quinta-feira, 25 de junho de 2020

Nova doença e a velha senhora

Está claro como a epidemia da Covid-19 comprometeu o controle das doenças crônicas e das endêmicas no Brasil e no mundo. O impacto sobre o câncer, exames preventivos que deixaram de ser feitos, procedimentos diagnósticos e as consequentes intervenções terapêuticas, sem dúvida trarão, a curto e médio prazos, perdas de vidas evitáveis, em meio às milhares causadas pela pandemia per se.

Dentre as endêmicas, chama a atenção a tuberculose, ainda tão prevalente no país, com um forte controle governamental, porém a depender da participação ativa e adesão da sociedade, atingidas em cheio nos últimos quatro meses. São muitas as evidências de que a efetividade do controle depende não só da disponibilidade de bons medicamentos, mas adequada organização de ações, recursos humanos qualificados e tratamento humanizado.

Apesar dos avanços, com redução na incidência e na mortalidade, o Brasil está entre os 22 países de maior carga de tuberculose no mundo, com 70 mil casos novos e mais de 4 mil mortes anuais. Doença urbana, ligada a condições de vida, sua redução no país nas últimas décadas tem sido desigual. A redução anual, de cerca de 2,5%, é muito aquém da esperada. Com a expectativa de erradicação nos próximos 50 anos, seria necessária uma queda de 6% ao ano.


No mundo, três países do bloco dos BRICS — China, Índia e África do Sul — concentram 50% dos casos. Se olharmos a vasta literatura que se inspira na “velha senhora” como foi denominada, vemos que perdeu o lirismo a velha tísica da iconografia de óperas e romances, que fez passar partes de suas vidas em sanatórios artistas e poetas até a metade do século passado.

Após a Segunda Guerra Mundial, surgiram os primeiros medicamentos, iniciando pela estreptomicina, a que salvou o grande dramaturgo Nelson Rodrigues, em seus muitos anos em sanatórios, até o advento da rifampicina, no fim dos anos 60, ainda hoje protagonista no tratamento da tuberculose.

Cinquenta anos após, vivemos um <em>momentum</em>, com a descoberta de cerca de 20 novas moléculas e estudos clínicos para testar eficácia e redução do tempo de tratamento. Estudos em diversas fases no mundo têm o objetivo de reduzir o longo tempo de tratamento e aumentar a adesão dos pacientes, com todos os fármacos orais. É alentador portanto, verificar que, há poucos dias, ainda que com atraso em relação à aprovação pela OMS, dois bactericidas potentes, bedaquilina e delamanide, foram aprovados pela Conitec para incorporação ao programa brasileiro de tuberculose.

O Brasil tem sido exemplo, desde normas para diagnóstico e tratamento elaborados em conjunto pelo Ministério da Saúde e a comunidade acadêmica, com participação da sociedade civil, sem conflito entre medicina pública e privada. Merecem registro: o pioneirismo dos esquemas de tratamento curtos, permitindo o fechamento de sanatórios e o regime ambulatorial nos anos 80; o reconhecimento de grupos vulneráveis, em que a incidência é centenas de vezes maior do que na população geral, como indígenas, presidiários, pessoas com HIV e moradores de rua; medicamentos formulados em comprimidos de dose fixa combinada, que reduz os comprimidos diários; aquisição de insumos para diagnóstico rápido molecular; criação de centros de referência para casos complexos; e um banco de dados on-line, para vigilância epidemiológica; além de iniciativas como a Frente Parlamentar contra a Tuberculose e aumento de orçamento.

este cenário social e epidemiológico brasileiro, duramente atingido pela pandemia, já seria, em condições ditas normais, inadmissível o paradoxo de morrerem por ano 4 mil brasileiros de uma doença diagnosticável, tratável, virtualmente curável e com tratamento gratuito. A constatação de que 40% dos testes diagnósticos para tuberculose deixaram de ser feitos nos últimos três meses, somada aos mais de 50 mil mortos pela Covid-19, nos coloca um prognóstico sombrio e a triste constatação de que ainda somos um país injusto e desigual.

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