Não há programa político mais belo do que o expresso por Lincoln durante a Guerra Civil Americana: “Um governo do povo, pelo povo e para o povo”. Mas na década de 1950 Eisenhower, um ultraconservador, já denunciava o perigo do crescimento de um “complexo industrial-militar”. Uma entidade silenciosa e brutal, para a qual “o povo” é uma coisa abstrata, e “governo” uma correia de transmissão. O complexo industrial-militar tornou-se o Poder. Os governos podiam lhe ser dóceis ou, ainda que com contradições, lutar com ele. Kennedy quis lutar. Sabemos como acabou.
Parece tremendo, imperial. Há filósofos e cientistas políticos que usam essa palavra para falar do Poder no mundo de hoje: o Império. É uma boa palavra. Mas não é original. Já tivemos impérios antes, com essa natureza global. O de Alexandre. O romano. O de Carlos Magno. O britânico. O nosso tem um componente novo, desnorteante: não precisa de imperador. Funciona como caem as maçãs e retornam os cometas: no piloto automático. E é policêntrico. Em geral, quando dizemos “Império” pensamos logo nos Estados Unidos. Mas há muito tempo que esse domínio precisa ser partilhado. Ou se torna ineficaz. E no mundo pós-moderno, ser ineficaz é mortal. O Poder funciona porque se policentralizou. Ele exige a Europa, a China, o Japão. O Ocidente e o Oriente. E as suas beiradas: grupo dos 20, BRICS, Mercosul e o que mais houver. Sua estrutura é móvel. Contraditória e convergente. Nos seus pontos contraditórios há às vezes governos, regiões inteiras, que se opõem relativamente ao Centro. Negociam com ele. Tentam levá-lo aos seus limites. Os seus limites. É preciso reconhecê-los, em cada momento e cada lugar. Não são sempre os mesmos. A sabedoria dos governos que divergem do Poder está na sutileza com que testam esses limites. E agem em consequência. Avançam onde podem, recuam quando devem, transigem, pactuam, resistem. Precisam se virar com o que têm. Não haverá ajuda de fora. Não há mais Fora. Governar se faz por dentro. Ou quebra.
Tivemos uma experiência de governos que souberam que não há Fora, mas não gostaram do que viram por dentro. Propuseram reformas, desenvolveram projetos que tocaram no que há de mais mortal, de mais pútrido entre os efeitos do Poder: a espantosa pobreza. A vida humilhada. Testaram pouco os limites. Comprometeram-se demais. Uma no prego, outra na ferradura, uma vela a Deus, outra ao diabo. Acabaram não sabendo mais onde estava um e onde se escondia o outro. Deus guiava a esperança — e foi grande! O diabo, como se sabe, mora nos detalhes. É nos detalhes que o Poder está todo presente. E esses governos da última década, que avançaram muito mas não encostaram nos limites, foram quebrados. Não sei se não teriam sido, se tivessem levado mais longe a vara com que tinham de cutucar a onça. Não sei se nos limites o bicho que pega é só uma onça ou é coisa mais feroz. Mas quebraram. Foram quebrados. Eram governos que não estavam no poder. No Poder.
E agora temos um que está. Ou melhor, o Poder está nele. É muito medíocre para ter poder. O Poder o tem. Esse é o momento do maior perigo. Porque no passado estávamos acostumados a lutar de fora para dentro. Mas o Fora acabou. Precisamos aprender a nos mover por dentro, junto com os humilhados do mundo. Movermo-nos com: co-movermo-nos. Precisamos de todas as nossas reservas amorosas para reaprender a política. Deixou de ser óbvia, a política.
Ser amoroso num tempo de raiva e ódio é pedir para perder. Mas há derrotas que honram. Precisamos reaprender a honra. Antes que não haja mais.
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