sábado, 29 de janeiro de 2022

Pátria negacionista

É assustador assistir as lideranças do atual governo negando a qualidade das vacinas criadas pela ciência e defendendo a qualidade de remédios sem qualquer comprovação científica. Mais grave, estas não são as únicas manifestações negacionistas do governo, do presidente, seus ministros e muitos de seus seguidores. Eles colocam crenças criadas por instigadores ideológicos como verdade, mesmo que a ciência mostre que são ideias falsas. Acreditam nas fake news, que eles criam. Uma estratégia de enganação que leva as pessoas e seus grupos sociais a negarem a realidade e com isto assustar a população. O Brasil atravessa um momento em que seu presidente e seu governo tomam decisões com base em ilusões que eles próprios criam. Aos poucos vão aumentando mortes e afundam o país.

O que faz este momento ainda mais grave, é que a oposição também aposta nas suas próprias negações da realidade. Uma dessas é negar os riscos à democracia, por causa de divisão das forças democráticas. Não há percepção de que o divisionismo entre mais de dez candidatos pode levar o processo eleitoral na direção de um segundo turno, no qual os opositores a Bolsonaro terão dificuldades em subirem no palanque, para pedir votos para aquele ou aquela que chegar ao segundo turno. Desde o início do processo eleitoral, percebe-se que o divisionismo enfraquece as forças democráticas que se digladiam como inimigas. O negacionismo impede perceber esta realidade e seus riscos. Impede também perceberem que o PT e Lula conservam uma força que deve levá-lo ao segundo turno, porque as lideranças políticas da terceira via foram incapazes de oferecer ao país uma alternativa e atrair apoio eleitoral para ela.

Da mesma forma, o PT vive seus negacionismos uma vez que não percebe que a força que tem dificilmente elege sozinha seu candidato, diante da rejeição que ainda sofre. E que, se vencer sozinho a eleição, dificilmente conseguirá governar.

Esta é uma pátria de políticos negacionistas.

O imbecil privado

Os anticomunistas mais fanáticos e perigosos costumam ser aqueles que já militaram do outro lado, não porque íntimos das entranhas da baleia mas porque raramente se conformam com ter sido “enganados” pelos prosélitos da antiga crença. Passionais e agressivos, apelidei-os, faz tempo, de “cornos ideológicos”, tendo em mente cornudos antológicos como Carlos Lacerda, que foi um inflamado integrante da Juventude Comunista antes de se transformar no mais incendiário anticomunista do País.

Tudo no Brasil se deteriorou tanto nos últimos anos que o Lacerda que nos coube ter neste início de milênio foi o dublê de professor, “filósofo” e astrólogo Olavo de Carvalho. Se acreditasse em bruxarias, juraria que o guru do bolsonarismo acabou vítima de um canjerê coletivo. Sua morte, no início da semana, foi saudada nas redes sociais até por quem considera a empatia um dever de todos para com todos, sem exceção daqueles que a desqualificam e hostilizam.


Só o vi uma vez, de longe, na missa de sétimo dia de Paulo Francis, em fevereiro de 1997, mesmo ano em que, com outros escribas, partilhamos a seção de ensaios da revista Bravo!. Ainda nos tangenciamos como prefaciadores da reedição dos romances de Aldous Huxley.

As duas vezes em que nos falamos, por telefone, foi para colher impressões e lembranças de minha convivência com Otto Maria Carpeaux. Ele preparava uma coletânea de ensaios de Carpeaux para a Topbooks, que resultou, aliás, num belo trabalho editorial. Aí veio o novo século e nunca mais nos cruzamos.

Ainda bem. Pois seria constrangedor ter de lidar com o monstro ressentido que Olavo pôs na praça e foi lapidando. Olavo não era “polêmico”, era picareta. Sua magnum opus O Imbecil Coletivo, é um subproduto do Manual do Perfeito Idiota Latino-americano, do jornalista Carlos Alberto Montaner, guzano conspirador exilado na Espanha, que por algum tempo teve livre trânsito na imprensa daqui.

Para Gregório Duvivier, o escatológico panfletário da nossa extrema direita “não conseguiu ter razão um dia sequer”. Olavão foi “o catalisador do que de pior já se pensou e projetou para o Brasil”, lascou Paulo Roberto Pires no site da revista 451.

Tabagista militante, negacionista com ascendente em terraplanismo e fixação anal, o embusteiro com pança de caubói e caçador transfigurou-se numa usina de mentiras, insultos e idiotices (a pandemia não existe, vacinas matam, a Pepsi é fabricada com fetos abortados etc), o que explica por que o governo, rompendo seu macabro silêncio sobre milhares de outras mortes por covid, decretou luto oficial em sua homenagem. Prevaleceu a gratidão.

Mapa do Brasil

 


Como dialogar com um terraplanista

Você precisa estar preparado. Em algum momento irá acontecer. Pode ser no almoço de família, no escritório, no ônibus, na sala de espera do dentista. Provavelmente, de imprevisto:

— Só acredito no que vejo. Isso da Terra ser redonda, por exemplo, vai contra todas as evidências…


O truque é baixar um pouco a voz, ao mesmo tempo que se debruça sobre o seu interlocutor. Pouse a mão no ombro dele, e então, revele o terrível segredo:

— Claro que a Terra é plana, amigo. Aliás, planíssima. Vivemos num universo bidimensional…

Pode ocorrer um breve instante de dúvida. O terraplanista hesitará:

— Num universo bidimensional? Como assim?

— Só temos duas dimensões. O nosso cérebro nos engana… Ele nos faz crer que vivemos num universo com três dimensões. Pura ilusão…

— Jura?!…

— Sim! Sim! A prova são as galinhas…

— As galinhas?!

— Precisamente. As galinhas têm consciência de que vivemos num universo bidimensional. Se você desenhar um círculo à volta de uma galinha ela não tentará sair do círculo. Ela sabe que não pode sair, que o salto é uma ilusão. Daí que o símbolo do nosso movimento seja uma galinha…

— Uma galinha?!

— Uma ou duas, tanto faz…

— Isso é verdade? Isso das galinhas ficarem dentro do círculo?!

— Totalmente. Você pode fazer a experiência em sua casa. Compre uma galinha e faça a experiência. Agora, tenha muito cuidado, os reptilianos não querem que ninguém descubra a verdadeira natureza do nosso universo. E, como deve saber, os reptilianos governam o planeta…

— Os reptilianos?!

— Aliens. Extraterrestres, que colonizaram a Terra e ocupam o corpo de governantes. Os reptilianos vêm de um universo paralelo tridimensional…

— Bolsonaro também?!

— Não! Mito é nosso líder! Um sujeito lúcido, um combatente! Sábio, como as galinhas. Mito foi o primeiro a compreender que vivemos num universo bidimensional. Se você desenhar um círculo à volta dele, o homem não sai.

—Incrível!

— Veja agora, a pandemia e as vacinas… Você sabe qual o verdadeiro objetivo das vacinas?

— Qual?!

— Me diga primeiro, o senhor já foi vacinado?

— Eu não! Deus me livre!…

— Perfeito… O objetivo das vacinas é transformar as pessoas, cada homem, cada mulher, em reptilianos…

— Ah! Em jacarés?!…

— Precisamente…

Por esta altura, talvez seja bom fazer uma pausa para que o terraplanista consiga assimilar todas as revelações. A verdade pesa, mas é melhor do que viver na ilusão dourada da Matrix. Chegou a hora de mostrar a pílula vermelha:

— Você quer mesmo combater os reptilianos?

— Com certeza! Podem contar comigo…

— Então vá para casa e desenhe um círculo em torno de si próprio…

— E depois?! Como farei para sair?!…

— Primeiro, você precisará se transformar num ser unidimensional. Basicamente, num ponto…

— Num ponto?!…

— Isso. Num ponto. Ou numa linha. Os reptilianos não têm como ocupar corpos unidimensionais.

— E como faço para me transformar num ponto?

— Você fica dentro do círculo, lendo Olavo de Carvalho. É uma questão de tempo até se transformar num ser unidimensional.

— Genial! Muito obrigado.

De nada, amigo. Sempre ao dispor.

Repartir para crescer

Observando a série de declarações dos economistas vinculados aos candidatos à Presidência, percebe-se, além da escassez de criatividade, a incidência de um erro elementar quando mencionam o problema da desigualdade social.

Todos eles afirmam que a economia precisa primeiro crescer para depois serem implementadas políticas atenuantes da concentração de renda. Ignoram, portanto, que o correto é exatamente o contrário. Isto é: o esmaecimento dos extremos contrastes sociais constitui poderoso promotor do desenvolvimento econômico.


Nos primórdios do ideário desenvolvimentista brasileiro, tanto durante governos democráticos quanto autoritários, era comum ouvir afirmações do gênero “antes o bolo tem que crescer para depois ser distribuído”. Mas hoje, após a frequência de insuficientes e flutuantes momentos de crescimento do PIB, tornou-se evidente que se esperarmos o alcance de elevadas e estáveis taxas de expansão econômica, a melhoria da equidade social jamais acontecerá. Na verdade, essa espera é equivocada e danosa à nação.

Enquanto políticas públicas de caráter redistributivo não forem executadas, a economia continuará na mesma pasmaceira. Isto porque tais políticas expandem o poder de compra de substancial parcela da população, num montante suficiente para impulsionar investimentos e criar empregos.

Quando o Brasil era um país essencialmente rural, a expansão da economia resultava das exportações agrícolas, tipo cana e café. Depois, os períodos mais longos de maior crescimento do PIB foram gerados pela substituição de importações de produtos industrializados, processo já esgotado. Agora, a conquista de prosperidade perene depende do intenso alargamento do consumo interno de bens e serviços.

Além do uso de instrumentos tributários, salariais e previdenciários, um processo democrático e ordenado de amenização das disparidades de renda enfatiza investimentos em setores produtores de bens e serviços que pesam proporcionalmente mais no orçamento das famílias de menor renda, ou que a elas são inacessíveis, apesar de essenciais.

Sim, existem as dificuldades fiscais, monetárias, administrativas, etc. que limitam o ímpeto da busca de maior equidade. Mas o enfrentamento dessas dificuldades não é incompatível com a amenização das disparidades de renda.

Precisamos reconhecer que o grande obstáculo à melhoria da equidade encontra-se no âmago da sociedade brasileira, explicitado pela indiferença ao tema por parte da classe política. É por isso que perdura meu pessimismo em relação ao que um próximo governo realizará.

Pouco podemos almejar de candidatos cujos assessores acreditam que a implementação de políticas atenuantes da concentração de renda devem ser precedidas pelo crescimento da economia. Ou que a ênfase deva ser atribuída a transferências assistenciais similares ao Bolsa Família.

O poder da estupidez

Não é difícil compreender como o poder político, econômico ou burocrático aumenta o potencial nocivo de uma pessoa estúpida. Mas temos ainda de explicar e perceber o que torna essencialmente perigosa uma pessoa estúpida, ou seja, em que consiste o poder da estupidez.

Os estúpidos são perigosos e funestos principalmente porque as pessoas razoáveis acham difícil imaginar e entender um comportamento estúpido. Uma pessoa inteligente pode entender a lógica de um bandido. As ações do bandido seguem um modelo de racionalidade. O bandido quer algo “ mais “ na sua conta. Dado que não é suficientemente inteligente para cogitar métodos com os quais obter algo “ mais “ para si, proporcionando ao mesmo tempo algo “ mais “ também os outros, ele obterá o seu algo “mais “ causando algo “ menos “ ao seu próximo. Tudo isto não é justo, mas é racional e se somos racionais podemos prevê-lo. Em suma, podemos prever as ações de um bandido, as suas sujas manobras e as suas deploráveis aspirações e muitas vezes podemos preparar as defesas apropriadas.

Com uma pessoa estúpida tudo isto é absolutamente impossível. Como está implícito na Terceira Lei Fundamental, uma criatura estúpida persegui-lo-á sem razão, sem um plano preciso, nos tempos e nos lugares mais improváveis e mais impensáveis. Não há qualquer maneira racional de prever se, quando, como e porquê, uma criatura estúpida vai desferir o seu ataque. Perante um indivíduo estúpido está-se completamente vulnerável.

Dado que as atitudes de uma pessoa estúpida não são conformes às regras da racionalidade, disso resulta que :

a) geralmente somos apanhados de surpresa pelo ataque;

b) quando temos consciência do ataque não conseguimos organizar uma defesa racional, porque o ataque em si não tem qualquer estrutura racional.

O fato de a atividade e os movimentos de uma criatura estúpida serem absolutamente erráticos e irracionais, não só torna a defesa problemática como torna ainda extremamente difícil qualquer contra-ataque – é como tentar disparar contra um objecto capaz dos mais improváveis e inimagináveis movimentos. Isto é o que Dickens e Schiller tinham em mente quando um deles afirmou que “ com estupidez e boa digestão o homem pode enfrentar muitas coisas “ , e o outro que “contra a estupidez os próprios Deuses combatem em vão “.

Devemos ter ainda em conta uma outra circunstância. A pessoa inteligente sabe que é inteligente. O bandido tem consciência de ser um bandido. O crédulo está penosamente ciente da sua própria credulidade. O estúpido, ao contrário de todos estes personagens, não sabe que é estúpido. Isso contribui decisivamente para dar maior força, incidência e eficácia à sua ação devastadora. O estúpido não é inibido por aquele sentimento a que os anglo-saxônicos chamam self-consciousness. Com um sorriso nos lábios, como se fizesse a coisa mais natural do mundo, o estúpido aparecerá inopinadamente para lhe dar cabo dos seus planos, destruir a sua paz, complicar-lhe a vida e o trabalho, fazer-lhe perder dinheiro, tempo, bom humor, apetite e produtividade – e tudo isto sem malícia, sem remorsos e sem razão. Estupidamente.
Carlo M. Cipolla