mecânica. E ai de quem não louvasse suas façanhas no Parnaso!

Diderot, quase bem-sucedido com Catarina II, acusa a soberana de despotismo. Com a revolução, quem admira a imperatriz culpa Diderot por tudo. Seu liberalismo democrático preparava o Terror... Após 1789 muitas caixas cranianas, que guardavam cérebros privilegiados, foram separadas dos corpos para glória do poder popular. Condorcet era uma delas.

O século 19 trouxe aos intelectuais vitórias de Pirro. Zola, após atenuar injustiças contra Dreyfus, nem do injustiçado recebeu gratidão. Lamartine, candidato à presidência da França, perdeu para um Bonaparte.

O século 20, tirados nomes como Bertrand Russell, conhece o ápice da obscenidade no trato entre intelectuais e poder. Em Vichy, presos ao nazismo (Carl Schmitt é seu ícone), bajuladores de Stalin e todos os que cantaram a música das ditaduras (no Brasil a colheita é farta), os cerebrinos assumem máscara abjeta. Os tiranos são louvados como nunca. Como exemplo, temos Getúlio Vargas na Academia Brasileira de Letras (seguido de mediocridades similares), com direito a lambidas em sua bota. O contributo do ditador à literatura se dá em parceria de Francisco Campos, numa obra imortal, A Polaca, mais os infames discursos em louvaminhas do Estado Novo. Hoje os nomes que adularam o ditador são “ carcaças gloriosas”, para recordar Agripino Grieco. Mas José Sarney é imortal, o baciamano ainda impera nas letras e na política nacional. Além de seus romances aguados, Sarney, pelo menos, nos poupa as suas “ porresias’.

Antes, intelectual se dizia no singular. Indivíduos assumiam tarefas em nome da humanidade, da ciência, da religião. Seguindo rumos previstos por Max Weber, surgiram acadêmicos burocratas que geram métodos para amoldar o mundo. Eles são acolhidos nos think tanks, quartéis onde doutores decidem sobre o público e o particular. No clima ideológico brasileiro de hoje, aqueles bunkers da teoria reforçam os setores que se digladiam pelo poder, exigem adesões absolutas, sem críticas. Cérebro festejado é o que obedece a linhas políticas. Para sectários, o intelectual serve como preservativo: usado, joga-se fora. Se ele serve à Causa, palmas! Se a recusa, calúnias na internet. Se ajuda a nobre luta, seu título é intelectual. Se não entrega a encomenda, recebe a pecha de “intelectual”. As aspas, abusadas por Goebbels e pelo Agitprop, impulsionam a tarefa costumeira de matar a inteligência.

Tem razão L. Canfora: pensar foi, é e será "Um Ofício Perigoso" (Ed. Perspectiva, 2003).

A força do (p)ovo

A disposição do ex-presidente Lula de percorrer o país em caravana, organizada para levar a seus seguidores a mensagem do PT e seu protesto contra sua condenação pelo Judiciário Federal da 4ª Região, se obteve êxitos, o maior deles pode ser comemorado pelos aviários: nunca, por inequívoca intolerância ao crime, se venderam tantos ovos, adquiridos para receber Lula e seus bajuladores nos eventos da tal caravana. Galinhas poedeiras de Bagé, Passo Fundo, São Miguel do Oeste, Erechim e Chapecó, que sempre botaram de forma apartidária, responderam à convocação que se lhes fez para produzir em maior quantidade e assim estarem presentes à saudação do presidente Lula e de sua comitiva.

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O reconhecido líder – o cavaleiro andante da cruzada que ele com toda a sua desfaçatez e cara de pau empreende para tentar convencer os que lhe dão ouvidos da injúria, ao critério dele, que de todos os cantos lhe pregam e a seus cúmplices, muitos desses ainda soltos – está empenhado em procrastinar ou em se tornar vítima do ato de Justiça que deverá levá-lo à cadeia. Com a certeza de que tal dia poderá não tardar, Lula manipula de forma própria e com as que conseguem seus advogados, em bem-sucedidos embargos e recursos julgados e repassados por tribunais superiores, por cuja formação ele e sua desastrada sucessora, Dilma Rousseff, foram em grande parte os responsáveis.

Infelizmente, esse descritério decorre de histórica deformação constitucional, que faz com que ministros de tribunais superiores e desembargadores dos tribunais dos Estados sejam escolhas políticas do presidente da República e dos governadores dos Estados. O resultado muitas vezes é o que se está assistindo, que faz com que a interpretação da norma seja uma repetição do que a mitologia grega destacou como “o leito de Procusto”. Vulgarmente, é o espicha-encolhe do entendimento e da aplicação da lei, muitas vezes o querer justificar aquilo que não tem justificativa, ainda que ferindo o direito, a ética e o bom senso. Não importa; para muitos, o fim justifica os meios.

Estamos vivendo, em razão dos envolvidos, mais uma quadra perigosa de nossa história. Um ex-presidente, seus filhos, centenas de seus acumpliciados formalmente envolvidos em delitos capitulados no Código Penal, muitos desses com processos já julgados em primeira e segunda instância e que ainda se acham beneficiados pela inércia de parte do Judiciário – os tribunais superiores, em especial –, com tal benevolência reafirmam que no Brasil o crime compensa. Sim, compensa, especialmente se lembrarmos que, das 183 condenações já concluídas em Curitiba pela operação Lava Jato, nenhuma sequer foi julgada por Brasília, condenando ou absolvendo seus réus. Muitas serão arquivadas por prescrição.

Vã esperança a nossa nas ações de nosso Judiciário. Felizmente, há exceções. E ovos...

O paciente Suprema Corte perdeu o juízo

Julgar se algo pode ser julgado para depois julgar o adiamento do julgamento, e acabar por julgar em favor do réu sem julgar o mérito daquilo que julgaram que deveria ser julgado. Definitivamente não dá mais para esconder: a Suprema Corte perdeu o juízo.

Há muito abandonara o decoro e o respeito – as recentes cenas de pugilismo verbal entre os ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes são só mais uma arenga no rol de bate-bocas e desacatos. Agora, desfaz-se da razão. Tudo em nome do paciente.


Ainda que contemplada nos dicionários e usual no linguajar jurídico, a terminologia é no mínimo curiosa. Luís Inácio Lula da Silva pode ser tudo, menos paciente. Em qualquer acepção da palavra.

Lula é réu, condenado em duas instâncias, com sentença de 12 anos e um mês para cumprir. Só que, ao contrário da maioria esmagadora, é tratado a pão-de-ló pela Justiça.

Não apenas agora, quando pode furar a fila e ter um habeas corpus apreciado pelo STF antes de presos que ainda não foram julgados em instância alguma. E ainda sair do não julgamento com um inédito salvo-conduto que os 236,1 mil presos provisórios adorariam ter. É privilegiado sempre.

Percorre o país afora em deslavada campanha eleitoral antecipada e ninguém dá um pio, transforma auditório de universidade pública em palanque, como fez em Bagé, e nada. Xinga promotores e juízes a bel prazer sem responder um processo sequer.

Não tem e nunca teve apreço algum pelas leis.

Quando presidente da República, protagonizou um quase inacreditável “F… à Constituição”, ao ouvir que não poderia expulsar do Brasil o correspondente do New York Times, Larry Rother, que tornou pública suas bebedeiras.

Ministros do Supremo não chegaram a tanto, mas têm demonstrado desdém semelhante com a Carta que têm, por dever de ofício, de proteger.

Não são raras as decisões monocráticas contrárias às deliberações coletivas – a possibilidade de prisão em segunda instância é uma delas, aprovada no pleno por três vezes, a última há menos de dois anos. O STF patrocinou ainda outras estranhezas, como a suspensão da inelegibilidade de Dilma, punição constitucional para a deposição de um presidente, ou a semi-cassação de parlamentares. Além de se arvorar em substituir o Executivo.

Agora, depois da salvação temporária, movimenta-se na busca de fórmulas para remediar o transtorno da cadeia para seu paciente predileto. Entre umas e outras vênias, ganhou 12 dias para fazê-lo.

Por enquanto, Lula respira a brisa da impunidade. Cabe aos 11 ministros – talvez 10, já que a presença de Gilmar Mendes no dia 4 é uma incógnita – manter ou inverter o vento. Vale lembrar que o empate beneficia o réu, ou no português das excelências togadas, o paciente.

Mary Zaidan

Paisagem brasileira

Lagoa Azul em Serra do Navio - Amapá - Foto: WWF
Lagoa Azul, Serra do Navio (AP)

No Brasil, a solução dos problemas é dormir e esperar que melhore

O tempo é implacável no Brasil. Ele faz com que qualquer coisa importante, potencialmente revolucionaria caia no esquecimento e seja atropelada pela avalanche do nada e pelo tsunami do conformismo. A trágica morte da vereadora carioca Marielle recebeu uma atenção tipicamente brasileira quando há revolta pelo ocorrido: voluntariosa, enérgica e impactante.

Mas o maior inimigo contra o país é a inércia do brasileiro, mostrada pelo tempo. Amanhã lembrarão menos, semana que vem um pouco menos, até se pulverizar na mente coletiva e permanecer apenas entre aqueles mais próximos. Foi isso que ocorreu na tragédia da boate Kiss, nos assassinatos que ocorrem todos os dias, no “legado” olímpico, no “legado” da Copa do Mundo, na refinaria de Pasadena, entre tantos outros fatos.

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No Brasil, o tempo nos mostra a prisão do conformismo e parece dar a impressão de que algo negativo foi solucionado, somente porque não foi mais mencionado. Nossa relação com os problemas, enquanto nação, é a de “dorme que melhora” e depositamos no esquecimento coletivo a sensação de que algo foi feito.

Na morte da vereadora, as munições usadas foram roubadas em 2006. Na tragédia da boate Kiss, os responsáveis estão livres e nada foi feito. Quantas boates no Brasil permanecem “inflamáveis” à espera de uma catástrofe? Oriundo das Olimpíadas, o velódromo (??!) está abandonado. O capim e a sujeira foram as soluções já esperadas pelos organizadores, construtores, turistas e moradores do Rio. Todos dedicaram ao tempo e ao vento a manutenção de mais esse desperdício.

O desperdício está longe de ser apenas financeiro. Bem mais importante do que isso é o desperdício de oportunidades para gerar a mudança. O assassinato de Marielle não mudará a forma de atuação das forças de segurança contra grupos de extermínio. O tempo cuidará disso da sua forma. A tragédia da boate Kiss não garantirá novas normas na segurança das boates (por mais que um Projeto de Lei tenha sido aprovado). Continuaremos a ter casas noturna de quinta categoria, tanto em nível quanto em segurança. Não aprenderemos com os elefantes brancos dos estádios da Copa, nem com o velódromo do Rio de Janeiro.

Se estamos brigados com o tempo, a única forma de trazê-lo para o nosso lado é usá-lo para mudar as coisas. O Brasil não se reinventa por preguiça, não gera grandes mudanças porque todos aprenderam a viver da forma que está. No caso mais recente, a de Marielle, enquanto sua morte for utilizada como plataforma de discurso, de um lado contra o outro, seguirá sendo uma luta inútil e fomentadora de novas tragédias. A luta bem-feita não é a de “coxinhas” contra “mortadelas”, mas a de cidadãos de bem contra bandidos e da sociedade contra o conformismo.

Thiago de Aragão

Irmãs siamesas

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A esquerda enlouqueceu e ficou tão hipócrita quanto a direita
José Padilha

Há um déficit estético na campanha presidencial

Há momentos em que as nações precisam desesperadamente de bom gosto. No Brasil, neste ano sucessório de 2018, o bom gosto tornou-se gênero de primeira necessidade, para compensar o déficit estético acumulado desde que a Lava Jato expôs a corrupção na vitrine. Mas, considerando-se o panorama que se descortina no momento, os partidos exibem uma inacreditável propensão para o mau gosto.

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O descompromisso de alguns partidos com a estética vai transformando a eleição de 2018 numa espécie de loteria sem prêmio, na qual o eleitor é convidado a optar entre o impensável e o inaceitável. As pesquisas eleitorais ganharam a aparência de estatísticas que antecipam o nome do herói que os para-choques de caminhão chamarão de desonesto 15 dias depois da posse.

Hoje, o líder nas pesquisas é Lula, um corrupto de segunda instância, que acaba de se consolidar como um ficha-suja inelegível depois que o TRF-4 rejeitou o seu recurso. Acotovelam-se na raia do centro Geraldo Alckmin e Rodrigo Maia, protagonistas de inquéritos.

Michel Temer, com duas denúncias e dois inquéritos por corrupção, declara-se candidato à reeleição. Henrique Meirelles prepara-se para trocar a pasta da Fazenda pelo palanque. Vai se filiar ao PMDB, um projeto político que saiu pelo ladrão. Se não for cabeça de chapa, será vice de Temer. A campanha eleitoral mal começou e já se distingue como um espetáculo constrangedor.

Como enfrentar o sangue dos dias

Este não é apenas um momento de brutalidade extrema no Brasil. É também um momento de potências emergindo. E começos de alianças até então impensáveis. É preciso perceber onde estão as possibilidades – e fazer frente àqueles que, diante da democracia corrompida do país, avançam sobre os corpos humanos.

A expectativa dos atores mais truculentos é de que a porteira foi aberta e desde então está tudo dominado. Mas acreditar que está tudo dominado é deixar de perceber que a violência se multiplica também porque não está tudo dominado. A violência da bandidagem instituída e não instituída é também uma reação a profundos avanços no interior dos Brasis. É nestes avanços que uma rede de proteção e resistência que consiga superar divergências não fundamentais precisa ser organizada. Porque a matança não para. Desde o assassinato de Marielle Franco, o medo de quem está na linha de frente aumenta e trespassa o país.

Neste exato momento, há pelo menos duas lideranças da floresta amazônica escondidas para não se tornarem, como Marielle, um corpo destruído à bala. Seus nomes: Francisco Firmino Silva, 68 anos, mais conhecido como Chico Caititu, e Ageu Lobo Pereira, 36. Seu crime: realizarem o que o Estado é obrigado a fazer mas não faz, que é a demarcação e implantação do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Montanha e Mangabal. E também a proteção do território de floresta.

Chico Caititu está ameaçado de morte por sua luta em defesa
 da comunidade Montanha e Mangabal, na Amazônia
Como o cotidiano no Brasil – e também no mundo – é brutal, e como o medo de ter o corpo destruído cresce a cada dia, há uma tendência de só enxergar uma marcha acelerada rumo ao autoritarismo. Essa marcha é um fato, mas não é o único. Há novas forças no Brasil disputando o poder e fazendo resistência
Ao fazer o que o Estado deveria fazer mas não faz, os ribeirinhos enfrentam o crime organizado no rio Tapajós, na região de Itaituba, no Pará. Para aqueles que querem avançar sobre essa porção valorizada da Amazônia, a única barreira são os corpos dos beiradeiros que defendem o território de uma ameaça grande demais: o comércio internacional de madeiras e o ouro que acaba no mercado financeiro já lavado do sangue.

Chico Caititu e Ageu Lobo não são os únicos. Há homens e mulheres ameaçados de morte em toda a Amazônia brasileira e nas periferias das grandes cidades. Há lideranças na mira da bala em quilombos, terras indígenas, assentamentos, acampamentos, ocupações e favelas.

O medo de ser morto se alastra pelo país. Setores da classe média que apoiam essas lutas começam a temer por sua vida, um temor que se acirrou com a execução de Marielle Franco. Há os que acreditam ter a escolha de deixar de lutar. São os que têm o privilégio de um plano B ou o de simplesmente não fazer nada. Mas há os que não têm escolha porque esta é sua própria vida. Ou morte.

Como os dias se tornam mais graves, o momento é exigente para quem vive no Brasil. Diante do sangue das horas, como cada um vai se posicionar?
Leia mais o artigo de Eliane Brum