quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Uma data para instruir aqueles que não conheceram a ditadura

Desde 1983, quando caiu a ditadura argentina, a sociedade civil daquele país celebra um dia nacional da memória pela verdade e justiça –na data mesma do golpe que introduziu um dos piores regimes de exceção de nosso continente. Com o tempo, o 24 de Março se firmou como dia de atividades educacionais e, depois, uma lei o tornou feriado.

Uma reflexão sobre a recente tentativa de reprisar aqui os anos de chumbo levou nossas entidades a concluir que erramos ao não educar nossos jovens para o que foi a ditadura, que rima com tortura e censura. Por isso, lembrando o exemplo argentino, decidimos adotar uma data anual para educar as pessoas sobre a democracia, em especial as que não conheceram o regime ditatorial.

A proposta foi lançada pela SBPC em abril, sendo adotada por quase cem entidades, entre elas a Academia Brasileira de Ciências, a Associação Brasileira de Imprensa, a Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior e o Conselho Nacional de Institutos Federais de Ciência e Tecnologia. Uma assembleia que realizamos em fins de junho, com a presença de dezenas de entidades, decidiu chamá-la Dia de Luta pela Democracia Brasileira. Finalmente, adotamos como data o dia 5 de outubro, quando foi promulgada a Constituição Federal, a melhor de nossa História, tendo como fundo sonoro as palavras do dr. Ulysses Guimarães: Temos ódio e nojo da ditadura.


Queremos deslanchar um movimento que faça nossa sociedade assumir os valores da democracia como irrenunciáveis. Queremos educar crianças e jovens para repudiarem tirania, ódio, preconceito, e abraçarem a fraternidade, a liberdade, a igualdade de direitos. Para isso, a ênfase deve estar na educação. Pretendemos firmar, na sociedade, os valores que servem de base a um convívio justo e fraterno.

Precisamos garantir que nunca mais volte o horror. Chocou-nos ver multidões pedindo, estes anos, ditadura e intervenção militar. Vimos que não desenvolvemos os anticorpos necessários para proteger a planta tenra, que é a democracia, de seus inimigos. Tal trabalho é uma prioridade nacional.

Em 2022, os que defendem a democracia no Brasil se uniram, para encerrar o descalabro institucional que substituía a amizade pelo ódio como base de nossa sociedade. Um valor superior prevaleceu sobre as diferenças: o da defesa da forma democrática de administrar os conflitos. Tal união permitiu superar a ditadura, em 1985, e elaborar a melhor Constituição de nossa história, em 1988. Agora, foi preciso um drama gigantesco, que custou ao Brasil mais de 500 mil vidas acima da média mundial de mortes pela Covid, para que as forças que disputaram o poder nas últimas décadas distinguissem o que é um conflito dentro da democracia daquilo que ameaça a própria democracia.

Queremos mobilizar a área educacional e cultural. Educar as crianças pequenas a cooperar, mais do que a disputar, a firmar alianças mais do que antagonismos. Ensinar às crianças do Fundamental os valores básicos da ética, do convívio criativo, dos direitos humanos. Formar os jovens cidadãos do ensino médio, muitos deles já eleitores, para defenderem suas ideias e interesses pela discussão, pela organização, pelo voto, nunca pela ofensa e pela agressão.

Queremos recuperar o Brasil vinculado ao coração, ao afeto, ao acolhimento ao estrangeiro e ao diferente. Anos de incitação ao ódio puseram em risco nossa alma. O resgate dela é prioridade nacional. E pensamos que começar nosso empenho pela sociedade, e não pelos órgãos de Estado, vale a pena. A sociedade brasileira não pode deixar a política nas mãos do Estado: são os cidadãos, a sociedade, o povo, que devem vencer o autoritarismo e o preconceito. Pedimos a todos os professores que, no Dia de Luta, realizem atividades explicando o que é democracia, a base de nosso futuro.

A quintessência da seriedade

Perguntavam ao Millôr Fernandes se o humor era coisa séria. Um dia respondeu que o humor é mais do que sério, é a quintessência da seriedade, frase que ficou famosa. Ou seja: o humorismo vai além da seriedade, indo ao seu âmago, daí ser sua quintessência. Entretanto, o mundo da cultura, ainda resiste à importância do humor, como as revistas culturais. Tendem a não abrir espaço para se pensar a importância do humor, e o tema ocupa assim uma certa marginalidade, o que é interessante. O conhecido historiador Robert Darnton – autor do “O grande massacre de gatos” – estuda a piada, pois a considera uma porta de entrada num sistema cultural. Antes dele o filósofo Ludwig Wittgenstein escreveu que o humor, mais que um estado de espírito, é uma visão de mundo.


As verdades que revelam o humor inquietam os autoritarismos, as religiões, pois ele sempre revela o outro lado das coisas, subverte a ordem, satiriza a vida e seus problemas. O humor é como um fermento na farinha, pois inquieta, põe tudo em dúvida, nada é seguro ou definitivo. Um exemplo histórico foi a exclusão de Millôr da revista “O Cruzeiro” quando reescreveu a história da Bíblia, sobre a obra do Criador: “Essa pressa leviana / demonstra o incompetente / fazer o mundo em sete dias / com a eternidade pela frente”. Lembrei agora de uma história judaica: um homem foi ao alfaiate para fazer um traje e levou a fazenda, foram tiradas suas medidas e o alfaiate pediu que voltasse em dois meses. Passado o prazo, veio provar o traje e pagar, mas perguntou ao alfaiate como tarda tanto em fazer a roupa se o Todo Poderoso fez o mundo em seis dias. Respondeu o alfaiate: “Veja bem o traje que fiz e compara com este mundo”. Na religião judaica o sagrado é indiscutível, mas o humor judaico é livre para brincar até com as verdades sagradas.

Agora o que é mesmo o humor? O humor integra a família fundada pela polêmica Verdade, que teve um filho chamado Espírito, que se casou com uma dama chamada Alegria. E deles nasceu um filho chamado Humor, um filho inquieto, que escapa às definições, ora tristonho, ora alegre, solene, instável e desconcertante. É a mais simpática das criações, é uma forma de ver e viver o mundo, sendo assim um dom precioso e raro, pois sorri, sem compulsão, da pulsão de morte, como escreveu Woody Allen: “Embora não tema a morte, prefiro estar longe quando ela se produzir”.

Millôr Fernandes mostrou ao longo de sua vida que o bom humor é aquele que nos faz pensar achando graça. O humor é, enfim, uma conduta de luto: aceita a loucura humana e sorri diante dela. É uma vacina contra o desespero, imuniza com doses moderadas de ceticismo, tem uma visão rebelde. Como escreveu Millôr: “O humor compreende o mau humor. O mau humor é que não compreende nada”. O humor é uma transformação do narcisismo, e desenvolver o sentido de humor é essencial para viver melhor, viver com leveza. O humor é rebelde, é o triunfo do EU e do princípio do prazer diante da dura realidade. Ter sentido de humor é crescer, é se situar como adulto diante de uma criança pois pode brincar diante da realidade.

O mundo psicanalítico, o mundo em geral, tem muito para aprender ainda sobre o humor como visão do mundo. O mundo tende a ser mal-humorado, enlouquecido com lucros a qualquer custo e ameaçando a vida na Terra. Tristes os mal-humorados que afundam na cama; vão dormir se achando com toda razão, mas perdem a graça da alegria.