terça-feira, 10 de setembro de 2019

Agronegócio, a inesperada resistência ao desmonte ambiental de Bolsonaro

Foi uma ação do ativismo mais clássico no centro de São Paulo. Simularam ocupar ilegalmente o Trianon, um pequeno parque de frondosas árvores na avenida Paulista, e convidaram a população a escrever ao ministro da Justiça e à procuradora-geral da República para exigir maiores esforços no combate à grilagem de terras públicas na Amazônia, porque junto com ela costumam vir o desmatamento ilegal e a exploração econômica à margem das normas. Entre os organizadores do protesto, na quinta-feira passada, havia duas ONGs, mas também —e isto é o chamativo— a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), que reúne as principais empresas do setor, e outros 11 grupos setoriais. Sim, os mesmos que durante anos foram apontados como um dos motores da destruição da natureza no Brasil. A indústria agropecuária também está preocupada com a política ambiental e a retórica do presidente Jair Bolsonaro, em um ambiente em que a cada momento um novo episódio trágico acontece —o último foi na sexta-feira, com o assassinato de um veterano servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai), num ato que os seus colegas de sindicato enxergam uma clara represália ao seu trabalho de preservação.

A ameaça às florestas é uma ameaça aos negócios. E empresários e ambientalistas pretendem desmontar a ideia de que a preservação ambiental é um freio ao desenvolvimento econômico. Uma tese que o chefe de Estado defende frequentemente, como se ambos fossem incompatíveis. "Existem extensões que já estão desmatadas. Não é preciso cortar uma árvore da Amazônia para aumentar a produção e a participação do país como um celeiro importante no mundo", afirmou, nesta segunda em um evento da revista Exame Pedro Parente, presidente do conselho de administração da BRF, uma das principais companhias de alimentos do mundo.

O diretor da ABAG, Marcello Brito, assim explicava há alguns dias, ao apresentar a campanha conjunta com a Imazon e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), duas ONGs de defesa ambiental: “Somos contra o desmatamento e o roubo de terras, porque isto ataca o valor natural de qualquer produto brasileiro, e indiretamente ataca a economia do Brasil”. E foi além ao criticar que “por briguinhas políticas ou questões ideológicas percamos o foco principal, que é o desenvolvimento do Brasil".

Brito afirma que, apesar de a H&M e outras empresas terem anunciado um boicote ao couro brasileiro por causa das queimadas amazônicas, “nenhum contrato foi cancelado” até agora. Mas salienta que a luz de alerta está piscando furiosamente, e que as autoridades precisam garantir a preservação da Amazônia e o cumprimento das leis. Por isso, exigem o fim do desmatamento ilegal em terras públicas e que o Estado designe um uso para os 650.000 quilômetros quadrados (7,6% do território brasileiro) sem atribuição, porque essa indefinição transforma essas terras em presa fácil dos invasores ilegais. As queimadas de agosto deste ano, que desataram duríssimas críticas internacionais a Bolsonaro, destruíram 30.000 quilômetros quadrados, quatro vezes mais que as de agosto do ano passado.

Boa parte dos empresários brasileiros do agronegócio, motor das exportações, está cada vez mais consciente de que manter a Amazônia de pé e em boa saúde é uma condição essencial não só para conservar as vendas atuais, a uma clientela preocupada com a mudança climática, mas também para a sobrevivência em longo prazo de seus próprios negócios. Porque a maior floresta tropical do mundo é crucial para regular as chuvas necessárias no resto do Brasil, imprescindíveis para obter as generosas colheitas que fizeram do país uma das maiores potências agrícolas do planeta.

Os empresários têm a seu favor o fato de não despertarem em Bolsonaro a mesma repulsa que as ONGs, às quais o presidente brasileiro chegou a acusar de incendiar propositalmente a Amazônia. Kathryn Hochstetler, professora de Desenvolvimento Internacional da London School of Economics, destaca que “o agronegócio brasileiro é especialmente importante como uma voz em favor da proteção ambiental, porque o Governo atual não está interessado em escutar ambientalistas mais convencionais ou a maioria dos atores internacionais. Mas escutará o agronegócio por ser uma parte importante de sua base eleitoral”. Foram eles que convenceram o presidente a não abandonar o Acordo de Paris, porque afugentaria clientes.

Paulo Adario, um dos fundadores do Greenpeace no Brasil, elogia que “cada vez mais companhias incluam a proteção ambiental nos planos de negócio”, mas esclarece que, no seu entender, fazem isso por interesse econômico, não porque de repente viraram ambientalistas. Acusa-as de usar critérios ambíguos, porque seu interesse em preservar a Amazônia contrasta com sua atitude em outras regiões do Brasil, onde a proteção legal da natureza é muito menor.
Assassinato na Amazônia

Enquanto a discussão nos ambientes econômicos ganham corpo, nos rincões remotos da Amazônia um novo assassinato aconteceu na última sexta-feira. O indígena Maxciel Pereira dos Santos, um veterano agente da Funai, levou dois tiros na cabeça enquanto dirigia uma moto no município de Tabatinga (AM), na fronteira com a Colômbia e o Peru. Durante 12 anos, ele foi vigilante e inspetor da Funai no vale do Javari, onde o escritório da agência tem sido reiteradamente atacado.

O sindicato de funcionários da Funai, que denunciou o assassinato de Santos, afirma que ele foi alvo de uma represália por seu trabalho contra as invasões ilegais de caçadores, madeireiros e garimpeiros nessa área, que acolhe a maior concentração de etnias isoladas do mundo.

O Brasil é um dos países mais perigosos do mundo para os ambientalistas, e a América Latina é a pior região. No ano passado passou a ser o segundo mais letal, com 20 assassinatos, porque 24 ativistas ambientais foram mortos na Colômbia.

A vida vale pouco

As imagens chocaram o país: o jovem negro, de 17 anos, nu e amordaçado, sendo chicoteado por dois homens com fios elétricos trançados, por ter roubado uma barra de chocolate. O fato aconteceu há algumas semanas, nos fundos de um supermercado em Vila Joaniza, zona sul de São Paulo. Mas só agora as cenas vieram a público. Elas nos remetem a um Brasil que ainda não chegou a 1888.

O de 2019 não está muito melhor. Em junho, no Vale do Ribeira, interior de São Paulo, Vanderléia Inácio, 25 anos, mãe de quatro filhos, sendo o mais velho com oito anos, foi morta com três tiros no rosto em uma festa junina. O crime aconteceu após uma discussão causada por um pedaço de bolo oferecido à esposa do suspeito. Em julho, no Grajaú, também na zona sul de São Paulo, o desempregado Joab Dias Costa, 23 anos, foi desafiado a um jogo de cartas valendo R$ 10. Ganhou. Seu adversário, inconformado, agrediu-o ali mesmo e, semanas depois, matou-o a tiros na rua.


Ainda em julho, em Dourados, a 250 km de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, o policial militar Dijavan dos Santos matou também a tiros o bioquímico Júlio César Cerveira, na sequência de uma discussão sobre lugares marcados num cinema. Os dois, vítima e assassino, estavam acompanhados de seus filhos adolescentes. O filme era “Homem Aranha: Longe de Casa”. O tiroteio aconteceu com a sessão já começada, e o cinema cheio de crianças.

Há poucos dias, em fins de agosto, um PM ordenado a intervir para que se abaixasse o som de uma festa no bairro de Brotas, em Salvador, foi recebido com hostilidade pelo dono da festa e por alguns convidados. Eles tentaram agredi-lo e roubar seu revólver. Com a chegada de reforço policial, tiros foram disparados e houve feridos.
Todo mundo anda armado. Discute-se, briga-se e mata-se por qualquer coisa. A vida vale pouco. Não, nem sempre foi assim.

Legalidade é preciso

Quem acha que as reformas econômicas solucionam nossos problemas está mal informado. Por melhor que seja o modelo, se o crime impera, os resultados são ruins. Estatiza e o dinheiro é desviado. Privatiza e o dinheiro é desviado. Queremos a estabilidade da legalidade!
Janaína Paschoal (PSL-SP)

Em Bienal histórica, venceu a liberdade de expressão

O episódio da censura a uma publicação exposta na Bienal vai muito além da feira de livros. A decisão da Bienal de reagir de forma vigorosa e corajosa contra as tentativas de censura marca a luta que está sendo travada contra o obscurantismo e a favor democracia e da liberdade de expressão, que são conquistas da sociedade. Não foi uma briga contra o prefeito. Aliás, um prefeito que vive de costas para a cidade, que sabota todos os eventos importantes do Rio. E tem péssimo desempenho.

Ele tentou uma jogada eleitoreira para o eleitorado mais conservador, e houve neste fim de semana a guerra de liminares. O ponto em questão era, como se sabe, uma revista em quadrinhos com um beijo entre dois homens. Não era para o público infantil. No Brasil, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é permitido e homofobia é considerada, legalmente, crime. A Prefeitura mandou, duas vezes, agentes da ordem pública com policiais revistarem livrarias e estandes atrás de material com temática LGBT. O ministro Dias Toffoli, por fim, restabeleceu a liberdade, atendendo ao pedido de Raquel Dodge, da PGR. Ao recorrer ao Supremo, nos embargos, a prefeitura usou uma fake news. Falou de uma publicação que não estava à venda na Bienal.
 

A censura tem se espalhado de maneira assustadora. Ela teria avançado mais se a Bienal escolhesse retirar o livro para preservar o evento. A área cultural tem sofrido pressões diretas e indiretas contra feiras literárias. O governo tenta instituir o que ele chama de "filtros" a obras, mas cujo o nome real é censura. O que aconteceu na Bienal foi além do episódio em si. É uma luta pela liberdade de expressão.

O resultado da feira foi um sucesso. As vendas foram fortes. As mesas de discussão debateram inúmeros assuntos contemporâneos, entre eles a própria tentativa de censura. Esteve lá o autor do livro “Como as democracias morrem”, Steven Levitsky. Ele tomou um susto quando viu a polícia e os agentes da polícia entrarem. Ele estava lá quando houve a segunda entrada, no sábado. Mas ele também se impressionou com o tamanho da feira. Naquele sábado, 100 mil pessoas foram lá para comprar livros e debater ideias. 

A Bienal reagiu de forma corajosa. A defesa da liberdade de expressão é fundamental, não se pode transigir nisso. Houve inclusive uma manifestação com pessoas carregando livros e falando “Censura não”. A resposta veio da feira, dos autores e também da sociedade. Foi um importante momento em defesa da liberdade de expressão no Brasil.

A Bienal do Rio é o maior evento literário do país. Nesta edição, recebeu 600 mil visitantes, que compraram 4 milhões de livros.

Imagem do Dia


O que aprendi com Nelson Werneck Sodré

Fui educada por meu pai, Nelson Werneck Sodré, no amor pela Pátria e afirmação da Soberania Nacional, mas, ao mesmo tempo, ele me alertou sobre as distorções e perigos históricos dessas palavras.

Assim sendo, no momento atual, em que elas estão sendo alçadas como bandeiras, no cenário político nacional, quero partilhar com vocês o que escutei do historiador e militar Nelson Werneck Sodré, que escreveu a “História Militar do Brasil” e foi professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), estabelecimento de mais alto nível de ensino do Exército, no Rio de Janeiro.

A foto logo abaixo marca um momento de grande reviravolta na luta política e cultural de Nelson Werneck Sodré, como ele próprio relata no tópico “Intensificação da atividade cultural” do livro “Desenvolvimento Brasileiro e Luta pela Cultura Nacional” (Parte IV – pág. 288), em que descreve as circunstâncias históricas nas quais foi desligado do ensino da Eceme por suas posições na Diretoria Cultural do Clube Militar, e enviado para o comando do quartel de Cruz Alta no sul do Brasil, em julho de 1951.

Eu ainda criança, naquela época, ele me ensinava a amar e respeitar o Exército, a Nação brasileira – nossa Pátria, e a importância de defender a Soberania Nacional. Lembro-me muito bem das explicações que me transmitia, e que aprofundei posteriormente lendo seus livros, como o amor da Pátria e a defesa da Soberania foram muitas vezes utilizados para embotar as multidões e arrastá-las para a guerra e para a perseguição cruel de grupos sociais, narrando, por exemplo, o que aconteceu na Alemanha, na Itália e em outros países, com as instalações de ditaduras.

Para ele, a noção de Pátria e de Soberania Nacional implicavam o respeito dos Povos e a fraternidade humana e internacional, sem a qual essas palavras serviam apenas para a dominação e o ódio aos que são considerados diferentes e estrangeiros, para o fechamento dos países, o isolamento das nações e o acirramento dos conflitos e das guerras.

Desejo a todos vocês lucidez e amor ao próximo para que cultivem o patriotismo e a defesa da soberania nacional sem serem arrastados em direções de destruição e ódio.

Continua a viver, se puder

Embora triste e mortificado, continua a viver. E isto é um sinal de confiança. Uma prova de que o mal tem remédio
Miguel Torga, Diário V

A queima dos livros

Em 10 de maio de 1933, dezenas de milhares de livros foram queimados em praça pública em Berlim e em toda a Alemanha, dentro de uma série de ações orquestradas por Joseph Goebbels, o gênio do mal da propaganda nazista. A ideia era purificar a cultura germânica. Mais tarde, o regime nazista iria queimar, mais do que livros, pessoas, depois de executá-las em câmaras de gás ou em valas comuns.

Sempre que começa essa conversa de proibir, censurar e recolher livros — como ocorreu na blitzkrieg de Marcelo Crivella na Bienal —, não consigo evitar que me venha à memória a queima dos livros em Berlim. Recolher obras literárias, por qualquer motivo, é o primeiro passo para censurar, proibir e, um dia, lá na frente, como na Alemanha de 1933, incinerar.

“Maus”, de Art Spiegelman
Vivemos, ainda (quero crer), numa democracia. O gibi, dentro do universo HQ, é um formato híbrido, com conteúdos abertos a várias camadas, simultâneas, inclusive no que se refere às faixas etárias. A graphic novel “Maus”, de Art Spiegelman, um dos gibis mais celebrados da História, por sinal, é um imenso painel metafórico, serializado, das visões racialistas de Hitler.

Entre os autores cujos livros foram queimados em 1933 estão Thomas Mann, Albert Einstein, Walter Benjamin, Friedrich Nietzsche, Bertolt Brecht e Sigmund Freud. O fato de Karl Marx também figurar na lista tem uma nota atual: classificado, hoje, pela desintelligentsia reinante, como um regime de esquerda, o nazismo tinha, como inimigos principais, os judeus e os comunistas, esses seus antípodas totalitários no campo esquerdista.

Hitler odiava, também, os negros. Quando Jesse Owens ganhou os 100m rasos nos Jogos de 1936, em Berlim, e uma série de outras medalhas de ouro, o Führer justificou o triunfo com a repugnante tese de que os negros são “essencialmente animais”, fisicamente mais fortes do que os brancos civilizados. E que deviam, futuramente, ser excluídos, por esse motivo, das competições.

Homossexuais eram alvos das cruzadas de ódio do ditador alemão, parecidas com muitas que hoje vicejam, nos exércitos de trolls em redes sociais e sites na deep web. Grupos assim somaram-se às campanhas de Trump, do Brexit, de Jair Bolsonaro, de Orban, ou de movimentos italianos como o 5 Estrelas e a Liga.

A preocupação de Hitler com a cultura era tão obsessiva quanto sua marcha genocida contra as etnias que escapavam a seu projeto de hegemonia racial. A exposição de Arte Degenerada, de 1937, pôs na fogueira da abominação pública escolas de pintura que hoje qualquer conservador aprecia. Picasso, Klee, Gauguin, Chagall estavam entre os difamados. 

As fogueiras de livros foram aplaudidas pelo povo alemão que a elas assistia, mesmerizado. Assim como muitos hoje aplaudem as proibições de peças e exposições por juízes ativistas e a autocensura de patrocinadores atemorizados pelo terrorismo das brigadas de direita, que ameaçam a integridade física do público.

A Bienal, por ser tão querida na cidade, resistiu, e não se viram em torno do Riocentro tropas neofascistas apoiando a apreensão in loco. Mas, nas redes, salvas de fogos foram lançadas por multidões espumantes que, em diversos segmentos, dão o ar do tempo. Essas aguardam, pacientemente, o dia da grande queima.

Convém não esquecer

Na véspera, dia 12, eu estava em Brasília. De madrugada, Carlos Castello Branco e eu fomos acordar o deputado Márcio Moreira Alves. Ninguém duvidava de que a tempestade ia desabar dentro de algumas horas. Nossa preocupação era saber se o Marcito tinha um esquema de fuga. Claro que tinha. Como apertar as cravelhas do arbítrio sem cair no ridículo? Era o que eu me perguntava, entre tantas interrogações e perplexidades.

Mas o discurso do Marcito era simples pretexto. Os acontecimentos tinham tomado o freio nos dentes, desde que se rompera a ordem constitucional em 1964. O primeiro ato era para durar seis meses e ponto final. Tudo voltaria à ordem democrática. Voltou? Uma ova! Com os freios nos dentes ou não, os acontecimentos conduzem os oportunistas de toda espécie. Chega um ponto em que fica difícil saber quem quer o quê.



O país se divide então entre vítimas e algozes. Muitas e poucos. Entre uns e outros, os espectadores. Há sempre o risco de bancar o Fabrice del Dongo. O herói de Stendhal não sabia que aquele pega-pra-capar era nada mais nada menos do que a batalha de Waterloo. Num país periférico, onde a história passa pelo ridículo sem se chamuscar, o espetáculo é de fato chinfrim. Bom. No dia seguinte, um agourento 13 de dezembro como hoje, só que de 1968, eu saí à noitinha do Jornal do Brasil.

Na praia do Flamengo, o táxi parou. Chovia fininho e triste. Pneu furado. E o carro não tinha estepe. Parece mentira, mas a realidade é inverossímil. Abrigado na porta do prédio, de repente me dei conta de que ali morava o Carlos Lacerda. Era o famoso triplex, de que a Última Hora tinha feito alarde. Subi até a cobertura. Uma empregada me abriu a porta. O dr. Carlos está lá em cima. Lá estava, sim, na bela biblioteca, sentado na cadeira de balanço. Sozinho.

A Frente Ampla tinha sido fechada em abril. O Carlos estava interessado em parapsicologia. Foi o nosso primeiro assunto. Depois, os anjos. Ele e eu, mera coincidência, tínhamos comprado um dicionário americano sobre anjos. Até que caímos na real. Sim, o AI-5. Ele achava que ia ser preso. E foi. O silêncio do telefone me afligia. Mais de uma hora depois, chegou o Renato Archer. Deixei lá os dois na conversa de gente grande. Fui ler o AI-5. Você já leu? Que coisa pífia, santo Deus! E aconteceu. No Brasil.

Bolsonaro faz do trono uma cadeira elétrica

Título de eleitor é mais ou menos como apólice de seguro. O cidadão usa pouco. Mas gosta de saber que ele está na gaveta, vigente, pronto para ser usado em caso de desastre. Agora mesmo, quando parecia que tudo estava bem —o presidente assistindo ao seriado do Chaves no hospital, o vice bem-comportado, o inquérito do Queiroz trancado, nenhuma acusação nova contra o Zero Um, o Flamengo no topo da tabela— ressurgem no horizonte os cavaleiros do Apocalipse do clã Bolsonaro. 

Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, pendurou na vitrine do cristal líquido algo muito parecido com a defesa de um autogolpe. "Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos", ele escreveu. Já não sabe "se isso" —a transformação— vai mesmo "acontecer". Enxerga fantasmas poderosos ao redor. "Só vejo todo dia a roda girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominaram continuam nos dominando de jeitos diferentes!"

Simultaneamente, Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, revelou-se um atirador-ostentação. Deixou-se fotografar armado ao lado do leito hospitalar em que o pai convalesce da quarta cirurgia pós-facada. Foi como se desejasse avisar aos navegantes que não está para brincadeira. O gatilho de Dudu surgiu horas depois de Jair Bolsonaro ter divulgado um vídeo para avisar que estaria de volta ao "batente" já nesta terça-feira. Na prática, dará alta para Hamilton Mourão, liberando-o informalmente da interinidade. O capitão também vê inimigos escondidos na alma dos amigos.


Os sobressaltos vêm se repetindo há oito meses e dez dias. Você faz um inventário das suas preocupações e pensa: "Hoje, dormirei tranquilo..." E descobre que tem que se preocupar com a dinastia Bolsonaro. Num instante, o presidente estilhaça a imagem do Brasil, ofendendo governantes estrangeiros. Noutro, Carluxo junta-se a Olavo de Carvalho, o bruxo da Virginia, para derrubar mais um general do ministério. De repente, Dudu, o embaixador, surge na Casa Branca, rogando ao ídolo Donald Trump que proteja a soberania brasileira na Amazônia.

Difícil identificar um proveito político e econômico que compense o que a primeira-família está fazendo com os nervos do país e com a paciência dos investidores estrangeiros que gostariam de iniciar, ampliar ou consolidar investimentos no Brasil. Quando se imagina que os problemas deram uma folga alguém exclama: "Soube da última do Bolsonaro?" Ou: "Viu o penúltimo tuíte do Carluxo?"

Vivo, Darwin diria que a família Bolsonaro é a confirmação da teoria da evolução. O homem de Neandertal dispunha de uma caixa craniana maior. Mas não tinha a linguagem dos Bolsonaro, embora o grunhido às vezes seja parecido. Vivia em comunidades semelhantes às atuais, só que sem a selvageria do WhatsApp e das redes antissociais.

O objetivo da evolução era dar voz à humanidade, nome às coisas e um enredo para o universo. Por tentativa e erro, os Bolsonaro constroem a sua própria retórica. Ainda não se sabe que história desejam contar. Por vezes, parecem ter dificuldades para lidar com as palavras. Mas acabarão encontrando o vocábulo certo. Nem que o vocábulo seja "fim".

Os Bolsonaro foram muito além do ancestral das cavernas. Não dominam apenas o fogo. Controlam um tipo especial de energia. Como admite Carluxo, talvez não consigam transformar o país. Mas já sabem como fazer do trono uma cadeira elétrica.

Pensamento do Dia


Máscaras que caem

Há duas semanas, escrevi um artigo sobre o desmonte da Lava-Jato. A tese era esta: os três Poderes investiam contra ela: STF, Congresso e Bolsonaro. Isso sem contar o desgaste produzido pelo vazamento no site The Intercept.

O ataque mais vigoroso partiu do presidente do Supremo, Dias Toffoli. Ele proibiu o Coaf de compartilhar dados com os órgãos de investigação, exceto em casos em que a Justiça autorize. Recebeu o apoio de Bolsonaro, porque sua decisão foi tomada precisamente para atender a um recurso de Flávio Bolsonaro, investigado a partir da movimentação atípica de seu funcionário Fabrício Queiroz. O Supremo voltaria a atacar, anulando a condenação do ex-presidente do BB e da Petrobras Aldemir Bendine.

Na trincheira do Congresso, foi votada a lei de abuso de autoridade. É uma lei que contém artigos abstratos como, por exemplo, o que pune prisões sem base legal. É um problema de interpretação. Se faltar base legal a uma prisão, as instâncias superiores a suspendem. Por que criminalizar o juiz que considerou haver base legal?

Os 36 vetos de Bolsonaro indicam o nível de discordância da lei de abuso. Mas os vetos não atenuam seu apoio a Toffoli e as consequentes mudanças que realizou no Coaf.



O problema central são investigações sobre dinheiro. Elas não envolveram apenas Flávio Bolsonaro, mas também as mulheres de Toffoli e Gilmar Mendes. O título do meu artigo era “Desmonte em família”.

Reconheço agora que faltou um elo nessa corrente que, talvez, não queira acabar com a Lava-Jato, por causa da repercussão negativa, mas apenas neutralizá-la, impedir que chegue a alguns recantos do poder. Esse elo é a própria Procuradoria. Parece que Dodge se sentou em cima de alguns processos, e a renúncia coletiva dos procuradores é uma veemente denúncia dessa cumplicidade dela com o esquema de desmonte.

O conflito entre ela e procuradores surgiu na delação do empreiteiro Léo Pinheiro, da OAS. Ela retirou as partes que atingiam o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o irmão de Toffoli, ex-prefeito de Marília, São Paulo.

De novo, a família de Toffoli na parada. Ao suspender as investigações com base no Coaf, ele protegeu Flávio Bolsonaro, a mulher de Gilmar e a dele próprio. Agora é seu irmão que entra na cena do desmonte.

Dizem alguns jornais que Toffoli e Maia faziam campanha para Rachel Dodge continuar no cargo. Bolsonaro não aceitou essa alternativa.

Ele quis alguém em quem pudesse confiar. Mesmo que seu escolhido tenha a oposição dos procuradores, é preciso alguém que engavete processos embaraçosos e seja duro com as minorias.

Não há nenhuma surpresa na hostilidade de Bolsonaro às bandeiras que abominava desde a campanha. A novidade é ter se integrado ao esquema que quer desmontar a Lava-Jato. Seus defensores acham que colocar Bolsonaro nessa aliança para subjugar a Receita, a PF e procuradores é má-fé ou desinformação.

As evidências estão aí. Já me acostumei com ardorosos defensores de populistas se recusarem a encarar os fatos, refugiando-se numa narrativa paranoica para justificar o seu ídolo.

Bolsonaro cai nas pesquisas, muito pelas frases que diz, por não se conformar, às vezes, em apenas ter uma opinião sobre um tema: quer também desenterrar mortos para brigar com eles.

Quando os eleitores se derem conta de que sua luta contra a corrupção era apenas da boca pra fora, o prestígio vai desabar mais ainda. Talvez isso se torne nítido quando perceberem que investe contra Moro, que por sua vez se finge de morto. Moro é popular, conquistou admiração externa, quer eficácia no combate ao crime.

Quando ondas de desencanto batem sobre os grandes esquemas políticos, todos podem ser atingidos. Boas ou más intenções, planos de carreira, avanço no combate ao crime são variáveis que talvez não compensem o desgaste.

Na verdade, em termos internacionais o desgaste é mais acelerado ainda. Uma das últimas de Bolsonaro foi defender Augusto Pinochet, considerado um violento ditador por grande parte do mundo. Basta ler a imprensa chilena para ver como foi sentida a acusação de Bolsonaro contra o pai da alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet.

A repercussão das falas de Bolsonaro, desde aquele fatídico post sobre o golden shower, traz uma avalanche de comentários negativos. Às vezes, num deles aparece esta frase: deve ser difícil para os brasileiros. Tem sido. A frase pressupõe também que muitos discordam e, felizmente, as pesquisas comprovam isso.

Um novo e sombrio tempo se anuncia

Começa assim. Primeiro, apreende-se livros porque seriam nocivos à sociedade. Depois, prendem-se os que o escreveram porque poderiam reincidir no mesmo crime. Em seguida, punem-se os que os leram porque não deveriam tê-lo feito. E tudo em nome da moral, dos bons costumes e do respeito à família e a Deus.

Está na Constituição, artigos 5º, incisos IV, IX e XV:

“É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.”

“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.”

“É assegurado a todos o acesso à informação e resguardo do sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.”

Diz o artigo 220, parágrafos 1º e 2º:

“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a. informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”

“Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5°, IV, V, X, XIII e XIV”.

“É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”



A cidadão algum é dado desconhecer o que prescreve a Constituição em vigor. É sob a sua égide que vivemos. Ela estabelece nossos direitos e deveres. Cabe ao Supremo Tribunal Federal, como a mais alta Corte de Justiça do país, interpretar a Constituição e zelar para que ela seja cumprida.

Quando mandou que fiscais fossem à Bienal do Livro apreender os exemplares do livro “Vingadores – A Cruzada das Crianças” porque um dos super-heróis é homossexual, o prefeito Marcelo Crivella, do Rio, sabia que atentava contra a Constituição. Foi advertido sobre isso por seus assessores. E por que o fez?

Para tirar vantagem política junto aos eleitores evangélicos. Ele é bispo da Igreja Universal. É sobrinho do dono da Universal e também da Rede Record de rádio e de televisão, o bispo Edir Macedo. E candidato à reeleição no próximo ano. Enfrentará uma parada dura porque sua administração é mal avaliada.

Em decisão liminar, o Tribunal de Justiça barrou a pretensão de Crivella. Para dois dias depois, o mesmo tribunal suspender a liminar concedida e dar razão ao prefeito. Segundo a decisão do desembargador Claudio de Mello Tavares, o livro em questão fere o Estatuto da Criança e do Adolescente. Fere coisa nenhuma.

O estatuto não cita a homossexualidade. O que ele diz: “As revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família”.

Democracia e censura são inconciliáveis. A censura impede o pleno funcionamento da democracia que pressupõe a livre circulação de ideias, opiniões, fatos e o pluralismo político, ideológico e artístico. A censura serve aos propósitos de regimes autoritários porque cassa o direito à liberdade de expressão e de informação.

Em mensagem enviada, domingo à noite, à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, o ministro Celso de Mello, o decano do Supremo Tribunal Federal, avisou a quem interessar possa:

“O que está a acontecer no Rio de Janeiro constitui fato gravíssimo, pois traduz o registro preocupante de que, sob o signo do retrocesso – cuja inspiração resulta das trevas que dominam o poder do Estado -, um novo e sombrio tempo se anuncia: o tempo da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático.

Mentes retrógradas e cultoras do obscurantismo e apologistas de uma sociedade distópica erigem-se, por ilegítima autoproclamação, à inaceitável condição de sumos sacerdotes da ética e dos padrões morais e culturais que pretendem impor, com o apoio de seus acólitos, aos cidadãos da República!

Uma República fundada no princípio da liberdade e estruturada sob o signo da ideia democrática não pode admitir, sob pena de ser infiel à sua própria razão de ser, que os curadores do poder subvertam valores essenciais como aquele que consagra a liberdade de manifestação do pensamento.”

A fala de Celso Mello trai sua preocupação já confessada mais de uma vez aos seus colegas de tribunal com o avanço no país “da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático” desde que o presidente Jair Bolsonaro foi eleito e empossado.

No próximo ano, o ministro se aposentará, abrindo uma vaga a ser preenchida por um nome “terrivelmente evangélico”. No ano seguinte será a vez do ministro Marco Aurélio Mello. Bolsonaro terá assim a oportunidade de alterar o equilíbrio de forças que hoje existe no tribunal, favorecendo o conservadorismo extremado.

O Governo não deve premiar os ladrões de terra na Amazônia

A pressão internacional diante do aumento das queimadas na Amazônia finalmente provocou algumas reações do Governo federal, Congresso Nacional e governos estaduais, que nas últimas duas semanas iniciaram e propuseram ações, ainda insuficientes, para tentar conter o fogo. Uma proposta que ganha cada vez mais apoio no alto escalão do Governo é investir na regularização fundiária como forma de combater o desmatamento. A ideia parece simples: emitir títulos de terra para identificar a quem pertencem as áreas sob fogo e responsabilizar seus donos. No entanto, a simplicidade esconde um dos grandes vetores da destruição que ocorre agora: a corrida para apropriação de terra pública visando lucro com a titulação. Dependendo de como ocorrer, a titulação de terras pode ser um novo gatilho para mais invasões de florestas e queimadas.

É como se estivéssemos diante de um sequestro com duas alternativas: pagar o resgate ou prender os bandidos. O pagamento parece ser sempre a opção mais simples. Porém, é também um estímulo para que esses bandidos voltem a praticar novos sequestros. Por outro lado, prender o bandido envolve mais preparação e tempo. Mas, se feito com inteligência e preparo, evita novas práticas ilícitas por esses criminosos e envia uma mensagem clara a quem pretendia seguir o mal exemplo: de que os crimes não serão tolerados e premiados. Nessa história, a floresta pública está sob sequestro; os grileiros são os bandidos; o pagamento é o título de terra. Cabe aos governos (federal e estadual) definirem como resolver esse crime para o benefício da sociedade.

Incêndio na floresta em União do Sul (MT)
Que fique claro: existe um passivo fundiário a ser resolvido na Amazônia e é comum encontrar produtores que ocupam e produzem na terra há muitos anos sem terem recebido títulos de terra, mesmo cumprindo os requisitos legais para regularização dessas posses. A solução para esse problema demanda investimento consistente de médio e longo prazo para atualizar e automatizar os métodos de trabalho dos órgãos fundiários, organizar as bases de dados desses institutos e dar publicidade sobre a privatização de terras públicas. É plenamente viável avançar na definição dos direitos fundiários na Amazônia atuando nessa direção, incorporando cada vez mais tecnologia e transparência na atuação pública.

No entanto, parte da destruição que ocorre na floresta Amazônica hoje é causada por pessoas que visam lucrar com a terra pública, pois invadem as nossas florestas e as desmatam na expectativa de que o Governo possa também emitir títulos de terra para beneficiá-los. E os benefícios são extremamente generosos de acordo com as leis fundiárias atuais. Um estudo do Imazon estimou em até 118 bilhões de reais o prejuízo para a sociedade brasileira se boa parte das terras públicas federais sem destinação fundiária na Amazônia for regularizada como médios e grandes imóveis. Isso porque os valores cobrados na venda dessas áreas são irrisórios se comparados ao real valor da terra no mercado. Além disso, o mesmo estudo estimou que a privatização de 19 milhões de hectares na região pode sofrer desmatamento adicional de 16 mil quilômetros quadrados, mais que o dobro da taxa anual de desmatamento em 2018. Por isso, a sociedade brasileira precisa ficar atenta para que o Governo federal e o Congresso Nacional não proponham novas mudanças legais que ofereçam ainda mais benefícios para quem ocupou terra pública recentemente.

Na esfera estadual, as leis também permitem que ocupações de terra recentes recebam títulos de terra pagando valores irrisórios. Por exemplo, o Estado do Pará aprovou em junho deste ano uma nova lei (Lei Estadual 8.878/2019), que prevê a emissão de títulos sem licitação pública e cobrando valores abaixo do mercado para quem pretende exercer atividade agrária no futuro. Ou seja, não se trata de pessoas que ocupam terra pública há anos e que produzem na área. Este caso é um incentivo direto para continuidade de ocupação de terra pública na expectativa de regularização e lucro futuro. Para evitar que a nova lei seja usada para promover mais invasão de terra e desmatamento no Estado, o Governo estadual deveria exigir licitação pública e cobrar valor de mercado se pretende vender terras da sociedade paraense para algum tipo de uso econômico futuro. Neste caso, deve também excluir a possibilidade de venda de áreas de florestas públicas, já que a lei abre essa possibilidade, mesmo que isso não seja permitido pela lei federal de gestão de florestas públicas (Lei 11.284/2006).

Além disso, outros estados, como Mato Grosso e Amazonas, que junto com o Pará lideram os números de queimadas na Amazônia em 2019, também permitem regularização de terra pública ocupada recentemente. Os problemas de desmatamento ilegal e queimadas continuarão ocorrendo enquanto esses estímulos para apropriação de terra não forem eliminados das leis e os governos não adotarem medidas para proteger as florestas públicas que ainda não foram destinadas.

Finalmente, o argumento de emitir título para identificar os responsáveis pelas queimadas não se sustenta. Os governos já possuem em mãos o Cadastro Ambiental Rural (CAR) com nome e CPF de quem alega ser dono de terras na Amazônia. É fato que há muita sobreposição de imóveis no CAR, mas isso não afasta seu uso para responsabilização ambiental. Assim, quem alega ser posseiro ou dono deve ser responsabilizado por desmatamentos ilegais. Ou seja, não é a titulação de terra que vai assegurar que a lei de crimes ambientais seja cumprida. Para isso, é preciso fortalecer o comando e controle e usar as informações já existentes, cruzando os dados do CAR e de desmatamento não autorizado para saber quem deve ser autuado. Por exemplo, entre 2017 e 2018 o Ministério Público Federal fez essa análise com o Ibama e já propôs mais de 2 mil ações judiciais na Amazônia contra desmatamento ilegal, por meio da iniciativa Amazônia Protege. Porém, os órgãos ambientais estaduais também precisam adotar essa prática e aperfeiçoar seu papel de fiscalização.

Assim, a proposta de investir recursos em regularização fundiária para combater desmatamento e queimadas ilegais é bem-vinda e necessária, mas não deve ser sinônimo apenas de emitir títulos de terra, especialmente para áreas recentemente desmatadas de forma ilegal, sob pena de gerar um incentivo perverso para a continuidade da grilagem e destruição da floresta. A melhor solução é ainda mais simples, mas esbarra na visão ideológica do Governo federal e de alguns estados: retirar a área pública ainda não destinada desse mercado ilegal de grilagem, o que envolve criar unidades de conservação, reconhecer territórios indígenas e de comunidades tradicionais, além de destinar área de florestas para concessão florestal, gerando emprego e renda na Amazônia. O Brasil já fez isso com sucesso em uma parte da Amazônia e há ampla documentação a respeito. Por exemplo, um estudo científico de 2010, feito por pesquisadores da UFMG, IPAM e instituições americanas, indicou que o aumento de áreas protegidas entre 2004-2006 contribuiu com a redução de 37% do desmatamento no período. Isso ocorreu justamente por que essas áreas deixaram de estar à disposição para a grilagem.

O que precisamos é de governos que promovam um ordenamento territorial na Amazônia alinhado com a conservação da floresta e que viabilize o uso mais eficiente das áreas já desmatadas na região, como os 10 milhões de hectares de pasto abandonado detectados pelo INPE no programa Terra Class. Ou seja, os governos devem proteger a floresta que ainda está sem destinação fundiária formal e focar a política de titulação nas áreas já abertas, sem esquecer da obrigação de recuperar passivos ambientais nesses imóveis. Os governos estaduais, que são responsáveis por 70% da área ainda não destinada na Amazônia, precisam buscar parcerias para multiplicar seus esforços. O desafio é muito maior que a capacidade de execução dos órgãos, então a participação e transparência precisam estar na base das suas ações. Todo esse trabalho tem mais chance de ser bem-sucedido se os governos atuarem de forma mais colaborativa com academia, movimentos sociais e instituições da sociedade civil na identificação de demandas prioritárias de regularização fundiária e apoio para implementação de atividades. É dessa união de esforços que a Amazônia precisa para sair dessa trágica crise.

Brenda Brito