segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Hominus crudelis

A violência é condição da sobrevivência das espécies. Agora há uma espécie que acrescentou à violência a crueldade, e essa espécie é a nossa. O homem é o único animal cruel que de fato existe
José.Saramago

Uma mensagem aos Destruidores

A maldade pública entra na casa de cada homem, os portões do seu pátio não conseguem impedi-la de entrar, ela salta sobre o muro alto; deixe-o fugir para um canto do seu quarto, ela certamente o encontrará
Sólon

Você que procurou nos destruir
Falharam.

Você que nos ignorou
Falharam.

E você que zombou de nós
Estão sozinhos agora.

Nós nos lembraremos e escreveremos
Onde você procurou esquecer e apagar.

Nós criaremos e criaremos novamente
Onde você destruiu.

E não faremos
Seu roubo é sagrado.

E não reconheceremos
Seu anular,
E sua ruína,
Sua fabricação,
E sua usurpação.

Nós viramos as costas para você
Perverso inverso da história.

Nós viramos as costas para você
Então, para testemunhar e lembrar:

De Deir Yassin a Sabra e Shatila ,
De Nazaré e Jenin
Para Haifa , Jaffa e 'Akka ,

De Sheikh Jarrah a Beit Hanina,
E de Gaza a Khan Younis
E Rafah,

Não perdoaremos o imperdoável ,
E não esqueceremos.

Nós olhamos para o abismo
Do seu monstruoso
Fósforo branco
E vimos seu rosto.

Mas você perdeu o momento
Você atacou.

E suas paredes
Não irá protegê-lo
Da sua própria
Consciência.

E suas paredes
Não irá protegê-lo
Da sua própria
História.

E o que você roubou
Nós retomaremos,

Pensamento por pensamento,
Centímetro por centímetro,
Até sua maldição sangrenta
Torna-se nossa benção.

O genocídio é seu verdadeiro direito de nascença,
E seu verdadeiro legado.
A Palestina é nossa.

Seus são os canhões e os tanques,
Seus são os tratores e as bombas.
E a sua é a ladainha de mentiras e contos fantásticos.

Mas a nossa é a cultura ,
E o tempo,
E o espírito,
E a vontade.

Não ao roubo de terras,
Não ao roubo cultural,
Não à colonização,
Não à ocupação.

O escravo sempre diz “sim”.

Até que sejamos livres,
Você é um usurpador,
E assim você irá

Seja sempre.

O fim das ideologias ou o desgraçado mundo novo

Do grego “idea” (conceito) conjugado com “lógos” (estudo) à laia de sufixo, a palavra ideologia significa, etimologicamente, o estudo das ideias.

Para tanto ainda chega o meu conhecimento de grego, não estudado, mas adquirido nas leituras duma vida, sobretudo naquelas em que balizei (eu e grande parte da minha geração) as minhas ideias políticas.


Mais do que meras palavras, termos como liberalismo, socialismo, comunismo, fascismo foram, desde o século XIX, correntes de pensamento que moldaram revoluções, criaram e fizeram cair regimes, promoveram movimentos em todo o mundo.

Eram estes “mapas” políticos que organizavam a vida das pessoas e a sociedade com base em ideias claras sobre justiça, liberdade, igualdade, economia ou progresso.

Hoje em dia é como se vivêssemos numa era pós-política, sem grandes projetos, grandes visões de futuro ficando-nos apenas pela gestão do quotidiano e dos ciclos eleitorais, pelos números de votos e pelas promessas vagas. Assistimos a verdadeiros números de contorcionismo em tudo dependentes dum jogo de poder pelo poder, espezinhando valores fundamentais com o único fim de conseguir captar um eleitorado a cada dia menos esclarecido e mais à mercê dos discursos simplistas e vazios.

No entanto e ao contrário do que parece, as ideologias não desapareceram — apenas mudaram de forma. Perderam a estrutura clara dos velhos tempos e dispersaram-se em causas, emoções e identidades. Deixaram de comunicar para o “todo” para se centrarem em nichos de mercado político deixando órfã a maioria.

Uma maioria que, humanamente, tem necessidade de acreditar em algo, de ter respostas, de procurar sentido. E é exatamente aí que começa o problema.

Neste “desgraçado mundo novo”, o vazio deixado pelas antigas ideologias está a ser ocupado por discursos fáceis, emocionais, vazios e perigosamente sedutores. O medo, a frustração, a desilusão o sentimento de abandono que assolou essa maioria, alimentam populismos que prometem proteger, restaurar e até mesmo vingar. Discursos que prometem tudo — menos pensar. Em vez de ideias, temos slogans. Em vez de diálogo, temos gritos. Em vez de pontes, muros.

O que assusta realmente é que muitos, cansados de não serem ouvidos, de não terem uma explicação, de se sentirem esquecidos, aceitam. Aceitam o inimigo como explicação e o ódio como resposta. Dizia alguém num desses livros de ideologia lidos há muito que os monstros nascem, não da força, mas do silêncio.

Este é o retrato de um mundo novo de promessas vazias, discursos agressivos e identidades simplificadas, onde o medo faz mais barulho.

Enquanto as ideologias se fragmentam e os valores se esvaem, o vazio ideológico é tapado por políticas punitivas e radicalizadas.

Abalroam-se valores e princípios, em troca de votos e de vitórias eleitorais. A política já não se faz para as pessoas e muito menos para construir respostas sociais . Neste momento, a politica tem um único objetivo: vencer o adversário!

Não há debates ideológicos, não existem contrapontos políticos. As alianças são feitas apenas e só baseadas na matemática eleitoral.

É caso para dizer “ que se lixem as pessoas”.

Mas ainda há espaço para mudar o rumo. Precisamos de política com coragem: coragem para pensar em coletivo, para propor, para incluir em vez de excluir. A coragem de voltar a acreditar que a política pode ser mais do que ruído — pode ser caminho.

O conservadorismo se isolará se ficar refém dos Bolsonaros

A recente imposição de tarifas pelo governo Trump sobre produtos brasileiros, motivada por pressões políticas da família Bolsonaro, expõe a dependência do conservadorismo brasileiro em relação à família do ex-presidente. Os conservadores realmente esperam que a medida que pune trabalhadores e empresários brasileiros seja colocada na conta de Lula e Alexandre de Moraes, e não na de Eduardo Bolsonaro? Eles conseguem explicar por que os trabalhadores da indústria da carne em Mato Grosso ou os trabalhadores da indústria de calçados do Rio Grande do Sul deveriam pagar, com seus empregos, a conta das disputas entre o Supremo e os bolsonaristas? E qual a estratégia por trás da medida? Eles esperam que o Supremo se reoriente por medo de sanções comerciais — ou mesmo da Lei Magnitsky?


Nada disso faz o menor sentido. A armadilha em que se meteram se deve ao indisputado domínio da família Bolsonaro sobre todo o campo conservador. Sem perspectivas concretas de livrar o pai da cadeia, Eduardo Bolsonaro viajou para os Estados Unidos com o projeto de estimular sanções americanas aos ministros do Supremo, na esperança vã de que a ameaça pudesse moderar as sentenças nos julgamentos dos atos antidemocráticos. Só que Trump recebeu a demanda e a dissolveu na sua estratégia de guerra tarifária. Eduardo Bolsonaro, tomado de vaidade e sentindo-se influente sobre a Casa Branca, tomou a medida desproporcional de Trump como se fosse sua, implicando todo o movimento conservador na sua trapalhada.

O que era uma punição direcionada a Moraes e outros ministros virou uma punição a milhares de brasileiros. Os governadores da direita tentaram escapar da armadilha, buscando dizer que a postura antiamericana de Lula teria provocado a medida e que a solução seria a mesa de negociação comercial. Trump, no entanto, deixou claro que seu problema é com o Supremo, que a disputa não é de natureza comercial e que age a pedido dos bolsonaristas nos Estados Unidos.

Trump está tratando o Brasil como trata as universidades americanas. No caso delas, usou seu poder econômico como financiador das pesquisas científicas para lhes arrancar o compromisso de fechar ou enquadrar departamentos de estudos árabes, revisar as políticas de diversidade e perseguir estudantes pró-Palestina, sobretudo os estrangeiros.

No caso do Brasil, está usando tarifas para conseguir que o Supremo inocente Bolsonaro, suspenda a regulamentação judicial das mídias sociais e cesse a suspensão de contas de bolsonaristas na internet. A exigência é descabida e, na falta de termo melhor, imperialista. O Brasil não é frágil como um pequeno país centro-americano, nem hiperdependente dos Estados Unidos, como o México. Além do mais, o Supremo é um Poder independente do Poder Executivo. Só mesmo o delírio de grandeza de Eduardo Bolsonaro poderia esperar que tarifas contra o setor produtivo e punições bancárias a Moraes pudessem coagir o Supremo.

Não apenas as medidas não surtirão o efeito desejado, como terão o efeito contrário. A postura de Trump unirá ainda mais o Supremo e isolará ou enquadrará Nunes Marques, André Mendonça e Luiz Fux. E tornará muito mais difícil reorientar a Corte. A lista de problemas por lá não é pequena. Começa com os inquéritos abertos de ofício — sem objeto definido, sem prazo para acabar — e com a confusão de papéis entre vítima, investigador e juiz. Depois, vem uma sequência de medidas equivocadas e desproporcionais: a cassação de contas em mídias sociais, estabelecendo de fato censura prévia, sentenças duríssimas contra os bagrinhos do 8 de Janeiro e os erros que sustentaram a prisão de Filipe Martins.

A persistência dos conservadores foi capaz de trazer essas questões à luz, mas sua incapacidade de dissociar a exposição dos problemas do STF da vontade de livrar Bolsonaro da cadeia compromete o diagnóstico. Os bolsonaristas não conseguem condenar o golpismo de 2022/2023 da mesma maneira e pelos mesmos motivos que os lulistas não conseguem reconhecer a corrupção na Petrobras. Quem considera a mão pesada de Moraes uma ameaça à democracia não deveria achar inócuo decretar estado de sítio sobre o TSE ou um general planejar assassinar autoridades.

Não conseguiremos consertar os problemas do Supremo sem também condenar o golpismo. E nada disso será conseguido com o apoio de Trump. O conservadorismo se manterá isolado enquanto permanecer refém das estratégias personalistas da família Bolsonaro.

O lobo

Em 2023, Adam Conover afirmou: “Não pretendíamos defender-nos contra a tecnologia, mas sim contra os humanos no outro lado da mesa, que tentam lixar-nos todos os dias.” A frase foi proferida após ser finalmente alcançado um acordo entre os argumentistas e os representantes dos estúdios de Hollywood, na sequência de uma greve que parou a produção de séries e filmes. O tema central da disputa era a utilização sem regras do ChatGPT e de ferramentas semelhantes pelos estúdios. Conover parafraseou Thomas Hobbes: “O homem é o lobo do homem.” Ou seja, sem leis, o homem vive em permanente conflito, com um desejo de poder para garantir a sua própria sobrevivência. No “contrato social”, os cidadãos abdicam de parte da sua liberdade, conferindo ao Estado o poder de legislar e a autoridade para fazer respeitar as leis.


Mas e se os cidadãos já não confiarem no “contrato social” das sociedades modernas? Se uma parte crescente da população entender que o Estado não zela pelos seus interesses?

A crise das sociedades democráticas ocidentais é exacerbada pelo algoritmo, que fomenta a polarização e impede o diálogo. Mas por que motivo discursos extremistas, violentos e desumanos apelam a tantos?

O filosofo Michael Sandel, no livro A Tirania do Mérito, procura encontrar a resposta. Embora a sua análise se foque na sociedade americana, o seu pensamento é relevante para as sociedades ocidentais em geral e, sobretudo, para os desafios que ora se colocam com o advento da Inteligência Artificial.

A promessa de que a riqueza gerada pela globalização permitiria, a todos, maior conforto económico não se cumpriu. Em quatro décadas, a China elevou da pobreza 800 milhões de pessoas, mas nos EUA a riqueza gerada com a globalização foi capturada por apenas 20% da população. Os salários mantiveram-se estagnados e, em 2020, o Departamento de Estatísticas dos EUA divulgou um estudo demonstrando que a desigualdade atingira o nível mais elevado em cinco décadas. À desigualdade social soma-se a arrogância dos vencedores. O discurso dominante é de que quem venceu o fez pelo seu mérito exclusivo. Que tudo deve à sua inteligência e ao seu esforço e, como tal, os seus rendimentos não só são merecidos, mas justos. No entanto, tal implica também afirmar que os outros falharam por sua única e exclusiva responsabilidade, porque não estudaram, não trabalharam. Às agruras das dificuldades económicas alia-se a humilhação. Naturalmente, este é um discurso perverso, não nascemos todos com os mesmos dons, com famílias idênticas e oportunidades iguais. Mas não é somente o facto de, na corrida da vida, não partirmos todos da mesma linha e de no percurso termos apoios distintos, é também o facto de que a sociedade, em cada momento, valoriza talentos muito diferentes. Finalmente, e provavelmente mais relevante para a polarização atual, a sociedade ocidental faz coincidir o contributo de cada um para o bem comum com o valor da remuneração auferida, numa perversão social que ficou a nu na pandemia de Covid-19. Os denominados “trabalhadores essenciais” eram aqueles que desempenham as funções mais mal pagas – quem recolhe o lixo, colhe a fruta, cuida de idosos…

O trabalho não é apenas um meio para a obtenção de um rendimento. Não somos indiferentes à estima e ao respeito que geramos. Numa sociedade desigual que desvaloriza o contributo de tantos, começa-se a adivinhar porque o discurso contra os “estrangeiros” – que afirmam vir “usurpar” trabalhos e rendimentos – encontra ouvintes, e porque se afirmam contra “elites”, “privilegiados”, “políticos do sistema”.

Se este foi o status que resultou da globalização, como será quando o “estrangeiro” for um exército de agentes artificiais, que nunca dormem e tudo sabem? Quando a riqueza se concentrar numa clique ainda mais reduzida de donos de Big Tech e o trabalho cognitivo diminuir exponencialmente? Devemos a nós e às próximas gerações um debate sobre que sociedade e contrato social desejamos. Tal envolve refletir em alternativas à tributação do trabalho, capital e heranças. Reforçar a discussão destes temas na escola, na disciplina de Filosofia ou, para os mais jovens, Ética, e regular a introdução de sistemas de Inteligência Artificial na economia.

O continente da demência

Um incidente na Câmara dos Deputados em Brasília põe em dúvida o sentido do conhecido aforisma "o patriotismo é o último refúgio do canalha". É que, apesar da indignação coletiva contra o ataque desvairado de Trump ao Brasil, um pequeno grupo alçou na Câmara dos Deputados enorme bandeira em homenagem ao agressor. O autor da frase, Samuel Johnson, literato inglês do século 18, queria dizer que o "scoundrel" (canalha), sem justificativa moral para suas ações, recorre malandramente ao motivo fácil do patriotismo.


O ato da camarilha esvazia o sentido da frase: patriotismo não pode ser último refúgio de quem implicitamente o rejeita em sua ação. Durou meia hora a exposição da sabujice lesa-pátria, até que se tomasse a providência de retirá-la. Tarde demais. O fato chegou às redes, o país inteirou-se da vilania impatriótica, isto é, da exaltação a uma ameaça estrangeira de absurda intervenção no Judiciário brasileiro, que acabou se concretizando.

Traição ao sentimento nacional envergonha o bom senso. As lideranças do Congresso começam a cogitar de alguma seriedade interna. Mas para o grande público fica a interrogação de como são possíveis comportamentos tão aberrantes à liturgia do cargo, mesmo em se considerando o estado civicamente regressivo da composição parlamentar.

Em princípio, seria insuficiente a exclusiva atribuição do fenômeno à ultradireita, pois nem todos os extremistas ousaram expor-se dessa maneira. Pode-se pensar no arroubo de uma turma juvenilizada em estilo cafajeste. Jovens costumam mostrar-se mais permissivos em companhia de pares. É a lógica das gangues, das torcidas de futebol violentas.

Mas se trata de políticos eleitos. Ocorre então a hipótese de uma demência coletiva manifestada como síndrome de padrões disfuncionais de cognição e comportamento. Não figura em manuais de psiquiatria. É um continente desconhecido, para além de motivações apenas individualizadas, em que se age sem fundamento, por puro efeito autodemonstrativo. No período Bolsonaro, deu-se atenção pitoresca a fenômenos dessa natureza nas ruas e nas rodovias, quando pequenas aglomerações marchavam sem rumo certo ou rezavam para pneu de caminhão. Voltados para as macrocausas político-econômicas, os observadores sociais deixaram escapar, por insignificante, a obtusa singularidade desses comportamentos. Neles se divisa agora uma dimensão significativa, em que miúdos eventos aberrantes se conectam a outros muito maiores numa escala continental. Ações egotistas, sem negociação.

O ataque trumpista ao Brasil é demencial. Os negociadores, diplomatas e empresários, atêm-se aos aspectos econômicos das tarifas anunciadas, embora cientes da improcedência do argumento de déficit comercial desfavorável aos EUA. Na realidade, trata-se de apelar ao senso comum. Sobra assim o motivo de estreiteza territorial, imperial, animalizado de um indivíduo que diz "faço porque posso". Como na fábula, o lobo fala ao cordeiro. É a essência do terrorismo, cujos atos são inegociáveis.

Mas, neste milênio, a suposta vítima pode se fortalecer, ao modo de minérios críticos, dentro da cadeia produtiva global. A receita estaria na formulação de numa Grande Política, que ponha fim à sua própria demonização por meio de um projeto nacional coerente, em frente ampla. É a garantia de voz forte em negociação, antídoto de canalhice, única escapatória do continente da demência.