A pressão internacional diante do aumento das queimadas na Amazônia finalmente provocou algumas reações do Governo federal, Congresso Nacional e governos estaduais, que nas últimas duas semanas iniciaram e propuseram ações, ainda insuficientes, para tentar conter o fogo. Uma proposta que ganha cada vez mais apoio no alto escalão do Governo é investir na regularização fundiária como forma de combater o desmatamento. A ideia parece simples: emitir títulos de terra para identificar a quem pertencem as áreas sob fogo e responsabilizar seus donos. No entanto, a simplicidade esconde um dos grandes vetores da destruição que ocorre agora: a corrida para apropriação de terra pública visando lucro com a titulação. Dependendo de como ocorrer, a titulação de terras pode ser um novo gatilho para mais invasões de florestas e queimadas.
É como se estivéssemos diante de um sequestro com duas alternativas: pagar o resgate ou prender os bandidos. O pagamento parece ser sempre a opção mais simples. Porém, é também um estímulo para que esses bandidos voltem a praticar novos sequestros. Por outro lado, prender o bandido envolve mais preparação e tempo. Mas, se feito com inteligência e preparo, evita novas práticas ilícitas por esses criminosos e envia uma mensagem clara a quem pretendia seguir o mal exemplo: de que os crimes não serão tolerados e premiados. Nessa história, a floresta pública está sob sequestro; os grileiros são os bandidos; o pagamento é o título de terra. Cabe aos governos (federal e estadual) definirem como resolver esse crime para o benefício da sociedade.
Incêndio na floresta em União do Sul (MT) |
No entanto, parte da destruição que ocorre na floresta Amazônica hoje é causada por pessoas que visam lucrar com a terra pública, pois invadem as nossas florestas e as desmatam na expectativa de que o Governo possa também emitir títulos de terra para beneficiá-los. E os benefícios são extremamente generosos de acordo com as leis fundiárias atuais. Um estudo do Imazon estimou em até 118 bilhões de reais o prejuízo para a sociedade brasileira se boa parte das terras públicas federais sem destinação fundiária na Amazônia for regularizada como médios e grandes imóveis. Isso porque os valores cobrados na venda dessas áreas são irrisórios se comparados ao real valor da terra no mercado. Além disso, o mesmo estudo estimou que a privatização de 19 milhões de hectares na região pode sofrer desmatamento adicional de 16 mil quilômetros quadrados, mais que o dobro da taxa anual de desmatamento em 2018. Por isso, a sociedade brasileira precisa ficar atenta para que o Governo federal e o Congresso Nacional não proponham novas mudanças legais que ofereçam ainda mais benefícios para quem ocupou terra pública recentemente.
Na esfera estadual, as leis também permitem que ocupações de terra recentes recebam títulos de terra pagando valores irrisórios. Por exemplo, o Estado do Pará aprovou em junho deste ano uma nova lei (Lei Estadual 8.878/2019), que prevê a emissão de títulos sem licitação pública e cobrando valores abaixo do mercado para quem pretende exercer atividade agrária no futuro. Ou seja, não se trata de pessoas que ocupam terra pública há anos e que produzem na área. Este caso é um incentivo direto para continuidade de ocupação de terra pública na expectativa de regularização e lucro futuro. Para evitar que a nova lei seja usada para promover mais invasão de terra e desmatamento no Estado, o Governo estadual deveria exigir licitação pública e cobrar valor de mercado se pretende vender terras da sociedade paraense para algum tipo de uso econômico futuro. Neste caso, deve também excluir a possibilidade de venda de áreas de florestas públicas, já que a lei abre essa possibilidade, mesmo que isso não seja permitido pela lei federal de gestão de florestas públicas (Lei 11.284/2006).
Além disso, outros estados, como Mato Grosso e Amazonas, que junto com o Pará lideram os números de queimadas na Amazônia em 2019, também permitem regularização de terra pública ocupada recentemente. Os problemas de desmatamento ilegal e queimadas continuarão ocorrendo enquanto esses estímulos para apropriação de terra não forem eliminados das leis e os governos não adotarem medidas para proteger as florestas públicas que ainda não foram destinadas.
Finalmente, o argumento de emitir título para identificar os responsáveis pelas queimadas não se sustenta. Os governos já possuem em mãos o Cadastro Ambiental Rural (CAR) com nome e CPF de quem alega ser dono de terras na Amazônia. É fato que há muita sobreposição de imóveis no CAR, mas isso não afasta seu uso para responsabilização ambiental. Assim, quem alega ser posseiro ou dono deve ser responsabilizado por desmatamentos ilegais. Ou seja, não é a titulação de terra que vai assegurar que a lei de crimes ambientais seja cumprida. Para isso, é preciso fortalecer o comando e controle e usar as informações já existentes, cruzando os dados do CAR e de desmatamento não autorizado para saber quem deve ser autuado. Por exemplo, entre 2017 e 2018 o Ministério Público Federal fez essa análise com o Ibama e já propôs mais de 2 mil ações judiciais na Amazônia contra desmatamento ilegal, por meio da iniciativa Amazônia Protege. Porém, os órgãos ambientais estaduais também precisam adotar essa prática e aperfeiçoar seu papel de fiscalização.
Assim, a proposta de investir recursos em regularização fundiária para combater desmatamento e queimadas ilegais é bem-vinda e necessária, mas não deve ser sinônimo apenas de emitir títulos de terra, especialmente para áreas recentemente desmatadas de forma ilegal, sob pena de gerar um incentivo perverso para a continuidade da grilagem e destruição da floresta. A melhor solução é ainda mais simples, mas esbarra na visão ideológica do Governo federal e de alguns estados: retirar a área pública ainda não destinada desse mercado ilegal de grilagem, o que envolve criar unidades de conservação, reconhecer territórios indígenas e de comunidades tradicionais, além de destinar área de florestas para concessão florestal, gerando emprego e renda na Amazônia. O Brasil já fez isso com sucesso em uma parte da Amazônia e há ampla documentação a respeito. Por exemplo, um estudo científico de 2010, feito por pesquisadores da UFMG, IPAM e instituições americanas, indicou que o aumento de áreas protegidas entre 2004-2006 contribuiu com a redução de 37% do desmatamento no período. Isso ocorreu justamente por que essas áreas deixaram de estar à disposição para a grilagem.
O que precisamos é de governos que promovam um ordenamento territorial na Amazônia alinhado com a conservação da floresta e que viabilize o uso mais eficiente das áreas já desmatadas na região, como os 10 milhões de hectares de pasto abandonado detectados pelo INPE no programa Terra Class. Ou seja, os governos devem proteger a floresta que ainda está sem destinação fundiária formal e focar a política de titulação nas áreas já abertas, sem esquecer da obrigação de recuperar passivos ambientais nesses imóveis. Os governos estaduais, que são responsáveis por 70% da área ainda não destinada na Amazônia, precisam buscar parcerias para multiplicar seus esforços. O desafio é muito maior que a capacidade de execução dos órgãos, então a participação e transparência precisam estar na base das suas ações. Todo esse trabalho tem mais chance de ser bem-sucedido se os governos atuarem de forma mais colaborativa com academia, movimentos sociais e instituições da sociedade civil na identificação de demandas prioritárias de regularização fundiária e apoio para implementação de atividades. É dessa união de esforços que a Amazônia precisa para sair dessa trágica crise.
Brenda Brito
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