domingo, 13 de fevereiro de 2022

Pensamento do Dia

 

Luc Descheemaeker (Bélgica)

O racismo é tema central

Há uma lucidez nas férias que ajuda o jornalismo. Às vezes, a distância da correria diária permite um olhar mais agudo sobre o país. As tragédias recentes atingindo negros colocam o combate ao racismo como ponto central de qualquer projeto de futuro. Não precisamos de mais mortes para entender que esse problema pode destruir a Nação, se não for encarado com coragem, obstinação e propostas objetivas. Séculos de violência contra o povo preto nos olham desafiadores.

Não há palavras de repúdio que confortem os que vivem sob a ameaça constante e perdem pessoas queridas de maneira brutal. O refugiado congolês Moïse Kabaganbe foi vítima de uma barbárie tão imensa que nos cobriu de vergonha. Ele era apenas um menino de 24 anos que buscou abrigo entre nós. A mancha não sairá da nossa bandeira, nada há que apague esse crime hediondo. Só podemos, diante dele, fortalecer a convicção de que é preciso resgatar o país do fosso cada vez mais fundo em que estamos. Ver logo depois Durval Teófilo Filho com o braço estendido, como um pedido de paz, diante do seu assassino, foi dilacerante. O sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra já havia dado um tiro no seu vizinho de condomínio. Foi quando, caído, Durval levanta a mão desarmada. Ele estava apenas tentando chegar em casa. Aurélio saiu do carro, mirou a vítima caída e deu mais dois tiros. O sargento quis matar. Aos 38 anos, Durval foi executado por ser negro e seu vizinho achou que ele só podia ser um ladrão. Um ato explícito de racismo que termina tragicamente. Na sua defesa, o sargento fez alegação absurda. Disse que atirou “para reprimir a injusta agressão iminente que acreditava que iria acontecer”. O jovem Yago Corrêa de 21 anos saiu para comprar pão e foi preso. O delegado disse que Yago “estava na hora errada, no lugar errado”. Graças à mobilização da família e de moradores da favela do Jacarezinho ele foi solto.

Com quanto sangue mais vamos manchar nossa bandeira antes de entender que só haverá futuro quando o país encarar seu racismo? O racismo é inimigo da pátria, que só será pátria se honrar a sua rica diversidade étnica. Não é tarefa dos negros combater essa violência, é de cada pessoa e de todos os poderes.


O presidente da Central Única de Favelas e escritor Preto Zezé, em artigo na terça-feira, na “Folha de S.Paulo”, exprimiu o sentimento dos negros. “Somos exilados de direitos no nosso país e perseguidos como inimigos. O cenário inviabiliza qualquer ideia de nação, já que, devido à cor da pele, somos privados de direitos básicos. E corremos riscos, pois o imaginário popular está habitado com a ideia de preto como perigoso.”

Um país assim, que mata negros por serem negros, que escravizou africanos por três séculos, que nunca teve política de reparação, que até hoje os discrimina, não pode perder tempo com debate estapafúrdio. Não há racismo reverso. Ponto final. Os brancos não são ameaçados por serem brancos. Pelo contrário. Chega de dar espaço a debate falso. A mentira não é inocente, ela nos afasta do essencial e urgente.

Sempre houve quem lutasse a luta justa no Brasil. O herói da Pátria Luiz Gama é desses. O filme “Doutor Gama”, de Jeferson De, no Globoplay, narra uma das suas muitas lições de resistência. Precisa ser visto. O livro “Avesso da Pele”, de Jefferson Tenório, é outra recomendação que faço. Nele, o narrador, em diálogo com o pai, vai revelando ao leitor o cotidiano das feridas que os olhares, as palavras, as portas fechadas vão impondo ao negro. A pessoa adoece e um dia não aguenta mais. Tenório nos conta dessa morte lenta, desse cumprimento de uma pena sem culpa e sem remissão. Por quanto tempo mais o tecido social brasileiro suportará tamanha covardia?

Gosto dos números, acho que eles são reveladores, mas prefiro nem levantar aqui estatísticas para mostrar o que é evidente, a hegemonia dos brancos, a exclusão dos negros. Por natureza sou otimista. Acredito em políticas públicas e nas decisões privadas para mitigar problemas sociais. As poucas que surgiram nos últimos anos, como as cotas nas universidades públicas, ajudaram. As empresas que sinceramente querem mudar estão avançando. Tudo somado é pouco perto da imensidão da tarefa. Este é um ano eleitoral. O combate ao racismo deveria ocupar as agendas como uma obsessão.

Privatização humana


Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence
Bertolt Brecht

Federalizar os professores

Nesta semana, o Piso Nacional do Salário dos Professores foi tema constante dos noticiários e dos debates políticos. O Presidente da República se coloca como patrono dos professores, quando ele nada mais fez do que cumprir uma lei em vigor desde 2008, que regularizou um artigo da Constituição de 1988; os prefeitos argumentam que não terão condições de pagar o reajuste. Por incrível que pareça, não se ouviu vezes dizendo que o aumento ainda foi pequeno, e que a questão não é seu valor, mas como resolver a equação fiscal de cada município para viabilizá-lo.

O Presidente é um impostor ao se colocar como padrinho dos professores, quando se sabe que ele despreza educação, já demonstrou que não gosta de professores e apenas cumpriu lei já em vigor. Se não tivesse sancionado o reajuste, seria passivo de julgamento por crime de responsabilidade.


A ideia do Piso Nacional dos Professores está na Constituição desde 1988, graças a uma ementa do Deputado Constitucionalista baiano, Severiano Alves. Em 2008, 20 anos depois, tomei a iniciativa, como Senador, de apresentar o Projeto de Lei para fazer a Constituição ser realidade. A Senadora Ideli Salvati colaborou com uma emenda que ajudou a definir a maneira de fazer os reajustes anualmente. O Ministro Fernando Haddad foi fundamental para o processo seguir adiante e o Presidente Lula sancionar a Lei nº 11.738/2008. Ao longo do tempo, com o Fundeb, a lei melhorou para os professores e para a educação. O atual presidente nenhum mérito tem com a lei, nem com o valor do reajuste.

Os prefeitos têm o direito de manifestar preocupação com suas finanças, mas não por achar que o valor do piso ficou alto: R$3.500,00 é muito pouco para o Brasil fazer a carreira do professor mais atrativa do que todas as demais carreiras do Estado. Se o Brasil quer ser um país com futuro, é preciso que ao nascer uma criança, pai e mãe, irmãos, tios e padrinhos digam com orgulho: “Quando crescer, este vai ser professor, ter ótimo salário, ser respeitado e ajudar a construir o país que desejamos”.

Os prefeitos devem pensar como pagar um piso ainda maior e sem desorganizar as finanças de seus municípios.. Em primeiro lugar, observar quanto custa sua Câmara de Vereadores, quanto gasta em seu gabinete, como fazer sua administração mais eficiente e ética. Mesmo assim, muitos municípios não terão recursos para pagar os salários que suas crianças e o futuro de sua cidade precisam, e por isto, seus professores devem ganhar bem. Por isto, eles precisam entender que é o Brasil quem deve pagar o salário dos professores do Brasil, não importa em qual município. No lugar de reclamar, os prefeitos deveriam ter apoiado o Projeto de Lei do Senado (PLS) 155/2013, com o qual buscava atribuir à União o pagamento do Piso Nacional do Professor em todo o Brasil. Lamentavelmente, o PLS foi arquivado, em função da minha perda do mandato em 2019. Se tivesse sido aprovado, teria sido um passo inicial para criar-se uma carreira nacional do professor, para toda rede de escolas públicas..

É certo que muitos municípios não têm condições de pagar aos professores o salário necessário para a educação que as crianças dos municípios precisam: a solução não é continuar sacrificando as crianças, é federalizar a educação. Um país não tem futuro se seus cérebros são desperdiçados por nascerem em um município pobre ou em um município cujo prefeito tem outras prioridades e por isto despreza a remuneração de seus professores. Todo prefeito tem limitações, a solução é federalizar a carreira dos professores. Pena que a falta de interesse na educação, leva muitos prefeitos a preferirem não cumprir a lei 11.738/2008, do que lutar pela federalização da responsabilidade com o pagamento do piso salarial dos seus professores, como previsto no PLS 155/2013.

Audiência em baixa, riscos em alta

Nem o ar de profeta (de araque) – “…nos próximos dias vai acontecer algo que vai salvar o Brasil” -, ensaiado para os cativos do cercadinho do Alvorada, nem a mais recente bateria de “denúncias” de que o Exército teria encontrado “dezenas de vulnerabilidades” nas urnas eletrônicas funcionaram. Ambos movimentos do presidente Jair Bolsonaro tiveram repercussão baixíssima. Por um lado, é salutar que não se faça grande eco às suas sandices. Por outro, é um perigo. Deixa-se o monstro à solta para continuar a mentir, difamar as instituições e minar a democracia. Metodicamente.

Bolsonaro chefia um desgoverno, não tem qualquer aptidão para o cargo que ocupa ou noção do significado da Presidência. Mas nada tem de tolo. Dedica tempo quase integral à proteção de si e de sua prole, o que remete à obrigatoriedade de ter mandato para assegurar foro privilegiado. E tem usado todas as ferramentas para tal: do Estado, do qual se sente dono, das redes sociais e da deep web.

Não deve se reeleger, mas os estragos feitos ou em curso serão dificílimos de corrigir. Em todos os planos: econômico, social, ambiental. Na pauta de costumes, na civilidade, no pacto institucional. A lista de destruição é infinda.

Na economia o país regride a olhos nus, com desindustrialização, tecnologia ultrapassada, baixa competitividade, juros e inflação em alta. Para os mais pobres, demoliram-se redes de sustentação social complexas em nome de um auxílio direto mais robusto, que é comido pelas dívidas das famílias e pela inflação. Tem-se a ampliação da miséria e da fome. Educação e ciência são vítimas de desmontes e cortes sucessivos, a Cultura é jogada às traças. Recordes de desmatamentos, queimadas, mineração e garimpo ilegais, afrouxamento de fiscalização e, nesta semana, sob o generoso patrocínio da Câmara dos Deputados, mais liberalidade para venenos agrícolas.

Mais armas e mais violência.

Mas é na retrógrada agenda de costumes e na visão torta e muito particular que tem das instituições, da liberdade e da democracia que estão as maiores apostas do presidente. Não à toa, insiste em um novo projeto de liberação de armamentos, mesmo sabendo que não é possível votá-lo neste ano, em temas como família tradicional e escola domiciliar e, fundamentalmente, na falsa falta de legitimidade das urnas que possivelmente vão derrotá-lo.

Bolsonaro quer fixar sua persona, tornando-a capaz de sobreviver depois de um provável fracasso eleitoral.

O exemplo continua sendo Donald Trump. Mesmo longe da Casa Branca, Trump se mantém como a principal força conservadora do país. A ponto de deixar de cócoras o Partido Republicano, que, para agradar o ex, considerou a invasão do Capitólio um “discurso político legítimo”.

É tudo que o “mito” adoraria ver por aqui. Um caminho que ele vem traçando – metodicamente.

Ao voltar à carga contra as urnas eletrônicas, no cercadinho, na live de quinta-feira e no sábado, em entrevista ao ex-governador Anthony Garotinho, na rádio Tupi de Campos dos Goytacazes, Bolsonaro tratou de enfiar as Forças Armadas no bolo, como se delas partisse qualquer desconfiança. Ainda que o TSE tenha reagido rapidamente, afirmando que os militares convidados para acompanhar o processo pré-eleitoral só tinham feito questões técnicas sem expor dúvidas quanto à confiabilidade do sistema, Bolsonaro ressuscitou pulgas e soltou-as nas orelhas de seus seguidores.

Mais: incluiu na orquestração da turba o ministro da Defesa, general Braga Netto, cotadíssimo para vice em sua chapa. Para muitos extremistas, reacenderam-se as chamas do golpe frustrado de 7 de setembro. E eles estariam novamente prontos.

Fora das redes bolsonaristas, ninguém deu muita bola. Mas o movimento nelas para desacreditar o resultado das urnas continua intenso. Estudo da FGV sobre desinformações nas eleições, publicado na Folha de S. Paulo deste sábado, aponta que nos últimos 15 meses foram feitas mais de 390 mil postagens no Facebook sobre alegadas fraudes eleitorais. Ou seja, atiçar essa turma é fácil, basta um clique. Quanto mais para quem tem uma milícia digital à mão.