sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Pensamento do Dia

 


Governos contra a política

A política brasileira sempre teve suas extravagâncias e nenhuma delas levou a um bom desfecho. Sempre que a ordem normal das coisas prevaleceu, os resultados foram melhores.

Para as pessoas da minha geração, a primeira anormalidade ocorreu quando a UDN, partido das elites e dos bacharéis, cansada de perder eleições, tomou emprestado um aventureiro de um partido desconhecido, para disputar a eleição em seu nome.

O personagem era Jânio Quadros, que ganhou a eleição com um discurso moralista e demagógico. Sem conseguir verdadeiramente governar, renunciou seis meses depois, precipitando o país num abismo por 24 anos.


Na primeira eleição presidencial da redemocratização, uma nova aventura, chamada Collor, ofereceu-se aos eleitores sem memória, parodiando o discurso moralista de 1960 e prometendo combater os “marajás”, entidade indefinida, feita na medida para satisfazer a todas as formas de ressentimento.

O modelo foi semelhante. Uma novidade, vinda de um partido inventado para a ocasião, chegava para acabar com a política, mesmo que a política naquela hora fosse Ulysses Guimarães, Mário Covas, Aureliano Chaves, Brizola e até o Lula. Ganhou a eleição, mas fez um governo caótico e tumultuado, que terminou com um impeachment e o país desorganizado e em frangalhos.

Volto a esses episódios quase esquecidos para lembrar que a democracia está sempre sujeita a essas extravagâncias e que elas podem voltar a ocorrer. Os juízos políticos nas democracias de massa são quase sempre fundados em emoções de superfície e raramente na razão.

Para conciliar a vontade popular com as exigências de governar sociedades complexas e cada vez mais diversas e informadas – ou mal-informadas –, é necessária a mediação das instituições políticas, em especial o Parlamento e os partidos políticos. Não há caminho alternativo.

Vivemos tempos semelhantes, com a política correndo fora dos trilhos. O atual presidente se elegeu fora dos partidos e com um discurso contra a política. Eleito, descobriu que, em nosso sistema constitucional, governos sem maioria própria no Congresso podem pouca coisa a não ser falar de seus planos e reclamar da falta de poder.

Governar apenas com discurso não é suficiente. Afinal, as pessoas têm problemas reais e esperam que o governo os resolva. Em busca de salvar o governo ainda a tempo, o presidente buscou apoio onde era possível. Acabou deixando seu partido e se associando aos políticos do Centrão, último refúgio de todos os governos em crise, a quem tanto havia criticado nos discursos de campanha.

Os temas da eleição foram arquivados, mas uma parte das pessoas sempre perdoa essas coisas.

Até aí, temos uma história que não é propriamente original. O inusitado é que nosso presidente, pela primeira vez na história, não está mais filiado a qualquer partido e anda à procura de uma legenda para disputar a reeleição e, se vencer, continuar governando do mesmo modo, sem sustentação organizada no Congresso e sem nenhuma ambição de reformar a vida do país. A ideia parece ser apenas estar no poder, mesmo que para nada.

Nosso sistema constitucional funciona dentro de certas regras, que são universais na democracia. Os Poderes são separados e independentes. O Legislativo funciona com base na vontade popular, representada pelos partidos políticos. Escolher um presidente cujo propósito é lutar contra o Judiciário, os partidos e os políticos é, na verdade, ir em busca de um desgoverno, não de um governo.

Ou então é sonhar para que o presidente consiga destruir ou dominar os outros Poderes. Nesse caso, estaremos simplesmente escolhendo a ditadura pelo voto, como estamos vendo em muitas partes do mundo.

As previsões da meteorologia política são inquietantes. Nas eleições, podemos ter candidato contra a política, no governo e até na oposição. Que ninguém se iluda: votar contra a política é votar contra a vida democrática. Que cada um tenha isso claro na consciência, no primeiro domingo de outubro de 2022. O preço pode ser muito alto.

Inteligência, baratas e poder

“Quem quer que já tenha tentado matar uma barata sabe que ela é inteligente.” Assim falou a professora Lucia Santaella. Titular da Cátedra Oscar Sala, no Instituto de Estudos Avançados da USP, a pensadora sabe o que diz. Baratas podem, sim, ser consideradas inteligentes. A seu modo, elas raciocinam, arquitetam táticas de fuga e, no mais das vezes, conseguem escapulir.

Em seu elogio ao tirocínio do esperto inseto que, além de tudo, “avoa”, Lucia Santaella não nos lança uma reles anedota com fins didáticos. Apoiada na semiótica do filósofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), ela nos traz mais do que uma boutade. Peirce escreveu que “o pensamento não está necessariamente conectado a um cérebro”. Para ele, haveria “pensamento”, igualmente, no “trabalho das abelhas e nos cristais”, isso para ficarmos apenas em poucos exemplos.


No texto de Peirce, o termo “pensamento” deve ser entendido como a capacidade de um organismo ou um sistema dar respostas calculadas, baseadas em alguma forma de memória e aprendizado, aos estímulos que recebe do mundo externo.

Atualmente, usamos para isso a palavra “inteligência” – e esta não precisa mesmo de um cérebro. Contam os pesquisadores que, se você arrancar a cabeça de uma barata, ela vai continuar andando normalmente, com perfeita coordenação corporal, e isso por um bom tempo.

Quem assiste a um documentário disponível na Netflix chamado Professor Polvo (Oscar de melhor documentário em 2021) acaba se convencendo de que os polvos também “pensam”, embora não tenham propriamente um cérebro no meio da cabeça. No caso deles, os neurônios, distribuídos pelos tentáculos, conseguem se comunicar uns com os outros, sem depender de comandos vindos de uma massa encefálica central.

Até as plantas têm uma forma de inteligência. O botânico italiano Stefano Mancuso vem dizendo exatamente isso há duas ou três décadas. “Um ser inteligente não é só aquele que possui cérebro”, garante o cientista. “É um organismo capaz de resolver problemas e aprender com as situações – e nisso as plantas têm sido craques.” Os estudos do botânico brasileiro Marcos Buckeridge comprovam a tese. “Não é nada exorbitante dizer que as plantas têm memória interna”, disse ele na palestra Cognição e inteligência em plantas, disponível no Youtube. Buckeridge, que é diretor do Instituto de Biociências da USP, sustenta que os vegetais aprendem e ordenam seu crescimento com inteligência. Entre outras coisas, isso significa que não é exato dizer que uma pessoa em coma esteja em “estado vegetativo”. Vegetais, senhoras e senhores, “pensam” ativamente.

Diante disso, não surpreende que existam sinais de alguma inteligência nos movimentos políticos do presidente da República. Agora mesmo, nesta semana, a cerimônia de sua filiação a um partido político revela a existência de algum tipo de cálculo nas entranhas do bolsonarismo. É impressionante. Mais do que o discernimento direcional das lesmas e das estalagmites, o tema vem intrigando observadores da cena política nacional.

O instinto adestrado de sobrevivência do governo que aí está – e está até hoje – assombra o ceticismo científico mais rigoroso. Em metamorfoses estratégicas mirabolantes, o organismo bolsonárico logrou se transformar no oposto do que era, sem jamais se descuidar de seu objetivo: conservar-se no poder. O chefe de Estado, que há poucos meses insultava os próceres do Centrão, encontrou meios de se entronizar como o líder máximo de todos eles. Nesse deslocamento, que envolveu operações de alta complexidade, o mitômano personagem escapou da ameaça de impeachment, reverteu ações penais que espreitavam seu círculo familiar (deixou-as todas processualmente rachadinhas) e, agora, se viabiliza para tentar a reeleição. Um prodígio, certamente.

Mas como pode? Haveria por lá algum estrategista de gênio? As hordas fanáticas (que las hay, las hay) acreditam fervorosamente que sim – ainda que nessa crença repouse, latente, uma ofensa gratuita às baratas. Outros dizem que não há inteligência nenhuma naquelas hostes, mas isso pouco importa. O fato é que o índice de sucesso do (des)governante desconcerta, humilha e oprime todo o seu entorno, próximo ou distante.

Nesta hora de desconforto moral, não podemos esquecer que a razão humana não se resume à faculdade da inteligência. Ao menos desde Aristóteles, a razão supõe, além do raciocínio, além da lógica instrumental, a dimensão ética e a dimensão estética, entre outras. Sujeitos com transtornos de personalidade também articulam atos e palavras, mas emperram no plano ético e não dispõem de recursos para a estesia e a empatia. A aptidão para conjugar pensamento crítico, sensibilidade estética e princípios éticos talvez sintetize a substância do espírito (Ralph Waldo Emerson dizia que o caráter está acima da inteligência).

Por tudo isso, a inteligência instalada no outro lado tem um aspecto bruto, demente, feio, selvagem e desumano. O fato de ela ter prosperado tanto, com tamanha desfaçatez, comprova que, do lado de cá, ainda grassa a estupidez.

Deus do Céu

Deus.

Sinceridade? Deu ruim.

Se estava previsto, não foi o combinado. A tal redenção depois da cruz não era esse frente e ré constante, num retorno sem fim. Ou era?

Se era, não fomos devidamente avisados. Ingênuos, talvez.

Veja bem. A Ciência já fez inteligência artificial, sequenciou genoma, tá pertinho e até de produzir gente em laboratório. Tipo robô de carne e osso – artificiais, claro. Há remédio e cura pra quase tudinho. Mas, nesta semana em São Paulo capital, uma cidade grande da porra, no maior e mais rico estado brasileiro, um polícia algemou um homem à sua moto e saiu arrastando rua afora. Igualzinho cena de filme sobre os tempos da escravidão, quando cativos eram arrastados, puxados a ferro para castigo e execração pública. Era pra lascar mesmo. E lascava.

O arrastado em exposição ostensiva de agora também era preto e pobre – espécie de cativo que só é livre nas estatísticas que distinguem população “livre” da encarcerada, a que puxa cadeia mesmo.

Pobre e preto no Brasil soma duas desgraças e está sujeito a tudo. E é tudo mesmo. Do jeito que Você, que teve o filho crucificado, aí de cima, tá sabendo.

Nós, aqui embaixo, de tempos em tempos, ainda achamos que a coisa vai melhorar. Melhora nada. Respeito e igualdade conquistadas dura pouco no Brasil. Por quê? Por quê?

Sabe aquela piada que Você fez tudo beleza no Brasil. Mas, quando indagado se não havia exagero em tanto privilégio, mandou essa: Calma. Espere só pra ver o povinho que vou colocar lá.

Pois então. Esse povinho, por baixo, é perto de 1/3 da população. Gente ruim mesmo, cuja ruindade passa de geração em geração.


Ficam na encolha quando a coisa caminha pra melhora. Mas, há séculos, estão ali, de capitão do mato, capiroto, dentes trancados, alma armada pro próximo bote. Quando reaparecem vêm babando à cata dos eternos objetos do seu ódio: avanços sociais, políticos, de comportamento, pobre, preto, mulheres, índios, LGBTQI+. Sem esquecer, claro, portadores de alguma deficiência física ou mental, imigrantes e migrantes de origem pobre.

Você aí, todo celestial, sabe muito bem que nesse povinho não tem só rico, não. Ao contrário, a maioria tá ali estacionada na classe média. Os com um pouco mais de grana se acham ricos. São os piores. Mas no balaio do povinho tem muito pobre odiando pobre.

No Governo de agora tem até um preto que odeia preto, um artista que odeia Cultura, e etc.. Todos reunidos em torno de quem Você sabe muito quem é. Não vou dar nome porque esse tá na vibe de mandar prender aqueles que o chamam do que pensa não ser. Embora seja.

Esse povinho aí, independente do sexo, se acha aquilo que até o século passado era chamado de macho. A nominação mudou para babaca. Mas, como disse anteriormente, eles, os ruins-malvados, hibernam nas fases boas e ressurgem quando há trevas. Daí, no processo de evolução humana e social, estão sempre séculos e séculos atrasados. Ou seja, negacionista, a variante macho-alfa é muito resistente às vacinas contra raiva e obscurantismo. Falta-lhes, digamos, até vocabulário, entende?

Mas, enfim, o polícia que arrastava o preto, dito traficante, encontrou apoio na rua e compreensão da Justiça. Contaram as mídias, Júlia Martinez Alonso de Almeida Alvim, magistrada do Tribunal de Justiça de São Paulo, na audiência de custódia, sem mais, converteu a prisão em flagrante em preventiva. Não viu ilegalidade em amarrar e puxar um ser humano, como se bicho fera fosse. A Justiça anda assim.

Então… Precisaríamos de outra Bíblia para recontar – e justificar – o que Você deve estar enxergando muito bem. A em vigor vem sendo usada e abusada em dezenas de emissoras de TV, dia e noite. Também em milhares de Igrejas com denominações que até Você duvida. Em nome do seu Filho, há mentiras, roubos e falsas curas. Sem punição.

Atuar terrivelmente em Seu nome também é credencial para chegar ao Supremo Tribunal Federal – o STF, guardião da Constituição em um Estado definido como laico.

Nem vou falar das florestas queimadas, de devastação, dos garimpos ilegais legalizados, das matanças, das chacinas. Fica pra outra carta.

Para não deixar barato, vamos juntos dar só uma passadinha pelo “causo” Lula. Ainda que não tenha sido encontrado qualquer recibinho assinado, qualquer dinheirinho do ex-presidente em Banco Offshore, Lula, condenado, ficou preso 580 dias. Pagou de ladrão. O julgador foi puxador de voto na eleição do governo que o fez ministro. Assim, bem deslavadamente.

Pego atropelando processos e processados, o julgador de Lula escafedeu-se um tempo. Aos costumes, nos States. Agora, embrulhadinho pra presente de trouxa, volta candidato a PR. Quer repetir performance do inominável atual PR, que em 2018 ajudou a eleger.

Sinceridade?

Há cruz demais e pouca redenção.