domingo, 30 de outubro de 2016

Se entrega, Corisco

Renan Calheiros, no passado, perdia cabelos mas não perdia a cabeça. Agora, ele ganhou cabelos mas perde a cabeça, com frequência. Recentemente, disse que o Senado parecia um hospício e afirmou que ajudou a senadora Gleisi Hoffman no seu embate com a Lava-Jato. Hoje, sabemos que ordenou varreduras em vários pontos estratégicos ligados aos senadores investigados pela roubalheira na Petrobras.

E Renan perdeu a cabeça de novo, chamando um juiz federal de juizeco e o ministro da Justiça de chefete de polícia. Sua polícia legislativa funciona como uma espécie de jagunços de terno escuro e gravata, a serviço de alguns coronéis instalados no Senado. Quando combatemos Renan e o obrigamos a deixar o cargo de presidente, os jagunços já estavam lá. Como o Brasil vivia num estado meio letárgico, tivemos de enfrentar a braço os jagunços de Renan para garantir a transparência de uma reunião sobre seu destino.

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O sono brasileiro não é mais tão profundo como na época. Ainda assim, Renan sequer foi julgado pelos crimes de que era acusado na época. São as doçuras do foro privilegiado. Agora, ele quer que o foro privilegiado, que já era uma excrescência para deputados e senadores, estenda-se também aos seus jagunços. E que o espaço do Senado seja um santuário para qualquer quadrilha que tenha, pelo menos, um parlamentar como membro.

Talvez Renan esteja desesperado. Mas essa hipótese ainda precisa ser confirmada. Há sempre alguém que se acha o verdadeiro guardião das leis e se dispõe a defender Renan e o Senado, independentemente desse contexto bárbaro que presenciamos há anos. O próprio Gilmar Mendes, cujas posições são respeitáveis, saiu em defesa de Renan, sugerindo que a polícia não deveria entrar ali. Mas o que fazer quando a própria polícia do Senado comete uma delinquência? A resposta das pessoas que não foram atingidas pela Lava-Jato, mas se incomodam com o sucesso da operação, é sempre esta: falem com o Supremo. No caso do Renan, sob investigação em 12 processos diferentes, e sempre na presidência do Senado, o que significa falar com o Supremo?

Estamos falando com o Supremo há anos. Ele manda grampear senadores adversários, como fez com Marconi Perillo, orienta a agressividade e a truculência de seus jagunços contra deputados. Até hoje, para ele, o Supremo é apenas o cemitério de seus processos.

Renan, Gilmar Mendes e todos os defensores desse absurdo não conseguem me convencer que é preciso pedir licença ao Supremo para punir jagunços que usam equipamentos do Estado, diárias pagas pelo governo, para fazer varreduras na campanha de Lobão Filho, no Maranhão. Varreduras inclusive sob supervisão do genro de Lobão Filho, um homem chamado Marcos Regadas Filho, acusado de sequestro e mencionado no assassinato do blogueiro Décio Sá.

A diversão desse personagem para qual os jagunços trabalharam é usar o helicóptero para dar voos rasantes no Rio Preguiça em Barreirinhas, aterrorizando banhistas e pescadores.

— Foge, meu preto, que isso é vendaval — ouvia-se o grito dos pescadores

O halo protetor do Supremo não se limita aos bandidos do Congresso, mas aos seus jagunços e cúmplices regionais. A Lava-Jato não é infalível. Está sujeita a críticas como todas as atividades de governo. Não se deve usar o êxito da Lava-Jato com intenções corporativas, inclusive num momento de crise econômica como a nossa. Até aí, tudo bem. Mas negar à PF o direito de entrar no Senado quando o crime está sendo cometido pela própria polícia parlamentar, isso me parece um absurdo. O foro privilegiado tem sido uma espécie de escudo para os bandidos eleitos. Se o espaço onde atuam torna-se também um santuário para todos os que trabalham lá, teremos não só a impunidade de indivíduos mas a liberação de espaços especiais para o crime.

Nas campanhas que fiz contra Renan, desenhamos um cartaz dizendo: “se entrega, Corisco”. Isso foi há muito tempo. Seus crimes não foram punidos na época. Ainda me lembro das imagens das boiadas se deslocando no sertão para fingir Renan que era um grande criador. Os crimes não apenas deixaram de ser punidos. Aumentaram exponencialmente ao longo dos anos, ancorando-se inclusive na pilhagem da Petrobras.

Eduardo Cunha foi preso. Não tinha mais mandato. Se Renan continuar solto, é apenas porque tem um. É justo cometer crimes em série, sob o escudo de um mandato parlamentar? Renan está nervoso porque percebe o crepúsculo de um sistema de impunidade tecido pela audácia dos coronéis e a inoperância do Supremo. A evolução do país o levou a perder a cabeça, algo raro no passado. Espero que não chegue a arrancar os cabelos e ouça o meu conselho de anos atrás: se entrega, Corisco.

Fernando Gabeira

Poder e governo

Os governos são as estruturas das sociedades organizadas que executam coisas. Administram. Mandam projetos de leis. Exercem o poder de polícia. Compõem a “administração pública”. Essa coluna é para pensar se quando dizemos “governo” estamos pensando “poder”. Se sim, é provável que estejamos dramaticamente errados. Governo e poder não são a mesma coisa. O Poder pode sustentar um governo ou mandá-lo embora. O governo precisa negociar com o Poder para se manter governo. Acabamos de ver acontecer.

Não há programa político mais belo do que o expresso por Lincoln durante a Guerra Civil Americana: “Um governo do povo, pelo povo e para o povo”. Mas na década de 1950 Eisenhower, um ultraconservador, já denunciava o perigo do crescimento de um “complexo industrial-militar”. Uma entidade silenciosa e brutal, para a qual “o povo” é uma coisa abstrata, e “governo” uma correia de transmissão. O complexo industrial-militar tornou-se o Poder. Os governos podiam lhe ser dóceis ou, ainda que com contradições, lutar com ele. Kennedy quis lutar. Sabemos como acabou.

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Mas o complexo industrial-militar ainda era uma coisa. Apesar das sombras, do segredo das suas operações, podiam-se indicar os homens por trás dele. Apontar as fábricas da morte. Não mais. O desenvolvimento mais refinado do capitalismo na época da sua globalização, na qual temos a agonia e a responsabilidade de viver, virtualizou tudo. Nossa época viu mudar a geografia do poder. Ele se disseminou. Dizemos: “o sistema financeiro internacional”; “os bancos”; “as bolsas”, “o mercado”. São nomes adequados para o novo Poder. Mas ainda falta dizer que ele se articula por todo o planeta, que não é mais uma árvore, cujos frutos viessem envenenados. É uma grama, espalha-se sobre todo o território. Constitui o mundo.

Parece tremendo, imperial. Há filósofos e cientistas políticos que usam essa palavra para falar do Poder no mundo de hoje: o Império. É uma boa palavra. Mas não é original. Já tivemos impérios antes, com essa natureza global. O de Alexandre. O romano. O de Carlos Magno. O britânico. O nosso tem um componente novo, desnorteante: não precisa de imperador. Funciona como caem as maçãs e retornam os cometas: no piloto automático. E é policêntrico. Em geral, quando dizemos “Império” pensamos logo nos Estados Unidos. Mas há muito tempo que esse domínio precisa ser partilhado. Ou se torna ineficaz. E no mundo pós-moderno, ser ineficaz é mortal. O Poder funciona porque se policentralizou. Ele exige a Europa, a China, o Japão. O Ocidente e o Oriente. E as suas beiradas: grupo dos 20, BRICS, Mercosul e o que mais houver. Sua estrutura é móvel. Contraditória e convergente. Nos seus pontos contraditórios há às vezes governos, regiões inteiras, que se opõem relativamente ao Centro. Negociam com ele. Tentam levá-lo aos seus limites. Os seus limites. É preciso reconhecê-los, em cada momento e cada lugar. Não são sempre os mesmos. A sabedoria dos governos que divergem do Poder está na sutileza com que testam esses limites. E agem em consequência. Avançam onde podem, recuam quando devem, transigem, pactuam, resistem. Precisam se virar com o que têm. Não haverá ajuda de fora. Não há mais Fora. Governar se faz por dentro. Ou quebra.

Tivemos uma experiência de governos que souberam que não há Fora, mas não gostaram do que viram por dentro. Propuseram reformas, desenvolveram projetos que tocaram no que há de mais mortal, de mais pútrido entre os efeitos do Poder: a espantosa pobreza. A vida humilhada. Testaram pouco os limites. Comprometeram-se demais. Uma no prego, outra na ferradura, uma vela a Deus, outra ao diabo. Acabaram não sabendo mais onde estava um e onde se escondia o outro. Deus guiava a esperança — e foi grande! O diabo, como se sabe, mora nos detalhes. É nos detalhes que o Poder está todo presente. E esses governos da última década, que avançaram muito mas não encostaram nos limites, foram quebrados. Não sei se não teriam sido, se tivessem levado mais longe a vara com que tinham de cutucar a onça. Não sei se nos limites o bicho que pega é só uma onça ou é coisa mais feroz. Mas quebraram. Foram quebrados. Eram governos que não estavam no poder. No Poder.

E agora temos um que está. Ou melhor, o Poder está nele. É muito medíocre para ter poder. O Poder o tem. Esse é o momento do maior perigo. Porque no passado estávamos acostumados a lutar de fora para dentro. Mas o Fora acabou. Precisamos aprender a nos mover por dentro, junto com os humilhados do mundo. Movermo-nos com: co-movermo-nos. Precisamos de todas as nossas reservas amorosas para reaprender a política. Deixou de ser óbvia, a política.

Ser amoroso num tempo de raiva e ódio é pedir para perder. Mas há derrotas que honram. Precisamos reaprender a honra. Antes que não haja mais.
Rena lendo jornal Quanto mais mente mais facil mentir calunia

Educação para lançar foguetes

Você terá de contratar e liderar um time com uma missão bem difícil: lançar um foguete tripulado com destino a Marte. Que tipo de profissionais você vai buscar para cumprir essa tarefa? Certamente, pessoas com excelente formação e domínio dos conhecimentos necessários à sua função, capazes de resolver problemas complexos e inesperados, que saibam trabalhar em equipe, desenvolvam estratégias para lidar com diferentes situações – pessoas criativas, inovadoras.

Afinal, chegar a um mundo tão distante não é nada trivial.

Sabe o que mais não é trivial? Lançar 25 foguetes por ano. Às vezes, até mais. E sabe que profissionais fazem isso? Os professores. Cada aluno traz desafios a um professor como os do lançamento de um foguete. Cada um deles tem o próprio sistema de propulsão, tem uma condição inicial, diferentes combustíveis, diferentes trajetórias e projetos de vida. Eles têm muitos mundos a alcançar.

O cérebro humano é muito mais complexo (e interessante) que um motor de foguete. Os mecanismos cerebrais de uma criança, a forma como ela pensa, compreende, aprende, reage, se desenvolve, produz, analisa, reedita – tudo isso compõe uma ciência que precisa ser conhecida por todos os professores preparados para garantir que cada aluno aprenda tudo a que tem direito e muito mais. Ensinar também é uma ciência nada trivial.

Apesar disso, continuamos a ouvir dizer que ser bom professor é um dom. Ao longo da História o professor tem sido representado pela sociedade brasileira como um abnegado: primeiro, como um sacerdote – marca deixada pelos jesuítas –, depois, como uma tia, mulher de espírito maternal que dedicava seu tempo a cuidar de crianças e adolescentes. E se ensinar é um dom, a formação na ciência do ensinar não precisaria ser levada muito a sério: afinal, basta saber o conteúdo que será ensinado e... ora, ensinar.

Nada mais incorreto!

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Infelizmente, a história da formação de professores mostra que, com poucas exceções, desde que se tornou o lócus da formação docente, a universidade seguiu o modelo de preparar para o domínio específico dos conteúdos da área de conhecimento que o professor vai lecionar, em detrimento da formação pedagógico-didática. Embora haja um crescente entendimento de que a formação de professores requer um efetivo preparo pedagógico-didático, ainda é muito forte a depreciação desse aspecto, que se refere a como a criança aprende e à forma de ensinar.

Comumente ouvimos que há excesso de teoria e falta prática. Não é bem isso. O fato é que a teoria, muito necessária, precisa estar atrelada à prática, de modo que uma dialogue com a outra.

Estamos falando em formação do profissional professor, duas palavras com a mesma origem etimológica. Estamos, portanto, falando não apenas do professor por vocação, mas do professor profissional, competente, preparado e valorizado.

Essa separação entre os conteúdos que precisam ser ensinados e o modo de ensiná-los aparece na dualidade bacharelado e licenciatura, modalidades por vezes alocadas em duas unidades universitárias distintas – respectivamente, as faculdades específicas – como de Matemática, Letras, Geografia, Física e Educação Física – e a faculdade de Educação. Como a parte pedagógica é pouco valorizada, as licenciaturas acabam tendo muito menos prestígio no mundo universitário. Afinal, quem se está preparando para a prática do ensino acaba por produzir menos artigos acadêmicos e emplacar menos pesquisas nas publicações especializadas, algo tão valorizado pela academia e pelos incentivos governamentais.

Não há mais a menor dúvida (alguma vez houve?) de que a educação é a base para uma sociedade mais justa e para um país crescer de forma sustentável e com distribuição de renda. Também há inúmeras evidências dos efeitos positivos da educação em outras áreas, como saúde, segurança, inovação, emprego e renda, entre tantas outras.

Se a educação é a base, seu pilar central são os professores. Não há educação de qualidade sem professores qualificados, valorizados, com condições ideais de trabalho. O professor é a base das demais profissões. Por sua imensa importância para cada um de nós e para o Brasil, o trabalho e os resultados desses profissionais devem ser também acompanhados, celebrados, cobrados.

Quando falamos em ter expectativas altas quanto ao aprendizado dos alunos, estamos falando também em altas expectativas acerca do trabalho dos professores. Não esperamos um favor da tia nem o toque mágico do sacerdote. Confiamos ao professor grande parte do que é e será o Brasil. Por isso devemos apoiá-lo.

No País, 61,7% dos futuros professores estão em cursos presenciais e 38,3% em cursos a distância. Em contraposição, 97,3% dos estudantes de Engenharia estão nos presenciais e 2,7% nos cursos a distância. Se, corretamente, as faculdades de Engenharia têm tanto prestígio e compreendemos que são centrais na construção do País, na inovação e no avanço tecnológico, é difícil entender e aceitar a nossa incongruência lógica de não perceber que a formação dos professores é igualmente – ou até mais – importante e complexa. A sólida preparação dos professores exige tanta ou mais ciência.

Podemos entender (mas não justificar) que as universidades – de forma geral, mas não total – não deem a mesma importância à formação dos professores que dão à dos engenheiros. Essa preponderância é inerente à história da construção universitária no Brasil.

Mas precisamos, como sociedade, vestir a carapuça, uma vez que nós mesmos não valorizamos os professores como deveríamos. Ainda temos de caminhar muito rumo a encarar a educação como valor da sociedade, e o professor como o principal profissional do País.

Aí, mais do que nunca, todos e cada um dos alunos serão como foguetes. Poderão ir muito longe, a Marte e muito além.

Rebeldes tateando em busca de uma causa

O sangue do adolescente esfaqueado em Curitiba na última segunda-feira já seria motivo mais que suficiente para tentarmos entender melhor o movimento de ocupação de escolas deflagrado por estudantes secundaristas, apoiados, em alguns casos, por docentes e universitários. Mas a amplitude do movimento suscita questões importantes sobre a presente situação brasileira.

O objetivo declarado, bem o sabemos, é protestar contra a reforma do ensino médio proposta pelo governo Temer. A reforma é uma tentativa de modernizar o currículo, tornando-o mais flexível. Pretende reduzir o número de matérias obrigatórias a fim de aumentar a concentração em Português, Inglês e Matemática. Isso é bom ou ruim? É óbvio que essa pergunta interessa a todos os cidadãos brasileiros, a todas as comunidades de que se compõe a nossa sociedade, não apenas às comunidades diretamente envolvidas no processo educacional.

A primeira questão a considerar é, pois, por que dezenas de milhares de estudantes e professores optaram por uma tática violenta (ocupação é violência), descartando liminarmente o diálogo com as autoridades do governo, com os especialistas que trabalharam no projeto da reforma e com outras comunidades potencialmente interessadas. Por que uma tática que os isola, quando só teriam a ganhar ampliando o alcance de sua manifestação? Por que não uma série bem organizada de debates, pacífica e ordeira, tecnologia que nossa sociedade, felizmente, domina há tanto tempo?

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Sabemos que o comportamento de um grupo social numeroso nunca se deve a uma causa única. Há sempre uma conjunção de motivos. Na reflexão a seguir, abordarei três hipóteses, em grau crescente de plausibilidade, designadas como civismo educacional, ativismo romântico e politização de esquerda.

A hipótese do civismo educacional já foi parcialmente suscitada. Debater a reforma do ensino é um direito de todo cidadão. Entre os docentes e discentes, ou seja, na comunidade mais diretamente envolvida no processo educacional, é razoável admitir que esse direito seja vivenciado de modo mais intenso, como um dever cívico. É difícil crer que essa motivação tenha sido suficiente para levar centenas de milhares de secundaristas a se integrar ao movimento, invadindo escolas e nelas permanecendo por vários dias. Presumivelmente, uma atitude cívica de tal intensidade teria mais chance de se desenvolver entre adultos, principalmente entre os mais bem informados sobre as questões em jogo. Admitamos, porém, que a hipótese do civismo ajude a compreender por que uma parcela dos participantes vê sentido na tática de ocupar escolas.

Minha segunda hipótese é a do ativismo romântico. Para o jovem inclinado ao romantismo, a “normalidade burguesa” é um tédio insuportável. Ele deseja ardorosamente mudar a sociedade, mas não sabe como. Não conseguindo identificar-se com a sociedade existente e não atinando com os fundamentos da ordem política democrática, ele não atura as convenções e instituições que lhe servem de base, vendo-as como um mundo de aparências e hipocrisia. Durante o século 20 o romantismo alimentou todo tipo de fantasia revolucionária; e, ainda hoje, por toda parte e todas as classes e grupos etários há estudantes, intelectuais, artistas e clérigos imbuídos da crença de que só através dessa fonte fáustica chegarão à plena posse de sua alma e ao sentido de sua vida. Num país como o Brasil, socialmente dilacerado e dilacerante, essa forma de romantismo compreensivelmente se alastra com facilidade, se não como uma motivação destrutiva consciente, ao menos como uma tentativa de experimentar situações “contraculturais”, à margem da sociedade.

Mais robusta, entretanto, parece-me ser a hipótese ideológica, ou seja, a da politização de esquerda. Ninguém ignora que o PT e os pequenos partidos comunistas disputam acirradamente o controle do movimento estudantil, geralmente apoiados por uma parcela do corpo docente. Um leitor desavisado poderá surpreender-se com essa afirmação. Esses partidos e suas facções agem orientados pelo que chamam de socialismo. Mas como, se a URSS desmoronou há um quarto de século? Se a China, desde Deng Xiaoping, abandonou suas antigas crenças a respeito da cor do gato, interessando-se apenas em saber se ele come ratos? Sem esquecer que Cuba, com a bancarrota soviética, virou carta fora do baralho. O que resta é a Coreia do Norte brincando de bomba atômica e a Venezuela a um passo de sua tragédia anunciada. Lembremos, como arremate, que a recente eleição municipal e a Operação Lava Jato reduziram o PT a pó de traque.

Contra esse pano de fundo de tantos fiascos, como compreender que as organizações comunistas conservem sua influência e até consigam se expandir no meio estudantil? Dado o espaço disponível, limitar-me-ei a duas observações sucintas. Primeiro, as crenças antiliberais, entre as quais o comunismo se destaca, correspondem com exatidão à noção de ideologia como o oposto do conhecimento racional. Caracterizam-se por uma incapacidade profunda de assimilar e processar informações novas, contrárias ao sentido que lhes é inerente.

Nas condições atuais, justamente por terem perdido seus referenciais internacionais, as esquerdas ditas socialistas regridem a um mero “movimentismo” sustentado em elaborações intelectuais quase totalmente vazias de conteúdo. O leitor interessado em apreciar este ponto pode esquecer seu Marx, vá direto às Reflexões sobre a Violência de George Sorel, o inventor do anarco-sindicalismo. O conteúdo das ideias – Sorel ensinou – é uma questão secundária. Os “oprimidos” aprendem é pelo movimento, por uma luta incessante. Para tanto basta um mito. Pode ser a figura de um populista corrupto ou uma narrativa maniqueísta do tipo “nós contra a elite”. Qualquer mito serve e quanto mais simples, melhor. Os “oprimidos” não precisam queimar pestanas em cima dos cartapácios de Marx.

Brasil deveria mudar o modo como lida com a memória da escravidão?

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Jean Baptiste Debret (1820)
Uma sala com peças de um navio que levava para o Brasil 500 mulheres, crianças e homens escravizados é a principal atração do novo museu sobre a história dos americanos negros, em Washington.

Numa segunda-feira de outubro, era preciso passar 15 minutos na fila para entrar na sala com objetos do São José - Paquete de África, no subsolo do Museu de História e Cultura Afroamericana.

Inaugurado em setembro pelo Smithsonian Institution, o museu custou o equivalente a R$ 1,7 bilhão se tornou o mais concorrido da capital americana: os ingressos estão esgotados até março de 2017.

Em 1794, o São José deixou a Ilha de Moçambique, no leste africano, carregado de pessoas que seriam vendidas como escravas em São Luís do Maranhão. A embarcação portuguesa naufragou na costa da África do Sul, e 223 cativos morreram.

Visitantes - em sua maioria negros americanos - caminhavam em silêncio pela sala que simula o porão de um navio negreiro, entre lastros de ferro do São José e algemas usadas em outras embarcações (um dos pares, com circunferência menor, era destinado a mulheres ou crianças).

"Tivemos 12 negros que se afogaram voluntariamente e outros que jejuaram até a morte, porque acreditam que quando morrem retornam a seu país e a seus amigos", diz o capitão de outro navio, em relato afixado na parede.
Prova de existência

Ferragens usadas em navios negreiros
Expor peças de um navio negreiro era uma obsessão do diretor do museu, Lonnie Bunch. Em entrevista ao The Washington Post, ele disse ter rodado o mundo atrás dos objetos, "a única prova tangível de que essas pessoas realmente existiram".

Destroços do São José foram descobertos em 1980, mas só entre 2010 e 2011 pesquisadores localizaram em Lisboa documentos que permitiram identificá-lo. Um acordo entre arqueólogos marinhos sul-africanos e o Smithsonian selou a vinda das peças para Washington.

Que o destino do São José fosse o Brasil não era coincidência, diz Luiz Felipe de Alencastro, professor emérito da Universidade de Paris Sorbonne e um dos maiores especialistas na história da escravidão transatlântica.

Ele afirma à BBC Brasil que fomos o paradeiro de 43% dos africanos escravizados enviados às Américas, enquanto os Estados Unidos acolheram apenas 0,5%.

Segundo um estudo da Universidade de Emory (EUA), ao longo da escravidão ingressaram nos portos brasileiros 4,8 milhões de africanos, a maior marca entre todos os países do hemisfério.

Esse contingente, oito vezes maior que o número de portugueses que entraram no Brasil até 1850, faz com que Alencastro costume dizer que o Brasil "não é um país de colonização europeia, mas africana e europeia".

O fluxo de africanos também explica porque o Brasil é o país com mais afrodescendentes fora da África (segundo o IBGE, 53% dos brasileiros se consideram pretos ou pardos).

Por que, então, o Brasil não tem museus ou monumentos sobre a escravidão comparáveis ao novo museu afroamericano de Washington?
Apartheid e pilhagem da África

Para Alencastro, é preciso considerar as diferenças nas formas como Brasil e EUA lidaram com a escravidão e seus desdobramentos.

Ele diz que, nos EUA, houve uma maior exploração de negros nascidos no país, o que acabaria resultando numa "forma radical de racismo legal, de apartheid".

Até a década de 1960, em partes do EUA, vigoravam leis que segregavam negros e brancos em espaços públicos, ônibus, banheiros e restaurantes. Até 1967, casamentos inter-raciais eram ilegais em alguns Estados americanos.

No Brasil, Alencastro diz que a escravidão "se concentrou muito mais na exploração dos africanos e na pilhagem da África", embora os brasileiros evitem assumir responsabilidade por esses processos.

Ele afirma que muitos no país culpam os portugueses pela escravidão, mas que brasileiros tiveram um papel central na expansão do tráfico de escravos no Atlântico.

Alencastro conta que o reino do Congo, no oeste da África, foi derrubado em 1665 em batalha ordenada pelo governo da então capitania da Paraíba.

"O pelotão de frente das tropas era formado por mulatos pernambucanos que foram barbarizar na África e derrubar um reino independente", ele diz.

Vizinha ao Congo, Angola também foi invadida por milicianos do Brasil e passou vários anos sob o domínio de brasileiros, que a tornaram o principal ponto de partida de escravos destinados ao país.

"Essas histórias são muito ocultadas e não aparecem no Brasil", ele afirma.

Piano ao domingo

Dois anos para meditar, antes da sucessão presidencial

A partir de hoje começa no país um jejum de dois anos sem eleição. Excelente oportunidade para 140 milhões de eleitores meditarem a respeito dos votos dados e por dar. Arrependimento? Sensação de dever cumprido? Ou de tempo perdido?

Da próxima vez que o eleitor se deparar com as diabólicas maquininhas de votar, estará escolhendo o futuro presidente da República, além de governadores, deputados e senadores. Tempo de sobra para decidir sobre os rumos a tomar.

Do que o Brasil mais necessita, além de eleições? Persistir no desvio adotado de maio para cá, sob nova direção e empenhado em cercear direitos e exigir sacrifícios das camadas menos favorecidas? Ou ampliar espaços para distribuir pela maioria carente a riqueza concentrada nas elites?

São duas alternativas a concentrar as atenções gerais sem possibilidade de integração entre elas. Ou uma ou outra. Dois anos bastarão para o país decidir se os 12 milhões de desempregados se multiplicarão ou serão sensivelmente reduzidos. Tempo há para a sociedade definir-se até que outra vez sejamos chamados a votar pela distribuição ou a concentração da riqueza.

Desde que o mundo é mundo essa dicotomia atormenta a humanidade. Raras vezes, porém, abre-se ocasião como essa, um interregno de dois anos para a revelação do futuro.
O PT começa a reunir os cacos, visando ressurgir, e um nome começa a ser lembrado para presidir o partido. É o ministro Patrus Ananias, que até agora passou incólume pelo lamaçal dos últimos anos. Resta saber se tem disposição.

Os idiotas confessos

Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: — tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: — o primeiro a identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem. No passado, o marido era o último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego para o óbvio ululante.

Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: — “Uma santa! Uma santa!”. Mas o tempo passou. Hoje, dá-se o inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora, dia etc. etc.

Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão. E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas patadas: — “Eu sou um quadrúpede!”. Nenhuma objeção. E, então, insistia, heróico: — “Sou um quadrúpede de 28 patas!”. Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota.

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E o imbecil como tal se comportava. Nascia numa família também de imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssima elite podia pensar. A vida política estava reservada aos “melhores”. Só os “melhores”, repito, só os “melhores” ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a decisão política, o crime político.

Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade. Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quando cruzava com um dos “melhores”, só faltava lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a desgraçada.

Vejam bem: — o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que só os “melhores” podem pensar, agir, decidir. Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista aposentada me dizia: — “Eu não tenho o intelectual muito desenvolvido”. Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora! Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo.

De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: — a vergonhosa inferioridade numérica dos “melhores”. Para um “gênio”, 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: — trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão.

Se o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria a audiência de um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pequeno Maomé. Outrora, os imbecis faziam platéia para os “superiores”. Hoje, não. Hoje, só há platéia para o idiota. É preciso ser idiota indubitável para se ter emprego, salários, atuação, influência, amantes, carros, jóias etc. etc.

Quanto aos “melhores”, ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos, uma pose profética, só não previu a “invasão dos idiotas”. E, de fato, eles explodem por toda parte: são professores, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas.

E, então, os valores da vida começaram a apodrecer. Sim, estão apodrecendo nas nossas barbas espantadíssimas. As hierarquias vão ruindo como cúpulas de pauzinhos de fósforos. E nem precisamos ampliar muito a nossa visão. Vamos fixar apenas o problema religioso. A Igreja tem uma hierarquia de 2 mil anos. Tal hierarquia precisa ser preservada ou a própria Igreja não dura mais quinze minutos. No dia em que um coroinha começar a questionar o papa, ou Jesus, ou Virgem Maria, será exatamente o fim.

É o que está acontecendo. Nem se pense que a “invasão dos idiotas” só ocorreu no Brasil. Se fosse uma crise apenas brasileira, cada um de nós podia resmungar: — “Subdesenvolvimento” — e estaria encerrada a questão. Mas é uma realidade mundial. Em que pese a dessemelhança de idioma e paisagem, nada mais parecido com um idiota do que outro idiota. Todos são gêmeos, estejam uns aqui, outros em Cingapura.

Mas eu falava de que mesmo? Ah, da Igreja. Um dia, ao voltar de Roma, o dr. Alceu falou aos jornalistas. E atira, pela janela, 2 mil anos de fé. É pensador, um alto espírito e, pior, uma grande voz católica. Segundo ele, durante os vinte séculos, a Igreja não foi senão uma lacaia das classes dominantes, uma lacaia dos privilégios mais hediondos. Portanto, a Igreja é o próprio Cinismo, a própria Iniquidade, a própria Abjeção, a própria Bandalheira (e vai tudo com a inicial maiúscula).

Mas quem diz isso? É o Diabo, em versão do teatro de revista? Não. É uma inteligência, uma cultura, um homem de bem e de fé. De mais a mais, o dr. Alceu tinha acabado de beijar a mão de Sua Santidade. Vinha de Roma, a eterna. E reduz a Igreja a uma vil e gigantesca impostura. Mas se ele o diz, e tem razão, vamos, já, já, fechar a Igreja e confiscar-lhe as pratas.

Cabe então a pergunta: — “O dr. Alceu pensa assim?”. Não. Em outra época, foi um dos “melhores”. Mas agora é preciso adular os idiotas, conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje, até o gênio se finge imbecil. Nada de ser gênio, santo, herói ou simplesmente homem de bem. Os idiotas não os toleram. E as freiras põem short, maiô e posam para Manchete como se fossem do teatro rebolado. Por outro lado, d. Hélder quer missa com reco-reco, tamborim, pandeiro e cuíca. É a missa cômica e Jesus fazendo passista de Carlos Machado. Tem mais: — o papa visitará a América Latina. Segundo os jornais, teme-se que o papa seja agredido, assassinado, ultrajado etc. etc. A imprensa dá a notícia com a maior naturalidade, sem acrescentar ao fato um ponto de exclamação. São os idiotas, os idiotas, os idiotas.

Nelson Rodrigues

Juiz também deve pensar

8 motivos para vivenciar e valorizar trabalhos manuais |
Cada juiz do Brasil deveria chegar em casa, olhar-se no espelho, refletir e concluir: “Eu decido o futuro das pessoas; na democracia, a cada vez que falo por intermédio de um grupo, maculo a minha independência
Reinaldo Jardim

Desprezar abstenções, votos brancos e nulos desmoraliza o regime democrático

Quinto maior país em extensão territorial e número de habitantes, oitava economia do mundo, o Brasil é um gigante que se comporta como um nanico e pode ser comparado à metamorfose ambulante do Raul Seixas, pois tem legislações avançadas que convivem com leis absolutamente ridículas. Basta lembrar o caso da gravação do diálogo entre Lula da Silva e Dilma Rousseff, quando os dois acertaram a prática de atos ilegais, mas a escuta não foi considerada como prova porque ocorreu alguns minutos depois de o juiz assinar o despacho suspendendo a autorização da quebra do sigilo. Ou lembrar a anulação do processo contra o banqueiro Daniel Dantas, porque a prisão dele vazou para a imprensa.

Sinceramente, em qualquer país minimamente sério, o que interessa é que se faça justiça, apenas isso. Os detalhes de obtenção das provas não são considerados com o rigor provinciano da Justiça brasileira.

Hoje será realizado o segundo turno das eleições em 57 das maiores cidades brasileiras. Em algumas delas, especialmente em capitais importantes como Rio de Janeiro e Porto Alegre, grande parte do eleitorado não se mostra disposto a apoiar nenhum dos candidatos que disputam as prefeituras, estando previsto número recorde de abstenções, votos em branco e nulos.

Charge (Foto: Miguel)

Não se trata de mais uma pegadinha, como as eleições do rinoceronte Cacareco, em São Paulo, do bode Cheiroso, em Pernambuco, e do macaco Tião, no Rio de Janeiro. Desta vez, são protestos eleitorais que precisam ser levados a sério. O fato concreto é que, devido aos excessos do pluripartidarismo brasileiro e ao desgaste dos políticos, uma expressiva parcela dos eleitores está se recusando a eleger os candidatos que passaram para segundo turno, e essa vontade precisa ser democraticamente considerada.

Fica evidente que existe a necessidade de mudança da legislação, para aperfeiçoar a democracia brasileira, que entrou num caminho obscuro a partir da Constituição de 1988, pela determinação de que não sejam computados os votos em branco para a verificação da maioria absoluta.

Regulamentada apenas com a edição da chamada Lei das Eleições (Lei 9.504/97), a alteração constitucional tornou os votos em branco inválidos, igualando-os aos nulos (artigos 2º e 3º), para eleição de presidente, governador e prefeito. Desde então, os votos brancos também são descartados na apuração dos candidatos eleitos. São considerados apenas os votos válidos. Portanto, se um candidato tiver apenas um voto, estará eleito, vejam que situação absurda a lei permite.

Portanto, não há qualquer dúvida de que a Constituição de 1988 e as leis subsequentes introduziram no Brasil uma prática antidemocrática, que pode consagrar a vitória da minoria.

A hipótese que se coloca é a seguinte. Se abstenções, votos nulos e em branco significarem a maioria absoluta (metade mais um) dos eleitores, será democrático entregar o poder a um candidato que teve minoria de votos?

Perguntar não ofende, como diria o genial humorista Paulo Silvino, mas é óbvio que não se deve entregar o poder a quem não conta com a confiança da maioria absoluta dos eleitores. Aliás, foi justamente para preservar os direitos da maioria dos eleitorado que se criou o segundo turno, que entre nós hoje está se mostrando desvirtuado.

O voto obrigatório é importante, porque anima os brasileiros, quase todos têm muito orgulho do direito de voto, a eleição ocorre sempre em clima de festa. Mas não há dúvida de que o direito da maioria absoluta precisa ser acatado. Se os candidatos forem recusados por metade mais um dos eleitores, é sinal de que não conseguiram a necessária representatividade. É preciso entender que o eleitor tem direito de dizer não.

Paisagem brasileira


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Serra de Petrópolis, Edgar Walter (1917-1994)

Prisão política

É possível ler a cidade. Há um código próprio, repertório, sintaxe e semântica. A legibilidade da cidade é um saber consolidado na teoria urbana desde final do século XIX, quando buscavam-se soluções que permitissem a melhoria na sua apreciação estética: o embelezamento urbano. Mas é a partir dos anos 60, principalmente graças ao trabalho de Kevin Lynch e seu livro “A imagem da cidade”, que se amplia a compreensão de como o resultado formal do território fornece estímulos para nossos sentidos e cognição. A sucessão dos nossos deslocamentos físicos pela cidade, e no tempo, permitiriam a constituição de uma imagem. Consequentemente, também, uma possível compreensão, uma percepção emocional ou uma memória surgiriam. Essas sensibilizações seriam, portanto, individuais e compartilhadas.

Como disse antes, esse conhecimento qualifica-se nos anos 60, e isso quer dizer que, tanto era contrarresposta ao vigente funcionalismo do planejamento urbano modernista, como também inseria-se numa conjuntura cultural muito fértil, do “paz e amor” ao desenvolvimento dos circuitos integrados que originariam os chips que controlam tudo agora.

Estranhamente, hoje, falar sobre a forma da cidade, tão absortos que estamos com economia, política, arte, meio ambiente, os importantíssimos virais das redes sociais, e crises sem fim, converte-te num “hippie” deslocado em um mundo apressado e aborrecido. Mas trata-se de tema essencial, pois a urbanização ocorre apesar do planejamento urbano.

Garotinha e sua boneca sentando nas ruínas de sua casa bombardeada em 1940 na cidade de Londres:
Como resultado de processos controláveis e imprevisíveis, concomitantes, randômicos, urge mais corrigir e aperfeiçoar a urbanização do que tentar dominá-la. Preparar os lugares para serem mais humanos, inclusivos, acessíveis e ordenados é uma emergência. Necessitamos de cidades que consigamos ler para nos compreender. Isso não significa pegar a direção certa para um determinado destino, mas fazer do nosso destino, juntos na cidade, uma maneira de aperfeiçoamento, individual e coletivo. Pois é por isso que amamos as cidades e as buscamos, pois são o ambiente “natural" da nossa espécie.

Fazemos a forma da cidade coletivamente, mas ela também nos forma. Seu desenho tem impacto na qualidade de vida, libertando ou condenando-nos. Não à morte, mas a uma vida sem sonho, sem prosperidade, sem riquezas materiais e simbólicas. Aloisio Magalhães, grande designer e pensador, a quem sempre recorro em preces racionais, dizia: “Será que a nação brasileira pretende desenvolver-se no sentido de se tornar uma nação rica, uma nação forte, poderosa, porém uma nação sem caráter?” Com tantos centros históricos vazios e patrimônios culturais arruinados, com tantas periferias sem dignidade, temo que estejamos embevecidos, ou pior, que as próprias práticas políticas alimentem-se dessas formas urbanas desumanas.

A forma da cidade é também resultado do acúmulo politico. No Brasil é o produto imoral da ausência total de políticas habitacionais. Fechem o Ministério das Cidades, pois não serve pra nada! Seria uma boa economia. Por que os juízes não cobram a aplicação dos preceitos constitucionais na organização das cidades? Ou encaramos a agenda urbana ou continuaremos a reproduzir prisões políticas. Promete-se muito o que cada lugar da cidade quer ouvir, mas não temos evidências concretas que garantam melhorias urbanas.

Hoje é dia de eleição dentro das novas regras. Ótimo que se afastou o dinheiro de empresas, contudo a redução do tempo das campanhas é uma ameaça à qualidade da democracia. Já não há mais festa nem alegria no dia do voto. O exercício político da cidadania transforma-se em tarefa enfadonha. Deveríamos ampliar drasticamente o tempo das campanhas eleitorais de modo que se possa conhecer profundamente os candidatos. O que realizaram, seus planos, metas, números, fatos e evidências. Tão pouco a imprensa tem oportunidade para escrutiná-los revelando, com qualidade, pontos fracos e fortes.

Quatro anos são 1.460 dias, e será neste tempo que as cidades poderão melhorar ou não. A campanha eleitoral tem apenas 45 dias. É somente 3,08 % do tempo do mandato! É um equívoco matemático! É uma chave de cadeia condenando os brasileiros a cidades ineficientes, ruins, e indignas. Melhor lidar com candidatos por seis meses que com péssimos gestores municipais por quatro anos. Esse sistema é uma prisão política, condenando-nos a repetitivas formas urbanas desumanas. Precisamos de seis meses para conhecer e escolher prefeitos competentes, pois o brasileiro está preso em cidades que não consegue compreender e o político incapaz está solto por aí.

Washington Fajardo

Lula sai da eleição de 2016 pela porta do fundo

No primeiro turno da eleição municipal, Lula votou em São Bernardo do Campo. Estava acompanhado de sua mulher, Marisa, do prefeito petista Luiz Marinho e do candidato do PT à prefeitura da cidade, Tarcísio Secoli. Na saída, Lula fez uma aposta alta: “O PT vai surpreender nesta eleição”. Disse meia dúzia de palavras sobre a disputa na capital paulista: ''Se o povo de São Paulo tiver o orgulho que pensa que tem, se tiver a inteligência que pensa que tem, ele não tem outra coisa a fazer que não seja votar no (Fernando) Haddad''.

Todos já sabiam que o PT estava à beira do abismo. Mas ninguém poderia supor que o morubixaba da legenda fosse pisar voluntariamente no sabonete. Em São Bernardo, Secoli não foi para o segundo turno, que será disputado por dois aliados do tucano Geraldo Alckmin: Orlando Morando (PSDB) e Alex Manente (PPS). Em São Paulo, sucedeu algo mais dramático. Além de ficar pelo caminho, Haddad assistiu ao triunfo do tucano João Doria, afilhado de Alckmin, no primeiro round. Coisa jamais vista na capital. Nacionalmente, o PT foi dizimado.


Lula ficou numa situação análoga à do apostador que deixa as calças sobre o pano verde e abandona o salão de jogos sem dinheiro para o ônibus. Queimaram-se os fusíveis da intuição lendária do grande guia dos povos. Mas nada é tão ruim que não possa piorar. Lula parece mesmo decidido a provar que é errando que se aprende… A errar. Resolveu que, neste domingo, não irá votar. Sua ausência foi confirmada pelo Instituto Lula. Ele acaba de completar 71 anos. E alega que a lei desobriga os septuagenários de votar.

Curioso, muito curioso, curiosíssimo. No primeiro turno, Lula fora vaiado e aplaudido na sessão eleitoral em que votou. Acionou seus tímpanos seletivos. ''Eu não ouvi vaias. Era tanto aplauso! É como quando o Corinthians vai jogar, mesmo sendo no Itaquerão. Tem sempre meia dúzia de torcedores do outro time. Pergunta se o jogador ouve vaia. Só ouve aplausos.'' Agora, excluído da partida, age como garoto mimado. Se pudesse, interromperia o jogo, levando a bola para casa. Por sorte, nas democracias a bola pertence ao eleitor.

Lula gostaria de ser candidato à Presidência em 2018. Mesmo que sua situação penal o exclua dessa briga, como democrata que diz ser deveria respeitar a divergência, abstendo-se de desqualificar as opções alheias com atitudes desnecesárias. Do modo como passou a agir, pode empurrar até as pessoas que ainda tentam admirá-lo para uma conclusão inexorável: quem acha que não tem idade para votar já está velho demais para ser votado.

Na fatídica entrevista em que vaticinara o desempenho surpreendente do PT, Lula desdenhara dos efeitos do petrolão sobre as urnas. Rosnara para a conjuntura: ''Quanto mais ódio se estimula contra mim, mais amor se cria. Essa gente vai se surpreender porque, a partir dessas eleições, eu vou começar a andar pelo Brasil…” Sem saber como ficará o seu direito de ir e vir depois que a Lava Jato decidir o seu futuro, Lula Faria um bem a si mesmo se andasse do seu apartamento, em São Bernardo, até sua zona eleitoral. Não resolve o fiasco do PT. Mas evita o constrangimento de sair da eleição municipal de 2016 pela porta do fundo.