segunda-feira, 7 de novembro de 2022

O Brasil pós-goiabeira

Não é necessário enxergar Jesus na goiabeira para concordar com a turma da Regina Duarte: a eleição foi roubada.

Mesmo alguém da altura do general Heleno consegue ver os círios à distância — se na Terra nada acontece sem a vontade de Deus, a derrota foi mensagem divina, caro cristão.

Aleluia, irmão.

Aqueles dois Fábios (mesmo o genro arrependido), mais o balila da PRF e as patifarias do posto Ipiranga (sem gasolina por causa do bloqueio de seus companheiros) acabaram punidos ao desrespeitar o sétimo mandamento.

Os 7 milhões de votos a mais, depositados no segundo turno na equipe enfim derrotada, resultam do uso descarado da máquina. Somando com Ciro Nogueira, que é bom de conta: sem a caneta e as roubadas de mão, boa parte sob o silêncio da Justiça, jamais chegariam aos 58 milhões de votos.

De fato, a eleição foi roubada. Sem a reza estatal, o último círculo do inferno de Dante seria a morada de Bolsonaro já no primeiro turno.


Outros métodos de conseguir votos também não surtiram efeito. A estratégia Carla Zambelli, por exemplo: evitar à bala voto de eleitor lulista.

Impressionante. Eu que apanhei da polícia da ditadura e do coronel Erasmo Dias jamais vira algo tão grotesco. Estava naquela tarde a cem metros da pistoleira. Comprava o lindíssimo livro de Geraldo Carneiro “Folias de aprendiz” e a reedição de “O eleito”, de Thomas Mann, na nova Livraria da Vila, na Alameda Lorena. Cercada de seguranças, a deputada bolsonarista, com um andar de quem cerca galinha no terreiro, empunhava revólver contra um adversário. Em pleno Jardim Paulista, no final de sábado, ao lado de crianças, pais e avós que passeavam sob a preguiçosa nesga de sol, a celerada assustou a todos. Não só pela arma, mas principalmente por cair feito goiaba ao trocar a perna direita pela esquerda (me lembrou cenas de “O Gordo e o Magro”). Com o jeans bem acima do umbigo, em estilo consagrado por Mazzaropi, aproveitou a cobertura de seus imensos seguranças para mostrar valentia.

Assim como uma eleição limpa jamais daria 58 milhões de votos a Bolsonaro, a dublê de Charles Bronson não teria sido um risco aos populares caso estivesse sem os seguranças e não panfletasse no tranquilo bairro dos Jardins. Duvido ela fazer isso perto de algum endereço da Gaviões ou da Galoucura. É um desafio.

A cena autoritária antecipava o módulo Venezuela produzido pelos bolsonaristas na madrugada de segunda. Os bloqueios trouxeram desabastecimento (principalmente em Santa Catarina, bem feito), causaram prejuízo de milhões e provocaram várias mortes. Felizmente foram poucas e não seguiram o padrão cloroquina da turma.

Ao bloquear as estradas e avenidas, vale lembrar, os bolsonaristas deixaram de cumprir a promessa de não dilapidar patrimônio público e de não invadir propriedade alheia. Os pneus queimados (curiosamente novos) por certo foram doados por almas caridosas, como antecipação de dízimo.

Chovia fino e fazia frio nas barricadas golpistas, mas a essa altura, como nem os fascistas são de ferro, Zambelli já se encontrava no confortável calor dos Estados Unidos, e Bolsonaro, birrento, teimava em esconder a bola no quentinho do Alvorada.

Ato contínuo, os tiozinhos do WhatsApp correram para a porta dos quartéis. Não pediam intervenção psiquiátrica, mas um golpe militar. Afinal, propagavam, tinham sido roubados em 19 milhões de votos, Deus não atendera suas preces, e não seria justo suas empregadas voltarem a frequentar a Disneylândia.

Ali estavam as netas de quem protestou na Marcha de Deus pela Família, em 1964, pedindo um golpe militar. Suas avós inventaram a ameaça do comunismo porque temiam reformas que dariam direitos básicos aos trabalhadores. As descendentes se mostram revoltadas com a maioria dos votos em Lula saídos do Nordeste. De novo retorna o pobre fantasma roto do comunismo, assoprado pela mesma turma que no carnaval compra abadá para seguir o trio elétrico de Daniela Mercury —e então escande preconceitos contra a cantora e os nordestinos. Sem Salvador, estariam na lama.

Aproveitei que Bolsonaro se encontrava debaixo da cama para não entregar a faixa presidencial e mergulhei em “Folias de aprendiz”, invejáveis memórias do doce poeta Geraldo Carneiro.

Para quem vive nos bloqueios das estradas e no WhatsApp: Geraldo é também autor de canções em parceria com Astor Piazzola, Egberto Gismonti e Francis Hime. Três gênios. Teve ainda sorte de viver ao lado de deuses como Paulo Mendes Campos e Tom Jobim e de compartilhar vários segredos de Vinícius de Moraes.

Seu livro traz de volta o Brasil civilizado, carinhoso e tolerante que se busca no pós-goiabeira. E com o retorno do humor, porque, afinal, a missa de sétimo dia merece ser oficiada pelo Padre Kelmon.

Pensamento do Dia

 


Em campo tóxico

Confirmada a vitória do rito democrático, ressoam frases aliviadas de "retorno à normalidade". Mas pode ser muito enganoso um terreno social minado pela "hungranização" incubada, estilo Viktor Orbán, ou seja, a modalidade de golpe de Estado sem tanques, com aparências normais. Sobre isso, aliás, a ornitologia tem algo a dizer.

Em pauta, um exótico falcão, conhecido como picanço ou pássaro-açougueiro, que não possui garras e, ainda por cima, canta. Igual aos demais, caça aves de menor porte. Só que em vez de matar na hora, espeta-as em espinheiros, arames farpados ou objetos pontiagudos, voltando depois para dilacerar e comer. A natureza autorregula-se: essa rapineira dispensa unhas afiadas porque mata de modo indireto, ecologicamente, por capilaridade de meios.


Assim também é possível figurar o tipo de golpe que, no silêncio comprometido das guardas pretorianas, lança mão de um meio ambiente favorável ao fluxo veloz de estímulos corrosivos do caráter e à anemia da civilidade. Tudo que troque a substância política pela aparência pode servir de ferramenta para prostrar a vitalidade da cidadania. Substanciais são as instituições educativas (escola, família, associações civis, imprensa livre), onde a democracia é concreta. Senão, o que se tem é o sepulcro caiado da história viva.

As redes sociais têm sido a pá de cal com que a ultradireita mascara a realidade. Moderno certamente é o fenômeno da capilaridade digital, base para que o ecossistema de algoritmos se imponha como solo real na sociedade da informação. O problema é que, por manipulação, as redes vistam aparências de realidade última, distorçam modos de apreensão do mundo e empacotem fatos.

Isso já ocorria na velha mídia, em outra escala. Agora, porém, cada um é manipulador de si mesmo, como efeito da individualização digitalizada dos estímulos. No vaivém das aparências, uma coisa é ela mesma e seu contrário, assim como o falcão que canta para matar.

O socioambiente está posto em risco. Como um campo minado pelo veneno da antidemocracia, o golpe se faz autoaplicado e permanente. Corre perigo a coexistência civil em meio a instituições fragilizadas e à mentira capilarizada em rede como certeza paranoica de que o inimigo é a diversidade.

Mas a atmosfera tóxica deprime espíritos, exaure o ânimo da nação. Por isso, votos contados, é um alívio respirar, como canta uma voz nordestina, "na bruma leve das paixões que vêm de dentro". É hora de reconstrução pessoal, obrigatoriamente a mesma de uma vigilância institucional continuada: espetado na ignorância dos fatos e na delinquência política, o corpo da democracia permanece vulnerável à dilaceração por aprendizes vorazes dos pássaros-açougueiros.

Descontrolados


Os delírios de uma minoria barulhenta e bagunceira são inspirados por Bolsonaro. Mas ele não tem controle sobre eles
Jerônimo Teixeira

Sem panos quentes

Acusados de ativismo político e excessos, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral foram implacáveis para impedir arreganhos golpistas, garantir a democracia e seu ápice: a voz do voto. Uma batalha dura, não raro com inimigos anônimos escondidos nas baixarias da deep web, e que ainda não se encerrou. Aqueles que insistem na imposição da minoria depois de perder as eleições, orientando o caos e atormentando a vida do país, terão de prestar contas à Justiça, sob pena de se normalizar a rejeição ao resultado das urnas – um precedente gravíssimo.

Aos crimes pré-eleitorais – assassinato de militantes adversários. agressões e assédio eleitoral, polícia rodoviária “fiscalizando” ônibus de eleitores do Nordeste -, os orquestradores da balbúrdia multiplicaram crueldades, incluindo a morte de uma garota de 12 anos e o quase enforcamento de outra criança, nesse caso por um policial militar, só porque ela preferia o “Lula lá”. Tudo ainda pendente de punição, de preferência rápida.

Estimulados pelo presidente derrotado a ocuparem as ruas e iludidos quanto a uma prometida intervenção militar, rebatizada de “intervenção federal”, que jamais teve qualquer chance de acontecer, fiéis se movimentaram como baratas tontas. Protagonizaram cenas surreais, hilárias e, ao mesmo tempo, de dar dó. Marcharam com a bandeira nacional na posição do sabre, ergueram o braço em saudação nazista enquanto cantavam o Hino Nacional. Teve um militante verde-amarelo agarrado a um caminhão que furou o bloqueio e outro que incendiou o próprio carro. Viraram “memes” nas redes sociais, piada.

Entrevistada, uma jovem na porta de um quartel dizia que estava lutando contra o comunismo. Questionada sobre o que era o comunismo, reagiu: – “Comunismo, pô!” Aos prantos, uma bloqueadora de estrada, branca de olhos verdes, reclamava da “polícia comunista” que lançou bombas de efeito moral sobre seu grupo. Outro manifestante disse que queria um Brasil melhor do que estava hoje. Como melhor? perguntou o repórter. “Melhor”, respondeu, como se o seu candidato não ocupasse o governo há quatro anos.

Tudo a revelar a que ponto chegaram a cultura do ódio, o poder da desinformação e a manipulação sobre a ignorância.

No feriado de finados, as imagens das manifestações nas portas dos comandos militares deixavam claro o quão os atos foram planejados e organizados. Patrocinadores instalaram banheiros químicos. As bandeiras do Brasil agitadas eram bonitas, todas novinhas e do mesmo tamanho, doadas nas esquinas. Churrasco nas estradas, lanches e capas de chuva nos atos urbanos eram distribuídos gratuitamente.

Sem poder contar com o procurador-geral da República – o lambe-botas Augusto Aras chegou a dizer que os bloqueios nas estradas eram “rescaldo indesejável, porém compreensível” -, a Subprocuradoria e os MPs dos Estados iniciaram uma série de investigações sobre os atos da semana, com foco nos financiadores. As requisições incluem o presidente em fim de mandato, cujo silêncio covarde não pode servir como salvaguarda, além de seus filhos.

O zero três Eduardo tem sido ativíssimo. Traduziu a mudez de quase 45 horas do pai como apoio às manifestações e se manteve ligado na tarefa de incentivá-las fora das rodovias e diante dos quartéis. Mais um abuso criminoso da crença popular, pois o fez por má-fé, sabendo que não há hipótese de qualquer ação militar.

O STF e o TSE agiram com firmeza nos últimos tempos. Merecem elogios e agradecimentos. Mas o Brasil, acostumado aos panos quentes em nome de concertações fictícias, não pode se intimidar. Terá de enfrentar investigações, processos indigestos e punições. Sem caça às bruxas, mas com penalizações aos que abusam da democracia com o intuito de destruí-la. Sem exceções.

O Brasil nos próximos tempos

E agora, José? Qual é o rumo? Descartes ensinava: perdido numa floresta, sem saber se está no meio ou perto das margens, caminhe para frente. Sem fazer curvas. É o que o Brasil precisa fazer. Caminhar. Sem titubear.

Com a experiência adquirida em dois mandatos, sob solavancos, abalos, pressões e contrapressões, Luiz Inácio saberá conduzir o barco. Que deverá enfrentar tempestades, bastando que olhemos para as nuvens plúmbeas que descem de maneira ameaçadora sobre o território. A começar pela prioridade número um, acabar com a fome que assola mais de 30 milhões de brasileiros.

Afinal, o que podemos distinguir no horizonte afora os estragos que a paisagem tropical nos mostra, como a devastação de florestas, as carências nas áreas de saúde, educação, habitação, saneamento, segurança pública, mobilidade urbana? Na sequência, seleciono algumas situações e tendências que movimentarão a esfera política nos próximos tempos.


O país volta a respirar. Tensões institucionais, que marcaram o ciclo Bolsonaro, tendem a arrefecer, a partir de articulação mais eficaz entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

O país resgatará sua credibilidade nos foros internacionais, ganhando respeito dos parceiros, tarefa que começa imediatamente com a participação de Lula no COP27, a Conferência do Clima, da ONU, a se realizar agora em novembro, no Egito.

Encerramento da era 64 - Na poeira do tempo, veremos a despedida dos protagonistas que ascenderam na política contemporânea com o discurso de combate aos anos de chumbo. Entre estes, Fernando Henrique, José Serra, o próprio Lula (que promete não voltar a se candidatar em 2026), Alckmin. Em outra ponta, Bolsonaro, que tem se posicionado como palanqueiro da ditadura.

O conservadorismo - Suas bandeiras foram levantadas por uma das campanhas. Seu discurso, porém, ficou disperso. As pautas conservadoras em campos como aborto, drogas, gêneros, tendem a ganhar força.
A direita - Esteve envergonhada por muito tempo. Ganhou coragem e mostrou sua face. Mas é a extrema direita que fará pontuações contundentes. A posição será ocupada, inicialmente, pelo líder Jair Bolsonaro. Na Câmara, a direita passa a ocupar 50% das vagas e no Senado, 44%. Em seu discurso de 2 minutos, o capitão garantiu: “a direita veio para ficar”. Terá folego para manter sua postura radical?

As oposições - Grupamentos de oposição se organizarão e sua força dependerá da articulação do novo governo. Farão uma oposição programática. Mas o PT aposentará sua contundência discursiva. Um olhar especial será dirigido ao governador eleito de São Paulo, Estado com a maior densidade eleitoral do país e o mais forte na frente da economia: Tarcísio de Freitas. Sua identidade está vinculada ao campo técnico, tendo ele servido aos governos que antecederam Bolsonaro. Sua performance o colocará na planilha das lideranças emergentes.

O quadro partidário - Carece renovar sua moldura. Parlamentares deverão mudar de posição com a nova janela partidária a ser aberta em abril do próximo ano. O PL, por exemplo, terá dificuldade em sustentar uma bancada de quase 100 parlamentares, devendo ver parcela de seus componentes migrar para outras siglas. A transferência entre siglas possivelmente não leve a canto nenhum, na esteira do ditado: “plus ça change, plus c’est la même chose”.

A democracia participativa - Nossa democracia participativa conta com os mecanismos do plebiscito, do referendo e de projetos de lei de iniciativa popular. A CF de 88 ampliou e consolidou o leque dos direitos coletivos e individuais. A sociedade passou a participar com mais disposição do rolo compressor de pressões e contrapressões. Núcleos abrigam-se no seio de entidades intermediárias – sindicatos, associações, federações, setores, movimentos –, criando polos de poder. Exemplo recente dessa tendência: abstenção menor no 2º turno do pleito e presença maciça dos jovens às urnas.

Diversidade - Nunca os conceitos de inclusão social ganharam tanto espaço no foro nacional como na atualidade. A política tem inserido em suas cartilhas o alfabeto da inserção de etnias, negros, comunidade LGBTQIA+, etc. na paisagem institucional.

As mulheres - Seu protagonismo será cada vez mais forte. Trata-se de defesa do gênero, aumento de bancadas femininas na estrutura do poder e participação intensa da mulher no debate político. Simone Tebet, Marina Silva, Janja, foram fiadoras de uma candidatura. Ganharam ampla visibilidade. Damares Alves e Michelle Bolsonaro, incorporando o papel de pastoras evangélicas, despontaram como cabos eleitorais da outra candidatura.

O evangelismo - As igrejas neopentecostais adquirem força. O Brasil poderá deixar de ser a maior Nação de católicos do mundo para dar lugar aos evangélicos. A emergência dos credos impulsiona a participação de seus representantes na esfera parlamentar com a formação de considerável bancada.

A laicidade é uma singularidade dos Estados não confessionais. Assegura-se a separação entre o Estado e a Igreja, garantindo-se a proteção de crença e das liberdades religiosas. O debate será acirrado.

As Forças Armadas - Foram puxadas para a esfera política. Os quadros militares descobriram ser possível exercer novos papéis. O discurso político-governamental se impregnou de um viés militarizado. Mas a aposta melhor é na corrente que defende o profissionalismo das FFs.

As redes sociais - Depois da onda das fake news, as lideranças se esforçarão para aprimorar os mecanismos tecnológicos com vistas ao resgate dos valores éticos e morais.