quinta-feira, 25 de junho de 2020

Pensamento do Dia


O PIB do negacionismo

Com recuo de 9,1%, a economia brasileira deve fechar o ano, mais uma vez, com desempenho muito pior que o da maioria dos grandes emergentes, segundo as novas projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI). No Brasil, como em todo o mundo, o impacto da pandemia tem sido bem maior que o estimado em abril, quando saíram as estimativas anteriores. A contração projetada para o País, naquele momento, era de 5,3%, muito maior que a observada em crises anteriores. O aumento de casos de covid-19 foi fator importante para a piora da previsão, no caso brasileiro, disse a economista-chefe do Fundo, Gita Gopinath. Mas o Brasil, observou, tem os mesmos desafios de outros emergentes para lidar com o coronavírus.

Mas o contágio tem sido menor em outros países emergentes, incluídos alguns da América do Sul, e esse detalhe foi ignorado, talvez diplomaticamente, no comentário. Os casos teriam aumentado tanto, no Brasil, se o presidente levasse a sério a pandemia e contribuísse para a coordenação de políticas entre União, Estados e municípios?

Governantes negacionistas ou relapsos têm sido desastrosos, como comprovou, nos EUA, o comportamento do presidente Donald Trump, líder do brasileiro Jair Bolsonaro. Países do mundo rico onde a reação à pandemia se retardou devem fechar o ano com desempenhos piores que o do Brasil. Mas em boa parte da Europa as economias já estavam enfraquecidas. O atraso da resposta à doença foi um complicador a mais.

Sustentada pelo desempenho menos ruim de alguns grandes emergentes, como China e Indonésia, e de uns poucos desenvolvidos, como Alemanha e Coreia, a economia mundial deve contrair-se 4,9% em 2020 e crescer 5,4% em 2021. Nos cálculos de abril, previa-se contração de 3% neste ano e retomada de 5,8% no próximo. Para a média dos emergentes o resultado de 2020 passou de -1% na estimativa de abril para -3% na de junho.


A crise brasileira pode parecer menos grave que a de vários países da Europa, quando se comparam só as projeções para 2020. Mas a comparação, nesse caso, é enganadora. O produto interno da zona do euro cresceu 1,9% em 2018 e 1,3% em 2019. O PIB do Brasil avançou 1,3% e 1,1% nesses anos. Além disso, o Brasil mal havia começado a recuperar-se da recessão de 2015-2016, quando sua economia se contraiu cerca de 7,2%. Essa lenta recuperação pouco havia melhorado as condições do mercado de trabalho. No começo deste ano o desemprego no Brasil, superior a 11%, era o dobro da média da zona do euro.

É preciso chamar a atenção também para um ponto nem sempre lembrado. Países avançados, como os da Europa Ocidental, podem dar-se muito bem com taxas de crescimento inferiores às do mundo emergente e em desenvolvimento. No mundo rico, padrões elevados de tecnologia, de ciência, de educação, de produtividade e de condições de vida estão bem estabelecidos há muito tempo. Não se morre, nesses países, por falta de saneamento básico nem os desempregados afundam na pobreza.

O Brasil continua longe dessas condições, apesar dos avanços acumulados em muitas décadas, parcialmente perdidos no período petista e simplesmente interrompidos, ou revertidos, na fase bolsonarista. Se alguém duvidar disso, dê uma espiada no balanço da política educacional implantada em 2019 e consolidada na gestão catastrófica de Abraham Weintraub.

Com a pandemia, aumentaram consideravelmente os males debitados na conta do presidente Jair Bolsonaro. Ele dificultou tanto quanto pôde o enfrentamento da covid-19, chamando-a de gripezinha, contrariando as orientações dos epidemiologistas, estimulando comportamentos de risco e falhando na coordenação de políticas. Quando o Judiciário reconheceu aos governos estaduais e municipais o poder para definir normas sanitárias, o presidente concluiu, erradamente, caber apenas aos governos subnacionais o combate à pandemia. Também entra na sua conta o estado já muito ruim da economia quando chegou o novo coronavírus. Durante mais de um ano ele ignorou o assunto, ocupado com outras prioridades. O Brasil paga por isso.

O poder da Zona Oeste

Pacheco, personagem de Eça de Queiroz, “não deu ao país nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia, mas tinha um talento imenso”. Bolsonaro é um Pacheco sem talento, mas com acuidade visual para enxergar a possibilidade de vencer a eleição.
Adotou discurso liberal, o que nunca foi, e prometeu austeridade no momento que o brasileiro se sentiu logrado pelos governos petistas. Construiu o fenômeno eleitoral, conduzido pelos que organizariam, mais tarde, o gabinete do ódio.

As notícias falsas dominaram a campanha. Deu certo. Obteve 57 milhões de votos e tirou o Partido dos Trabalhadores do poder. Modificou o cenário político brasileiro. O capitão, expulso do Exército, conseguiu ser eleito deputado estadual e depois exercer sete mandatos de deputado federal. Passou 28 anos na Câmara dos Deputados, sempre no fundo do plenário, sem apresentar projetos.

Vale a pena retornar no tempo. No feriado de 12 de outubro de 1977, o Palácio do Planalto amanheceu protegido por soldados e atiradores de elite em posições estratégicas. O presidente da República decidira exonerar seu ministro do Exército, Sylvio Frota, que era abertamente contra o processo de abertura lenta e gradual na política brasileira. Naquele dia ocorreu o confronto decisivo entre os partidários da democracia e os defensores do regime fechado conduzido pelos militares.

O presidente Geisel enviou emissários ao aeroporto de Brasília onde ocorreu o estica e puxa político-militar. Uns eram convencidos a ir para o quartel general do Exército, outros para o Palácio do Planalto. O presidente venceu o confronto, determinou a exoneração de seu Ministro do Exército, que foi substituído pelo general Fernando Bethlem. Este lance pavimentou o caminho para o general João Baptista Figueiredo subir a rampa do Planalto e promulgar a anistia. Coube aos integrantes da chamada linha dura amargar a derrota, cuidar das feridas e resmungar no fundo da cena política.


Os perdedores se espalharam pela babel brasileira. Uns se envolveram com o negócio das drogas, que no final dos anos setenta passou a ter maior presença no Brasil. Os jogos de azar atraíram alguns, outros decaíram para o grupo de ladrões profissionais do erário público e milicianos que infestaram áreas não protegidas pelos governos locais e nacional, além de militares indignados. O jovem militar Jair Bolsonaro sempre se manifestou contra a anistia. Este tipo de pensamento continua a existir na sociedade brasileira.

Até hoje há opositores da anistia de junho de 1979. Essa posição implica em não admitir a convivência pacífica dos antagônicos no mesmo espaço político. O presidente Bolsonaro pertence a esta turma. Ele nunca escondeu a admiração pelo coronel Brilhante Ustra, acusado de ser torturador de presos políticos, nem sua alergia a assuntos ligados ao meio ambiente e a questão de gênero. Gosta de exercer o poder e ter a palavra final. Nomeia com prazer e demite com humilhação, inclusive generais.

Encontrou o limite. Esbarrou no Supremo Tribunal Federal. O sinistro Abraham Wientraub agrediu ministros da Suprema Corte. Essa é a última atitude que se deve assumir no Brasil. É suicídio. Bolsonaro calculou mal. Teve que recuar, enviar emissários para conversar com o Ministro Alexandre de Moraes, em São Paulo. Levantou a bandeira branca. O impeachment está ao alcance da mão de Rodrigo Maia.

O presidente gosta de falar todos os dias para o grupo de apoiadores que batem palmas e gritam palavras de ordem. Os jornalistas abandonaram o espaço. Apareceram oportunistas que pedem favores. Emergiu também a crítica no meio da massa. O quadradinho tende a desaparecer.

De tropeço em tropeço, o presidente Bolsonaro esticou a corda e a colocou ao redor do próprio pescoço. Somou-se ao desmando, seu absurdo e inconsequente comportamento perante a pandemia.

Os sucessores da linha dura militar, aqueles que eram contra a abertura democrática e a anistia, chegaram ao Palácio do Planalto. Corrupção significa dinheiro ilícito. A administração Bolsonaro & filhos aponta para algo ainda mais sério. Milícias aliadas ao discurso moralista, com vinculação evangélica e apoiadas por militares seduzidos pelo poder.

Personagens estranhos como o famoso Queiroz, rachadinhas, lavagem de dinheiro, Fake News mantidas por verbas públicas e particulares e a promoção do ex-Ministro da Educação para o Banco Mundial, indicam que os chefetes da Zona Oeste do Rio de Janeiro criaram um momento crítico na história do país.

Eles assumiram o poder.

O ódio terraplanista

Ali pelo final de seu livro "Capitalismo na América", Alan Greenspan, economista e ex-presidente do Federal Reserve dos Estados Unidos, se detém na clivagem em voga na política americana. No ódio escandido por Donald Trump a cada três entre quatro verbos de suas frases.

Greenspan, um republicano de quatro costados, capaz de criticar Reagan e elogiar Clinton, com todo o respeito liberal, conclui que a animosidade na política se dá por uma questão econômica. Simples: pela primeira vez em décadas, a atual geração de americanos será mais pobre do que a geração de seus pais e avós. É quando proliferam as antas.

No caso dos Estados Unidos, berço da revolução digital (ou 4ª Revolução Industrial), a destruição criativa espreme as antigas profissões, substituídas pela robótica e anteriormente pela mão de obra barata de países asiáticos, e aumenta a desigualdade social.

Simples, de novo: basta ver que a Amazon disparou no mercado de ações, e redes como J. Crew e mesmo Zara, de comércio varejista tradicional, enfrentam semelhante mau humor experimentado 120 anos atrás pelos fabricantes de selas e chicotes (e também pelos proprietários de cavalos), quando o automóvel ganhou as ruas.


O livro de Greenspan me lembrou de uma conversa final de tarde em dezembro de 2014, na praia de Itapuã (BA), com o poeta Antonio Risério. Ambos estávamos escandalizados com a campanha eleitoral de reeleição de Dilma Rousseff, quando o marqueteiro petista, João Santana, o antes popular Patinhas, forjara de vez a clivagem lulista de "nós" ou "eles"; e, para ganhar, inventara saco de inverdades contra Marina Silva.

Lembro de dizer a Risério: isso vai voltar, a campanha destampou um ódio, adicionou à política novamente um amargor de frustração cuja reação, ensinam os mandamentos quânticos, será em proporções maiores. Pois o ódio moldado pelos petistas, Lula à frente, derrubou Dilma e elegeu o capitão reformado.

E o ódio fermentou ainda em fogo alto sob a primária política econômica de Dilma-Mantega, de matriz geiselista, com um saldo de 12 milhões de desempregados e os habituais PIBs negativos.

Se os americanos se encontram clivados pela política trumpista, embora acumulem crescimentos de PIB algo tímidos, jogue a lupa na realidade brasileira, cujo desempenho econômico desde a década de 1980 é mais anêmico do que um figurante de reality da Record.

Enquanto os americanos padecem pela trituração de ocupações, muitas delas já obsoletas, ou de técnica limitada (carros: até russos possuem as suas marcas!), o Brasil cumpre sua sina de viver ideias fora do tempo. Cada vez mais o Brasil político se assemelha ao desempenho nas pistas de Rubinho Barrichello (parece que contraiu há pouco a H1N1).

Caiu no conto da direita em 1964 (achando que o latifundiário João Goulart era comunista!); em 2002, no ideário esquerdista-estatista (quando a União Soviética ruíra décadas antes); e, em 2018, no assombro nazibozonarista (na época a Venezuela de Chaves e Maduro já era miasma).

O retorno de Lula das tumbas do ABC, contra os manifestos democráticos, revela a estratégia da foto: "nós" ou "eles", sempre. Petistas x bozonaristas. Interessa a rivalidade binária, tão entranhada na vida brasileira. E imaginar que a Frente Ampla, em 1966, juntou contra os milicos Jango Goulart, JK e Carlos Lacerda. Éramos mais sofisticados (ideológica e espiritualmente) e não sabíamos.

Mercador de ilusões

Nos anos 80, Paulo Guedes ganhou o apelido de Beato Salu. O economista era conhecido pelo hábito de fazer previsões apocalípticas. Lembrava o personagem da novela “Roque Santeiro” que vivia anunciando o fim do mundo.

A serviço do bolsonarismo, o pessimista crônico se converteu num mercador de ilusões. Faz profecias que não se confirmam e divulga planos que não saem do papel. Na semana passada, ele garantiu que “lá para setembro, outubro, novembro, nós já estamos num novo país”. Faltou dizer de que ano.

Antes da pandemia, Guedes já era especialista em anunciar terrenos na Lua. Na campanha, ele prometeu arrecadar um trilhão de reais com a venda de imóveis da União. Depois prometeu outro trilhão com a privatização de estatais. Há poucos dias, requentou a promessa de vender a Eletrobras até dezembro. A ideia é descartada por nove entre dez parlamentares.



No intervalo entre os factoides, o ministro se dedica a causas exóticas. Uma de suas favoritas é a liberação dos cassinos, defendida por um poderoso lobby em Brasília. Na famosa reunião de 22 de abril, ele tratou do assunto com polidez: “Deixa cada um se f... do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa cada um se f..., pô!”.
Após a chegada do coronavírus, o discurso ultraliberal de Guedes virou conversa de alienígena. A contragosto, ele tem sido obrigado a abrir os cofres para socorrer os mais pobres. Mesmo assim, insiste em fazer previsões sem lastro na realidade.

Na semana em que o Brasil entrou em quarentena, o ministro assegurou que o impacto da pandemia seria mínimo. No cenário que chamou de “mais grave”, o PIB cresceria 1%. O Banco Mundial ignorou o blefe e projetou um tombo de 8%. Agora o governo retaliou a entidade com o envio de Abraham Weintraub a Washington.

Ontem o Fundo Monetário Internacional anunciou uma previsão ainda mais lúgubre: a economia brasileira pode encolher 9,1%. Para reagir à nova desfeita, Guedes deveria exportar a ministra Damares Alves. O FMI não perde por esperar.

Brasil alimenta presidente


A intransigência da retórica liberal

A pandemia de Covid-19 está agravando o já alarmante quadro brasileiro, de mais de 12 milhões de desempregados, de 40 milhões de trabalhadores informais, de 6.000 mortes anuais por fome, de 5 milhões de desnutridos e de 24 milhões vivendo em extrema pobreza.

Além disso, milhares de pequenas e médias empresas estão fechando, e boa parte das grandes, quebrando ou entrando em recuperação judicial, com perda de produção e riqueza.

Antes da pandemia, os economistas liberais ortodoxos já se posicionavam, por princípio, contrariamente a ações públicas. Isso porque creem que a obtenção de superávits primários é a panaceia que infunde confiança nos atores privados e os faz agir para suprir as necessidades sociais de investimentos, bens e serviços —daí a pregação pelo Estado mínimo.

Com a destruição vinda com a pandemia, tendo surgido proposições de atuação governamental, até com apoio de economistas liberais, muitos deles, não obstante, reiteraram sua resistência. Faz sentido. Vários dos economistas dessa linha acreditam que, frente a um problema complexo, se ninguém fizer nada, tudo dará certo.


Tal resistência abriga o que o economista Albert Hirschman (1915-2012) denominou retórica da intransigência, associada à aversão a mudanças. Ela contém três teses: a da futilidade, segundo a qual tentativas de promover mudanças são inúteis (porque, no caso aqui tratado, o mercado é quem traria a solução estrutural); a da perversidade, que advoga que elas só agravam o quadro existente (no nosso quadro, piorariam o desemprego, a miséria e a desigualdade); e a da ameaça, que esgrima que o custo de mudanças é elevado e compromete conquistas já obtidas (no caso em tela, os gastos públicos arruinariam o ajuste fiscal, entornando o remédio e seus benefícios).

O debate econômico acerca da linhagem liberal é rico, e há nuances importantes dentro dela, mesmo no cenário brasileiro atual. Mas, em momentos trágicos como o que vivemos, não se entende que muitos de seus membros, mais ortodoxos, questionem a validade de políticas públicas ativas nos campos social e econômico.

Pode-se discutir acerca do alcance da injeção de recursos: a gradação vai desde a escolha de regiões, setores e públicos-alvo até a distribuição irrestrita, que o heterodoxo Nobel de economia Paul Krugman defende e chama de "helicopter money" —imagem, aliás, lançada com viés mais crítico em 1969 pelo ultraliberal e também Nobel de economia Milton Friedman (1912-2006). Mas neste momento não cabe o discurso da futilidade, da perversidade e da ameaça que muitos liberais ortodoxos têm emitido.

E o fazem com alarido, o que cria um paradoxo com o conceito, do mesmo Hirschman, de "voice" (voz), contraposto ao de "exit" (saída). Enquanto esta é a recusa silenciosa, e predominantemente individual, a um produto ou a uma política, aquela se faz pela manifestação ruidosa e coletiva em prol de mudanças e de quebra de padrões.

E o que temos por aqui é, contraditoriamente, a retórica barulhenta de um grupo de economistas ortodoxos que escrevem, palestram e dão entrevistas altissonantes contra ações mudancistas e em defesa da inércia conservadora.

Enquanto isso, a pandemia segue matando, pela doença e pelo desamparo econômico e social, milhares de brasileiros.

O legado do luto

Caros brasileiros,

a crise do coronavírus esta pior nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Suécia ou no Brasil? Outro dia, me peguei comparando os números da covid-19. Tudo era pior do que na Alemanha, então senti certo alivio.

Mas o alívio durou pouco. Era constrangedor e até macabro. Pois, por trás das estatísticas monstruosas, há pessoas queridas que morreram antes da hora, tanto aqui na Alemanha como no Brasil e no mundo inteiro. Pessoas queridas que fazem uma falta enorme, que fazem famílias inteiras se sentirem abandonadas, que deixam filhos sem pais, pais sem filhos, viúvas e viúvos entristecidos.

Cada um que perdeu uma pessoa amada sabe a dor esmagadora que causa essa ausência. Uma dor que se estende até o fim da vida. Uma dor que vira um acompanhante fiel, que sempre reaparece nas horas mais inesperadas e que traz consigo aquele vazio deixado pela morte da pessoa amada.


No Brasil, o luto pelas mais de 50 mil vitimas do coronavírus é um sofrimento monstruoso, porém silencioso. É uma nuvem escura que se soma aos sacrifícios causados pelo distanciamento social, pelo desemprego, pela violência e pela crise política e econômica.

É de matar: enquanto o país padece em meio ao luto coletivo, o noticiário político não sossega. É mais um escândalo aqui, mais uma demissão ali, mais infecções e mais mortes. A crise parece eterna, virou cotidiana, e todo dia se alimenta de novas notícias desagradáveis.

A vida não pode parar? Por que justamente em tempos de covid-19, quando mais precisa, o Brasil parece não ter tempo para piedade, compaixão e pêsames? Por que diante da tristeza causada por milhares de mortes ainda não foi declarado um dia ou uma semana de luto nacional?

Por trás do noticiário e da gritaria constante se esconde o medo desse luto coletivo. Pois ele, mesmo silencioso, é um poder político poderoso e imprevisível, que nenhum governo quer enfrentar. Especialmente o atual governo brasileiro, que, por isso, reprime o óbvio: não reconhece a pandemia, e, portanto, nem chega a administrá-la. É cada um por si, e Deus por todos.

O que aconteceria se admitíssemos o luto coletivo? Se passássemos horas no cemitério em vez de seguir o noticiário? Se nos encontrássemos com amigos em vez de nos envolvermos em brigas politicas nas redes sociais e de passar mensagens raivosas ou falsas para frente? E se vivêssemos como se fosse o último dia?

É bem provável que esse luto coletivo deixasse qualquer propaganda política esfarelar-se como um castelo de areia. Pois nenhuma ideologia e nenhuma campanha política com frases do tipo "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos" tem o poder de apagar a dor e o luto por uma pessoa querida que morreu.

Quando a epidemia no país passar, o que contará não vai ser somente o número dos mortos, mas também o número de mortes evitadas. Contarão não apenas os erros que foram feitos durante o combate ao vírus, mas também a incapacidade de reconhecê-los e corrigi-los. O que conta são as decisões tomadas, e não a busca por supostos culpados.

No mundo inteiro, o luto dos familiares das vítimas pelo coronavírus merece mais respeito e reconhecimento. O drama dos enlutados que não podem participar do enterro, dos familiares que não podem se despedir dos seus queridos: tudo isso é desumano.

No Brasil, a dor dos enlutados foi esmagada pelo trator da propaganda política de um presidente que teve que ser lembrado pela Justiça sobre uso obrigatório de máscara em espaços públicos e estabelecimentos comerciais, como medida de proteção contra o novo coronavírus.

Junto com a epidemia, o luto reprimido e o fracasso do atual governo brasileiro no combate ao coronavírus vão virar um trauma nacional, que marcará o país por décadas. É o legado doloroso e pesado do luto. Na Alemanha aprendemos: o luto não sossega, ele reclama por justiça.
Astrid Prange de Oliveira

O dilema de quem apoia Bolsonaro

Quanto mais doloroso o sacrifício, maior a crença na existência do imaginário receptor do sacrifício
Yuval Noah Harari

Em março deste ano, a equipe de especialista do Imperial College London previu que, no melhor cenário, 44 mil brasileiros morreriam em decorrência da pandemia de COVID-19.  Àquela época (parece que já estamos há uma eternidade em distanciamento social), empresários, como Roberto Justus, Luciano Hang e Junior Durski, vieram a público fazer pouco caso das previsões, acusando-as de alarmistas. Em entrevistas e pronunciamentos oficiais em rede nacional, o Presidente Jair Bolsonaro minimizou a doença, referindo-se a ela como uma mera “gripezinha”. Poucos meses depois, porém, a realidade parece ter dado conta de dobrar a língua dos negacionistas. No momento que escrevo este texto, em junho de 2020, as curvas estatísticas da epidemia no Brasil, mesmo sem contar os casos subnotificados, romperam a marca prevista pelo Imperial College e continuam em ascensão. O mundo inteiro assiste atônito ao fiasco de Bolsonaro na condução da crise do coronavírus.

Além da COVID-19, o Brasil ainda tem que lidar com uma crise econômica que já se delineava antes mesmo da pandemia, uma disputa entre Governo Federal e Governos Estaduais e Municipais  e uma crise institucional em que o Palácio do Planalto se contrapõe e ameaça o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF). Isso sem falar nas investigações envolvendo a fabricação e divulgação de notícias falsas por aliados próximos ao Presidente da República, nas ligações da família Bolsonaro com as milícias cariocas, nos escândalos de corrupção envolvendo os filhos de Bolsonaro e nas acusações de tentativa de interferência na Polícia Federal para proteger familiares e aliados do Presidente.  Esse caldo de crises e escândalos escancara a total incompetência e inabilidade de Bolsonaro. Ainda assim, seu núcleo de apoiadores continua irredutível em não reconhecer o desastre de seu governo. Na última pesquisa XP/Ipespe, realizada entre os dias 9 e 11 de junho deste ano, 28% dos entrevistados ainda avaliavam o governo como ótimo e bom. Como isso se explica? Estariam 28% dos brasileiros tão cegos a ponto de se recusarem a ver o óbvio ululante?

Talvez um pequeno trecho da obra “Homo Deus”, de Yuval Harari, quando ele lembra um conto de Jorge Luis Borges e as condições da Campanha Italiana na Primeira Guerra Mundial, contenha uma chave de interpretação que possa nos auxiliar a compreender fenômeno tão estranho.


No conto “Um problema”, Borges se pergunta como Dom Quixote reagiria se, no meio de seus delírios, ele houvesse realmente matado um homem. O próprio Borges propõe três respostas possíveis: ou Quixote continuaria vivendo em seu mundo alucinatório, como se nada houvesse acontecido; ou o terror do assassinato o despertaria de sua loucura para sempre; ou, enfim, não podendo negar a morte do homem, ele buscaria, em sua narrativa imaginária, razões que dariam sentido àquele acontecimento fatídico, aprofundando-se ainda mais em sua loucura. Harari sustenta que essa terceira resposta é comum no ambiente político, onde ela é conhecida como síndrome “nossos rapazes não morreram em vão”. E aqui entra a questão da Campanha Italiana.

A Itália entrou na Primeira Guerra Mundial com o objetivo glorioso de recuperar os territórios de Trento e Trieste do Império Austro-Húngaro. Contudo, ela perdeu as doze batalhas que ali travou. Cada batalha lhe custava mais vidas italianas, e, a cada derrota, seu ímpeto bélico apenas aumentava. Afinal, como os políticos italianos poderiam abandonar o campo de batalha após perderem tantas vidas? Como admitir para as famílias dos mortos que a guerra tinha sido um erro? Seria como se todos aqueles homens tivessem morrido por nada, e isso seria insuportável. Então, ao invés de assumir derrota, os italianos reforçaram sua narrativa de glória patriótica. Para que os primeiros rapazes não tivessem morrido em vão, mais rapazes tiveram que morrer. Por um lado, os reforços de narrativa após cada derrota levaram os italianos a uma tragédia ainda maior. Por outro lado, eles dotaram aquela tragédia de um sentido que a tornava mais palatável.

Segundo Harari, a terceira resposta no conto de Borges e a experiência italiana na Primeira Guerra Mundial demonstram como nós, seres humanos, temos uma grande necessidade de dar sentido às nossas vidas, em especial aos nossos fracassos, dores e frustrações. É muito difícil admitir grandes perdas se elas não tiveram propósito nenhum. Por isso, nós conferimos propósitos aos nossos sacrifícios, via de regra através de narrações imaginárias, em que selecionamos experiências específicas, que se encaixam bem na história que queremos contar. E “quanto mais nos sacrificamos em benefício de uma história imaginária, mais forte ela se torna, porque desesperadamente queremos dar sentido ao sacrifício e ao sofrimento que causamos”.

Essa é uma chave importante para compreender o dilema dos bolsonaristas hoje.

O apoio a Bolsonaro teve e continua tendo um alto custo. Pessoas investiram muito dinheiro, tempo e energia nas ações de promoção do bolsonarismo e de sua fábrica de notícias falsas. Alguns chegaram a abandonar seus empregos. Outros penhoraram sua credibilidade. Famílias inteiras estão cindidas, amizades de décadas estão desfeitas e princípios básicos de dignidade e decência tiveram que ser postos em suspenso. Enquanto o motor do bolsonarismo queima mentira, ódio e agressão, do seu escapamento solta-se uma fumaça espessa de sofrimento que atinge a todos ao seu redor, quer sejam apologistas, opositores ou desavisados.

Neste momento, o real da tragédia brasileira atesta o desastre anunciado que sempre foi Bolsonaro. A narrativa do herói nacional, que colocaria a economia nos trilhos, acabaria com a corrupção política e salvaria o país da ameaça dos comunista do Foro de São Paulo, já não encontra nenhum lastro na realidade – se é que algum dia o encontrou. É bem verdade que a própria alcunha de “mito” há muito indicava o caráter quimérico da figura que se construiu sobre o personagem Bolsonaro. Mas essa foi uma fábula em que seguimentos inteiros da população brasileira decidiram acreditar e ajudar a escrever. Ocorre que a tinta usada para registrar esse conto foi extraída de muita dor e sofrimento. Diante disso, admitir a mentira do bolsonarismo seria admitir também que os imensos sacrifícios e as aflições atrozes que ele causou não tiveram sentido e não serviram para nada. Para muitas pessoas, isso é insuportável. E, por essa razão, elas continuam agarradas à mentira. Repetem-na. Reforçam-na.

O reforço das narrativas bolsonaristas implica também um aprofundamento no delírio. Não é à toa que presenciamos sucessivas subidas de tom de Jair Bolsonaro, seus filhos, seus ministros e seus apoiadores. Manifestações reivindicando o fechamento do Congresso e do STF contam com a participação do Presidente. Filho de Bolsonaro fala abertamente em AI-5 e ruptura institucional. Ministros de Estado sonham com a prisão de Governadores, Prefeitos e Magistrados. Tudo isso sob os aplausos efusivos da claque, que, reproduzindo o comportamento do ídolo, invade hospitais, agride profissionais de saúde e atira fogos contra a Suprema Corte. Todos foram longe demais na narrativa e no sofrimento que ela engendra. Comprometeram-se a tal ponto que não podem mais voltar atrás. Como gatos acuados, não tendo aonde fugir, ofendem e atacam.

Pode ser paradoxal, mas, “quanto mais doloroso o sacrifício, maior a crença na existência do imaginário receptor do sacrifício”. As oferendas a Bolsonaro foram numerosas, feitas às custas de muito suplício. Se algo ainda sustenta a base de apoio bolsonarista é a necessidade de garantir que essas oferendas não tenham sido em vão, ainda que, para isso, mais sacrifícios tenham que ser feitos. Assim como na Campanha Italiana da Primeira Guerra Mundial, a exigência de manutenção do discurso bolsonarista já está cobrando seu preço em vida humanas. Mas, enquanto o drama italiano culminou com a ascensão de Benito Mussolini e do fascismo, aqui, apesar de todos os sinais, eu ainda espero que tenhamos melhor sorte.
Lucas de Melo Prado

Recado aos 'epidemiologista' verde-oliva

É preciso que o governo dê instruções claras e efetivas à população e invista em infraestrutura de saúde. Sem a capacidade de fazer isso, não se pode excluir a necessidade de futuros lockdowns.


Não dá para esperar passar. Aprendemos muito com países que agiram rapidamente e controlaram o surto. Olhem para eles e acharão suas respostas.
Michael Ryan, diretor de emergências da Organização Mundial de Saúde

Nova doença e a velha senhora

Está claro como a epidemia da Covid-19 comprometeu o controle das doenças crônicas e das endêmicas no Brasil e no mundo. O impacto sobre o câncer, exames preventivos que deixaram de ser feitos, procedimentos diagnósticos e as consequentes intervenções terapêuticas, sem dúvida trarão, a curto e médio prazos, perdas de vidas evitáveis, em meio às milhares causadas pela pandemia per se.

Dentre as endêmicas, chama a atenção a tuberculose, ainda tão prevalente no país, com um forte controle governamental, porém a depender da participação ativa e adesão da sociedade, atingidas em cheio nos últimos quatro meses. São muitas as evidências de que a efetividade do controle depende não só da disponibilidade de bons medicamentos, mas adequada organização de ações, recursos humanos qualificados e tratamento humanizado.

Apesar dos avanços, com redução na incidência e na mortalidade, o Brasil está entre os 22 países de maior carga de tuberculose no mundo, com 70 mil casos novos e mais de 4 mil mortes anuais. Doença urbana, ligada a condições de vida, sua redução no país nas últimas décadas tem sido desigual. A redução anual, de cerca de 2,5%, é muito aquém da esperada. Com a expectativa de erradicação nos próximos 50 anos, seria necessária uma queda de 6% ao ano.


No mundo, três países do bloco dos BRICS — China, Índia e África do Sul — concentram 50% dos casos. Se olharmos a vasta literatura que se inspira na “velha senhora” como foi denominada, vemos que perdeu o lirismo a velha tísica da iconografia de óperas e romances, que fez passar partes de suas vidas em sanatórios artistas e poetas até a metade do século passado.

Após a Segunda Guerra Mundial, surgiram os primeiros medicamentos, iniciando pela estreptomicina, a que salvou o grande dramaturgo Nelson Rodrigues, em seus muitos anos em sanatórios, até o advento da rifampicina, no fim dos anos 60, ainda hoje protagonista no tratamento da tuberculose.

Cinquenta anos após, vivemos um <em>momentum</em>, com a descoberta de cerca de 20 novas moléculas e estudos clínicos para testar eficácia e redução do tempo de tratamento. Estudos em diversas fases no mundo têm o objetivo de reduzir o longo tempo de tratamento e aumentar a adesão dos pacientes, com todos os fármacos orais. É alentador portanto, verificar que, há poucos dias, ainda que com atraso em relação à aprovação pela OMS, dois bactericidas potentes, bedaquilina e delamanide, foram aprovados pela Conitec para incorporação ao programa brasileiro de tuberculose.

O Brasil tem sido exemplo, desde normas para diagnóstico e tratamento elaborados em conjunto pelo Ministério da Saúde e a comunidade acadêmica, com participação da sociedade civil, sem conflito entre medicina pública e privada. Merecem registro: o pioneirismo dos esquemas de tratamento curtos, permitindo o fechamento de sanatórios e o regime ambulatorial nos anos 80; o reconhecimento de grupos vulneráveis, em que a incidência é centenas de vezes maior do que na população geral, como indígenas, presidiários, pessoas com HIV e moradores de rua; medicamentos formulados em comprimidos de dose fixa combinada, que reduz os comprimidos diários; aquisição de insumos para diagnóstico rápido molecular; criação de centros de referência para casos complexos; e um banco de dados on-line, para vigilância epidemiológica; além de iniciativas como a Frente Parlamentar contra a Tuberculose e aumento de orçamento.

este cenário social e epidemiológico brasileiro, duramente atingido pela pandemia, já seria, em condições ditas normais, inadmissível o paradoxo de morrerem por ano 4 mil brasileiros de uma doença diagnosticável, tratável, virtualmente curável e com tratamento gratuito. A constatação de que 40% dos testes diagnósticos para tuberculose deixaram de ser feitos nos últimos três meses, somada aos mais de 50 mil mortos pela Covid-19, nos coloca um prognóstico sombrio e a triste constatação de que ainda somos um país injusto e desigual.